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A inflação nossa de cada dia

Nesse artigo reflito sobre a ideia de que na sociedade contemporânea a inflação e a identificação com os complexos são a regra. O indivíduo que se propõe ao trabalho verdadeiro de aprofundamento em si mesmo precisa lutar, não só contra as suas próprias resistências, mas também, e talvez com mais dificuldade, contra as projeções e identificações do entorno relacional, determinados pelo espírito da época e reforçados pela cultura capitalista que se recusa a fazer o exercício crítico e reflexivo sobre as suas próprias sombras.

Numa sociedade que reforça a identificação patológica com os complexos, como o indivíduo pode encontrar a coragem e a vontade necessárias para se entregar religiosamente para o processo do autoconhecimento, considerando a participação do inconsciente como ser autônomo e portador de uma inteligência superior à da consciência? Em outras palavras, para a aventura que podemos enxergar na imagem do arquétipo da jornada do herói que reflete o caminho que o ego precisa fazer para a criação de consciência integrada com a alma.

Para a reflexão proposta aqui, logo de início, temos que manter em mente que o ego não é o herói, porém ele tem o potencial para viver essa jornada arquetípica de maneira verdadeira e completa (Franz, 1990). O indivíduo consegue fazer isso exatamente quando recupera de maneira consciente, repetidamente durante todo o processo, o conhecimento de sua pequenez, não caindo na identificação unilateral com a imagem do herói; situação típica da contemporaneidade que leva a um estado de inflação. Abrindo mão do poder e do tesouro obtido no final da aventura em favor da coletividade (Campbell, 2004), sempre trabalhando para desidentificar a si mesmo do si-mesmo, a pessoa pode retornar, no final da aventura, à sua condição de mortal, assumindo sua humanidade e caminhando para o processo de individuação. Ou seja, o ego completa a jornada quando percebe que, como artifex (artesão), não tem controle sobre o processo, mas mesmo assim precisa entregar-se para ele, tornando-se, como diz C. G. Jung (2011d), “terreno fértil” para aquilo que pode germinar em si através do exercício da capacidade crítica e reflexiva da consciência.

Essa jornada requer, entre outras coisas, a sustentação angustiante da ignorância do resultado, a aceitação da falta de qualquer garantia de que aquilo que surge como recompensa corresponde aos desejos do ego. Desilusões e decepções inevitavelmente surgirão porque as projeções são inevitáveis (Jung, Carl Gustav, 2011b). Isso irá fazer surgir dúvidas e, se a fé na própria alma não encontra suporte egóico daquele que se encontra identificado com a persona e com o espírito da época, ocorrem regressões, a jornada não é completada e o processo precisa ser reiniciado. Porém é importante apontar que nem toda regressão é necessariamente negativa, muitas vezes elas são necessárias para que o ego se estruture de maneira diferente a partir da criação de consciência sobre novos fatos e situações, para que então seja possível seguir em frente numa nova tentativa de evolução. Isso tudo exige prontidão – em seus mais variados aspectos – e pode acontecer a partir daquilo que Jung igualou ao relegere, uma atitude religiosa de releitura reflexiva disciplinada e minuciosa dos fenômenos simbólicos que conectam as realidades interna e externa (Jung, Carl Gustav, 2011a).

O espírito da época invade mesmo aqueles que parecem bem-intencionados e que despejam discursos de bondade e suposta sabedoria, mas que no fundo vivem seguindo os ditames desse espírito, que na contemporaneidade se revela principalmente como neoprotestante e capitalista predatório. Fazem isso inconscientes de suas atitudes, acreditam, do alto de sua inflação de identificação com a imagem do herói, que são os líderes salvadores e influenciadores da massa, para utilizar uma expressão bastante usada atualmente. Porém, os sintomas individuais e coletivos não tardam a surgir, mostrando que da profundidade psíquica irrompe uma tentativa de correção desse comportamento, uma compensação imposta pela totalidade psíquica, o que conhecemos psicologicamente de acordo com a teoria junguiana como o si-mesmo ou Self.

