Site icon Blog IJEP

A escolha de Páris e as novas ondas da covid-19

Com o verão no Hemisfério Norte e a abertura dos países devido ao controle da Covid-19 na Europa, assistimos a um relaxamento da precaução, sobretudo entre os jovens, e à consequente segunda onda de contaminação. Os Estados Unidos também entraram nesta onda, mesmo não tendo conseguido baixar suficientemente a transmissão da primeira, e a elevação nas taxas já ocorre no Brasil. Apesar do exemplo dos outros países e dos repetidos alertas sobre as medidas de controle, a lógica não dá conta de frear o impulso da busca pelo prazer imediato. As emoções expressas em frases como “Não aguento mais!” e “Quero minha vida de volta!” fazem lotar bares e baladas clandestinas, das favelas aos bairros nobres, colocando em risco a própria vida, mas sobretudo a dos demais. De fato, a mortalidade é bem maior em pessoas acima de 60 anos, mas as de 20 a 50 representam mais de 60% do total de infectados.[i] O coronavírus joga na cara o caráter coletivo da vida, negado pela cultura contemporânea; e, como em Tróia, ninguém escapa das consequências prolongadas da escolha individualista. Em que o mito de Páris e o complexo do puer aeternus podem jogar luz sobre essa situação atual?

Antes de entrar um pouco mais nas questões, é importante ressaltar que de forma alguma se trata de reduzir um problema de tal complexidade como a pandemia de Covid-19, com seus aspectos sanitários, políticos, econômicos, sociais, ecológicos e psicológicos, à atitude de jogar tudo para o alto dos que não aguentam mais o isolamento prolongado. Aliás, estes incomodam tanto não só por concretamente aumentarem os riscos, mas porque literalizam a vontade da maioria. A pandemia revela o fracasso do sistema atual, não sendo possível abarcar todos os aspectos em um estudo, muito menos num simples artigo, escrito ainda no olho do furacão. Pretendemos aqui apenas olhar para um aspecto que, apesar de pontual, tem se mostrado relevante – o aumento da contaminação entre os jovens e a partir deles – e interessante do ponto de vista da Psicologia Analítica, uma vez que alertas racionais têm se mostrado pouco ou nada eficazes para conter os focos de contágio.

Estamos completando um ano de identificação da doença, sentido como longo nos milhares de mortos contados dia após dia, assim como interminável pareceu a Guerra de Troia na dizimação que fez em seus dez anos de duração. Tantos fatores humanos, divinos e cósmicos envolvidos não podem ser unicamente atribuídos à decisão inconsequente de Páris, que, no entanto, foi pivô, assim como o são algumas escolhas de jovens, ou de adultos tomados pelo complexo da juventude eterna, no desencadeamento de novas ondas de contaminação pelo Sars-CoV-2. Qual mensagem traz o mito para essas atitudes?

Pivô da morte

Páris era o filho caçula dos reis troianos Príamo e Hécuba. Devido à interpretação de um sonho que revelava ser ele a ruína de Troia, foi exposto no Monte Ida. Encontrando-o cinco dias depois sendo amamentado por uma ursa, o pastor que o expôs a mando da rainha – desobediente às ordens do rei que o mandara matar – resolveu criá-lo. Cresceu belo, forte e inteligente, tornando-se um pastor corajoso e hábil com as mulheres, chamado também de Alexandre, que significa tanto “aquele que protege” (o rebanho) como “homem protegido”. Interessante pensar na sensação de imunidade dos que se expõem à contaminação por Covid-19, ignorando o papel de proteger outras pessoas.

Um dia Páris foi obrigado a arbitrar questão que começou quando Eris, não convidada para as bodas de Tétis, jogou um pomo dourado com a inscrição “Para a mais bela”. Abriu uma disputa entre Afrodite, Hera e Athenas, que Zeus se negou a arbitrar. Enviou Hermes, o mensageiro, a Páris, para que este fizesse a escolha entre as três deusas. Uma escolha gerada pela deusa da discórdia faz-nos pensar a quantas pelejas político-ideológicas assistimos desde o começo da pandemia e que estão no pano de fundo das atitudes dos jovens.