Em sua análise psicológica sobre a visões do Santo padroeiro da Suíça, Niklaus von Flüe, conhecido também como Bruder Klaus, Marie-Louise von Franz descreve uma visão que ele teve durante seu isolamento:

Pouco depois de ter começado sua vida em retiro, ele foi ao prado em Melch para cortar a grama e, no caminho, rezou a Deus, pedindo a graça de viver uma vida piedosa. Naquele momento, uma nuvem no céu falou com ele e lhe disse para se submeter à vontade de Deus. Ela (a voz) disse que ele era um homem tolo e deveria estar disposto a se submeter ao que Deus queria dele.[1]

Von Franz, 2022, p. 30.

Essa imagem revela algo de extrema importância que está conectado com a discussão proposta aqui. Muitas vezes o ego acredita que, porque está escolhendo valores que lhe parecem corretos e superiores, está seguindo o caminho de realização do mito do significado individual, ou seja, o processo de individuação. Porém, o inconsciente intercede mostrando que a identificação com essas ideias também pode não passar de inflação. Como afirma Jung, o ser humano sem sombra é irreal (Jung, Carl Gustav, 2011c); a sombra também é uma expressão da totalidade. Pedir a Deus – ou para quaisquer outras personagens consideradas divinas – para que vivamos somente uma vida de equilíbrio idealizado, unilateralizados, com foco somente naquilo que acreditamos trazer alegrias e realizações do ponto de vista egóico e acreditar que esse é o caminho do processo de individuação, não passa de autoengano egóico e autoerótico. Na imagem descrita por von Franz, a voz de Deus, psicologicamente compreendida como uma expressão do Self, alerta Niklaus von Flüe que não cabe a ele a decisão ou a escolha absoluta sobre como sua vida deve prosseguir, mas sim à dimensão divina e arquetípica (Von Franz, 2022). O ego deve se submeter à vontade do Self, mesmo que muitas vezes tenha de agir contrariamente às vontades e desejos do entorno relacional, assim como às suas próprias vontades e desejos.

Como afirma também Marie-Louise von Franz em seu capítulo O processo de individuação, no livro O homem e seus símbolos:

Quando uma pessoa tenta obedecer ao inconsciente, fica muitas vezes, como vimos, impossibilitada de fazer o que quer. E vai estar igualmente incapacitada de fazer o que as outras pessoas querem que ela faça. Acontece muitas vezes que precisará separar-se do seu grupo – família, parceiro ou outras relações pessoais – para poder encontrar-se. É por isso que se diz que atendendo ao inconsciente as pessoas tornam-se antisociais ou egocêntricas.

Jung; Henderson; Von Franz; Jaffé et al., 2016, p. 292.

Vivemos então numa situação de inflação individual e coletiva, ditada pelo espírito da época que ensina que cada indivíduo precisa ser um herói, mostrando isso nas suas ações e conquistas, no seu poderio financeiro, material, político, social e intelectual. Tudo isso registrado diariamente e publicado através de postagens nas redes sociais que nada revelam a não ser a persona e a tentativa compensatória de solução da angústia humana fundamental que acompanha cada um de nós. Todo esse mecanismo faz com que o usuário acredite estar monetizando o conteúdo que produz, quando na verdade ele mesmo, seu tempo de vida, seu corpo e seu espírito, são monetizados pelas grandes corporações que controlam essa dinâmica através dos algoritmos. Isso sem tocarmos com profundidade na manipulação da opinião pública que acompanha disputas políticas populistas que mais lembram atos circenses de palhaços que se atacam com cadeiradas do que debates que deveriam levar em consideração a coletividade. Parece que as pessoas precisam se agarrar ao sentimento de superioridade heroico para aplacar o vazio existencial e a pequenez não reconhecida do ego perante a totalidade. A sua miserabilidade anímica é compensada pela falsa grandiosidade alcançada através das curtidas obtidas nas redes sociais. Como afirma Byung Chul-Han (2021), a curtida substitui o amém, assim cada uma delas faz com que o indivíduo se sinta como um deus; pura inflação.

Além dos conflitos internos inerentes a esse processo, quando alguém consegue aceitar essas condições e se dedicar religiosamente ao conhecimento de si mesmo, o problema se torna ainda mais complicado quando as mudanças começam a ser percebidas do lado de fora, já que o próprio entorno relacional se incomoda e não suporta a transformação daquele que se empenha verdadeiramente nessa jornada. Isso está conectado com a afirmação de Marie-Louise von Franz, quando a autora fala na citação anterior sobre a acusação de que as pessoas que se dedicam ao trabalho com o inconsciente sofrem, sendo consideradas egocêntricas e antissociais. Para se libertar da condição de objeto de depósito das projeções patológicas das pessoas à sua volta, o indivíduo precisará de coragem, empenho, suporte de si mesmo e do Self.

Como afirma Joseph Campbell:

(…) o indivíduo moderno que tem a coragem de atender ao chamado e empreender a busca da morada dessa presença, com a qual todo o nosso destino deve ser sintonizado, não pode — e, na verdade, não deve — esperar que sua comunidade rejeite a degradação gerada pelo orgulho, pelo medo, pela avareza racionalizada e pela incompreensão santificada. “Vive”, diz Nietzsche, “como se o dia tivesse chegado.” Não é a sociedade que deve orientar e salvar o herói criativo; deve ocorrer precisamente o contrário. Dessa maneira, todos compartilhamos da suprema provação — todos carregamos a cruz do redentor —, não nos momentos brilhantes das grandes vitórias da tribo, mas nos silêncios do nosso próprio desespero.

Campbell, 2004, p. 206.

Apesar de encontrarmos atualmente uma grande quantidade de pessoas que afirmam se dedicar à psicologia profunda nas suas mais diferentes expressões, e isso pode até ser verdade do ponto de vista conceitual, utilizo as palavras do próprio Jung, as quais acredito ainda serem verdade, para dizer que quando se trata de dar verdadeira atenção aos conteúdos do inconsciente e aceitar a realidade da alma, isso não parece ser o que acontece:

Devo, entretanto, chamar agora a atenção do meu leitor, que talvez não esteja bem familiarizado nem com a alquimia, nem com a psicologia moderna do inconsciente, para o fato de que hoje em dia só com extrema raridade alguém entra em tal situação. Já nenhuma pessoa tem simpatia para com a perplexidade de um pesquisador que manipula substâncias mágicas, e existem, extremamente poucos que experimentaram no próprio corpo os efeitos de uma análise do inconsciente, e, por assim dizer, ninguém incorre na ideia de tomar para meditação aquelas alusões objetivas que os sonhos trazem.

Jung, 2018, p. 313.

Utilizando os sonhos como exemplo de expressão simbólica, Jung insistia que o trabalho com os conteúdos do inconsciente é demorado e requer paciência, dedicação disciplinada e tempo. Ele fala não só da passagem do tempo para que a maturação e o próprio processo alquímico aconteçam, mas também da importância do tempo diário, aquele que usamos de maneira consciente para nos sentarmos perante nós mesmos, olhando e destilando as imagens oníricas que nos foram presenteadas pelo Self, circumambulando pacientemente esse material para que o sentido e o significado surjam Deo concedente (concedidos por Deus), e não por simples desejo do ego. Sabemos que a paciência não é uma característica do espírito da época, que prega exatamente o contrário: a pressa e a velocidade. Por isso, o ego identificado com esse espírito, inflado com suas exigências modernas, não suporta precisar esperar pela intervenção divina no processo.

No taoísmo encontramos a mesma visão, afirmada da seguinte maneira no capítulo 50 do Tao Te Ching, segundo a tradução de James Legge:

De cada dez (homens), três são ministros da vida (para si mesmos); e três são ministros da morte. Há também três em cada dez cujo objetivo é viver, mas cujos movimentos tendem para a terra (ou lugar) da morte. E por qual razão? Por causa de seus esforços excessivos para perpetuar a vida.[2]

Legge, 2013, p. 50.

Não irei me alongar na ampliação desse trecho do livro, farei isso em outra oportunidade. Por hora, podemos dizer a partir de uma leitura simbólica dos dizeres do Tao Te Ching que, a cada dez pessoas, um indivíduo tem a coragem para mergulhar no mundo interior, ouvir a vontade do Self e se entregar para o processo de realização do mito do significado que é supraordenado e não definido pelo ego. Os outros nove se perdem entre identificações com a vida ou com a morte (esses números não devem ser compreendidos literalmente, mas como imagem da dificuldade que enfrentamos aqui). O texto do Tao Te Ching irá continuar explicando que nem morte e nem vida encontram lugar para se fixar no coração do homem sábio, porque ele não se identifica com nenhuma delas. Exatamente por não se identificar com nenhum dos opostos, pode viver enquanto morre, pode morrer enquanto vive. Compreende que, enquanto indivíduos, somos seres intermediários; egos e não deuses. O contrário disso é inflação, que surge muitas vezes nos pequenos momentos em que criamos consciência de alguns aspectos ou conteúdos internos, para logo nos identificarmos com um deles ou com a grandiosidade do próprio Self, confundindo mais uma vez o que somos enquanto ego, com aquilo que somos como totalidade.