De repente, aquele que desconhecia a própria identidade viu-se obrigado a escolher – sua sugestão de dividir o pomo em três partes iguais foi recusada. Propostas das belas deusas não faltaram: Hera prometeu-lhe o governo de toda a Ásia, fazendo dele o homem mais rico da Terra; Athenas ofereceu-lhe vitória em todos os combates; e Afrodite seduziu-lhe com a promessa da mais bela das mulheres como esposa, em troca de ser a eleita. 

A fala do mensageiro – “Páris, como você é tão bonito quanto sábio em questões do coração…” – insinuava algo mais, mas Hermes não foi consultado. A ironia não captada reforça a literalidade de quem se sabia apenas belo pastor e optou pela única oferta que fazia sentido para tal (des)conhecimento de si. Entrega a maçã dourada a Afrodite, que arma para jogar-lhe nos braços Helena, mulher de Menelau, rei dos Aqueus. 

Toda escolha traz consequências, tanto mais trágicas quanto mais longe do autoconhecimento, tanto para si quanto para o outro. As deusas preteridas, destilando ódio, tramaram juntas a destruição de Troia. Alexandre, descoberto por Príamo nos Jogos Fúnebres (nome adequado às atuais aglomerações) e em missão comercial como príncipe de Troia, rouba Helena, que caíra apaixonada em seus braços, tornando-se pivô da guerra que dizimou grande parte da população de ambos os lados.

Individualismo fatal

Os mortos por Covid-19 no mundo já se aproximam de 1,5 milhão, tendo passado de 60 milhões o número de casos. Desde novembro, o mundo vem registrando em dias seguidos recordes de infecções e mortes[ii], após um período de quedas ou estabilização. No Brasil, apesar de reiterados alertas, as festas clandestinas continuam, bem como aglomerações em bares e praias, com a maioria das pessoas sem máscara, o que é ainda mais alarmante com a aproximação das festas de fim de ano.

A fórmula para evitar o crescimento da curva de contaminação é tão simples que mesmo uma criança seria capaz de racionalmente compreendê-la: distanciamento, uso de máscara, lavar as mãos e evitar sair de casa o máximo possível (medidas pessoais devidamente somadas a políticas públicas das quais não falaremos aqui). No entanto, não é neste plano lógico-racional que o embate se dá. Trata-se, como C. G. Jung falou há mais de cem anos no texto “Sobre o inconsciente” (2018, §23), de duas imagens do mundo, que “não se toleram mutuamente e não existe lógica que possa uni-las: uma fere nosso sentimento, a outra nossa razão”. Não há lógica que detenha as saídas dos “jovens” movidas pela emoção que não suporta mais o isolamento. E que razão ferida na carne poderá se reconciliar com essas atitudes inconsequentes?

Incrível a atualidade da reflexão de Jung feita ao fim da Primeira Guerra Mundial, quando ele disse ocorrer um “caos dos espíritos” (§22)! Parece que podemos usar essa expressão para o momento atual, chamado pelo sociólogo Bauman de Modernidade líquida, cuja crise vemos exacerbada nas contradições expostas com a pandemia. A marca da sociedade atual, para ele, é o processo de individualização, que significa a atribuição unicamente ao indivíduo da responsabilidade sobre a tarefa de realização de sua vida, bem como das consequências pelos rumos dessa realização. Trata-se de um indivíduo solto, sem engajamento, sem causas coletivas nem parâmetros de escolha e ação, com as normas sociais enfraquecidas e até ausentes – estado de anomia –, rotinas instáveis que não chegam a se tornar hábitos e, em meio a tudo isso, a presença constante da dúvida e do medo e a ameaça da falta de sentido. Uma liberdade sem precedentes, mas num processo de “libertação” que levanta questionamentos se é uma “bênção” ou uma “maldição” (cf. BAUMAN, 2014, p. 28).

Se Páris que escolheu Afrodite desconhecia sua identidade profunda e fora cortado dos vínculos a ela referidos, os indivíduos que hoje vivem “cada um por si” apenas escancaram a marca da sociedade que fragilizou os vínculos e o caráter coletivo da vida. Ir para uma festa e multiplicar a contaminação – que em alguns casos até trará como consequência a própria morte e na maioria a morte dos outros – é atitude própria de uma cultura caracterizada pela busca intensa por satisfação que, de tão imediata e instantânea, não chega a ser realmente atendida, só aumenta a sede. Falta uma finalidade, um telos para a própria busca e para as escolhas feitas em meio a ela.