Nas palavras do próprio Jung:

Sendo assim, existem igualmente demônios nas ilhas da consciência, demônios que nos possuem. Em uma linguagem psicológica: lá somos possuídos por um afeto uma vez que nos identificamos inteiramente com ele, pois no afeto podemos ser inteiramente o que sentimos. Por isso, ele também tem algo fascinante. Existem muitas pessoas que idolatram sempre o afeto com o qual se identificam naquele momento.

Jung, C. G., 2011, p. 96.

Para encerrar essa reflexão, trago a imagem descrita por D. T. Suzuki em seu livro Introdução ao Zen Budismo que conta com prefácio e comentários de C. G. Jung. Suzuki fala aqui da necessidade de desidentificação à qual nos referíamos durante todo o texto, para que seja possível que o Self se manifeste através do ego, fazendo uso da luz da consciência que ele mesmo, ou seja o Self, concedeu primeiramente ao ego:

José Luiz Balestrini Junior – Analista Didata em Formação

Waldemar Magaldi – Analista Didata Responsável

Crédito da imagem: Balloon Race by Hiro Yamagata. Pode ser usada para propósitos educativos. Pode ser encontrada no link: https://www.wikiart.org/en/hiro-yamagata/balloon-race-1990.


[1] No original: “Shortly after he had begun his life in retreat, he went to the meadow in Melch to cut the grass and, on the way, he prayed to God, asking for the grace to live a pious life. At that moment, a cloud in the sky spoke to him and told him to submit to the will of God. It said he was a foolish man and should be willing to submit to what God wanted of him”.

[2] “Of every ten three are minister of life (to themselves); and three are minister of death. There are also three in every ten whose aim is to live, but whose movements tend to the land (or place) of death. And for what reason? Because of their excessive endeavors to perpetuate life” (TTK, cap. 50).

[3] Transform your body and your spirit into a bit of inanimate nature, like a stone, or a piece of wood. When you are completely turned inwards so that all signs of life disappear, then suddenly a plenitude of light will enter you, like a light out of the deppest darkness. Then the Self, freee of all sophistry, will be revealed, the orignal face of your own being, the the marvellous landscape of your original home will be unveilled. There is only one direct way which is open and without hindrance and you can enter upon it as soon as you have given everything away.

Referências:

CAMPBELL, Joseph. Herói de Mil Faces, O.  Cholsamaj Fundacion, 2004. 8531502942.

FRANZ, Marie-Louise von. A interpretação dos contos de fada. São Paulo: Paulinas, 1990.

HAN, Byung-Chul. O desaparecimento dos rituais: uma topologia do presente.  Editora Vozes, 2021. 6557133330.

JUNG, C. G. Seminários sobre sonhos de crianças. Vozes, 2011.

JUNG, Carl G; HENDERSON, Joseph L; VON FRANZ, M-L; JAFFÉ, Aniela et al. O homem e seus símbolos.  HarperCollins Brasil, 2016. 8595081468.

JUNG, Carl Gustav. Interpretação psicológica do dogma da trindade.  Editora Vozes Limitada, 2011a. 8532641083.

JUNG, Carl Gustav. Mysterium Coniunctionis 14/1: Os componentes da Coniunctio; Paradoxa; As personificações dos opostos.  Editora Vozes Limitada, 2011b. 8532641261.

JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique.  Editora Vozes Limitada, 2011c. 8532641342.

JUNG, Carl Gustav. O espírito na arte e na ciência.  Editora Vozes Limitada, 2011d. 8532641024.

JUNG, CG. Mysterium Coniunctionis 14/2.  Editora Vozes Limitada, 2018. 8532658407.

LEGGE, James. Tao Te Ching (Legge).  Simon and Schuster, 2013. 1625583095.

SUZUKI, Daisetz Teitaro. An introduction to zen buddhism.  Grove Press, 1991. 0802130550.

VON FRANZ, Marie-Louise. Niklaus Von Flüe And Saint Perpetua: A Psychological Interpretation of Their Visions.  Chiron Publications, 2022. 1685030319.

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