Podemos falar de pessoas tomadas pelo complexo do puer aeternus, da juventude eterna, com seu perfil de dificuldade de comprometer-se, colocar os pés no chão, dar continuidade aos projetos (ou ao isolamento social, no caso), viver dos impulsos e emoções do aqui e agora, sem medir as consequências, entre outros pontos. No entanto, não dá para ignorar que esta sociedade é berço de puer aeterni. Fuga, evitação, descompromisso e invisibilidade são características da atualidade, bem aproveitadas por quem detém o poder. Não existem mais “causas comuns” que captem entrega e consideração, pois não se percebe interfaces entre os próprios problemas e os dos demais. Comunidades e parcerias que ainda surgem têm vínculos frágeis e transitórios. “Agora’ é a palavra-chave da estratégia da vida” (BAUMAN, 2014, p. 204).

E eis que surge um vírus, cuja transmissão é comunitária. Como a Guerra de Troia, é através da dizimação de muita gente que ele vem pôr em xeque-mate o nosso desequilíbrio. A Covid-19 precisará matar quantos mais para tirar-nos ao menos um pouco da polaridade individualista para a coletividade da vida?

Possibilidades em reticências…

Para Páris, a possibilidade não percebida estava no mensageiro. Numa perspectiva psicológica, Hermes faria a função de psicopompo, um guia para a alma, capaz de levar a uma maior consciência de si na junção dos opostos e união de consciente e inconsciente. Apesar das imagens de mundo parecerem irreconciliáveis, segundo Jung (2018, §23), a humanidade sempre sentiu a necessidade de uni-las, e isso se dá simbolicamente, “pois é da essência do símbolo conter ambos os lados, o racional e o irracional” (§24).

As mensagens atuais, focadas em dados científicos, infográficos e normas, não dão conta da busca de satisfação que geram atitudes contrárias aos alertas – vide o embate aglomerações X “fique em casa”. Concordamos com Hillman (1999) quando afirma que ao puer não falta só realidade mundana, falta realidade psíquica. Aliás, uma está ligada à outra – as buscas incessantes revelam uma sede mais profunda. E justamente essa sede, que literalizada leva à festa, escutada mesmo que por um momento pode levar à descoberta de um espaço interior, a um olhar para si que permita questionar o sentido da própria vida – pergunta humanizante que traz de volta a alma.

De fato, ao puer não falta apenas o outro lado, o senex, mas eles parecem irreconciliáveis – os alertas à proteção soam mesmo como “coisa de velho” – porque falta alma. Exatamente na sede do puer de sair, de alçar voos, reside a demanda interior. Em sua multiplicidade, a alma faz exigências, tem caprichos, irrita-se, lamenta, reclama, chora. O puer primeiro combate o incômodo interior, o que já é um voltar-se e prestar atenção à existência de uma interioridade até então ignorada e projetada, lançada para fora de si. 

Olhar para o que incomoda e se mostra como inadequado e escapando de todo controle é uma atitude conflitiva. Porém, é justamente essa atitude que faz descobrir no incômodo interior uma fonte preciosa, reveladora de outras facetas do próprio indivíduo. Somente aí a força criativa (puer) e a sabedoria (senex) podem unir-se, levando à entrega à vida aquele que o tempo todo expunha a si e aos demais ao risco da morte.

Tania Pulier, membro analista em formação pelo IJEP

tania.pulier@gmail.com

Referências 

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

HILLMAN, James. O livro do puer: ensaios sobre o Arquétipo do Puer Aeternus. São Paulo: Paulus, 1999.

JUNG, Carl Gustav. Civilização em transição. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2018


[i] Cf. LEITE, I.; LUDER, A. Participação de jovens no total de casos de Covid-19 em São Paulo cresce 25,7%. G1, Globonews, 23 nov. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/11/23/participacao-de-jovens-no-total-de-casos-de-covid-19-em-sao-paulo-cresce-257percent.ghtml. Acesso em 23 nov. 2020.

[ii] Cf. MUNDO registra novo recorde de mortes por Covid; África ultrapassa 2 milhões de casos. G1, 19 nov. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/11/19/mundo-registra-novo-recorde-de-mortes-por-covid-africa-ultrapassa-2-milhoes-de-casos.ghtml. Acesso em 26 nov. 2020.

OBS: Fonte da imagem: Blender Artists

Tania Pulier

Exit mobile version