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A mentira que falta à verdade: a tensão criativa entre hermes e apolo

A mentira que falta à verdade: a tensão criativa entre Hermes e Apolo. Psicologia Junguiana

Hermes, o esperto mensageiro dos deuses; o deus da comunicação, do comércio, o inventor, o gentil e benfazejo, é também o deus da trapaça, da mentira, o trickster que a todos surpreende e confunde. Ainda bebê, esse deus furta as reses vigiadas por Apolo. Em busca de reaver o rebanho, o deus solar apela a Zeus, o pai de ambos. Este questiona Hermes que veementemente nega seu envolvimento no furto. Zeus, sabendo-o culpado, condena o deus da mentira a dizer sempre a verdade. O astucioso Hermes não tem escolha a não ser obedecer ao grande Zeus. Fiel a si mesmo, com habilidade e destreza, ao mesmo tempo Hermes concorda e tergiversa dizendo: de agora em diante nunca mais faltarei com a verdade, mas não estarei obrigado a dizer a verdade por inteiro. Apolo reconhece a astúcia e a coragem de Hermes – a um só tempo, também tão amável e sedutor – e o perdoa, aceitando trocar a lira criada por Hermes pelo gado furtado mais o caduceu, que esse lhe pede em adição nesta troca… E desde então, esses dois meios irmãos, tão semelhantes fisicamente entre si, o deus da luz e da verdade e o deus da astúcia e da mentira, tornaram-se grandes amigos, sempre unidos e protegidos pelo deus do trovão, pai de ambos, Zeus, o grande senhor do Olimpo (BRANDÃO, 2015/1987, pp. 199-217; BULFINCH, 2018/1881, p.20; CIVITA, 1973b, pp. 199-200; SEARS, 2015, pp. 145-9).

Apesar de trapaceiro e “muitas vezes infantil, Hermes também podia ser responsável e confiável quando necessário” (SEARS, 2015, p. 149). Muitas eram suas tarefas e habilidades, “a grande tarefa de Hermes, no entanto, consistia em ser o intérprete da vontade dos deuses” (CIVITA, 1973b, p. 203). Para além dos julgamentos morais, como se situa a mentira como produto e expressão da atividade psíquica? O que ela pode estar expressando? Poderá ser uma “intérprete da vontade dos deuses”? De qual ou quais deuses? O que querem nos dizer esses deuses por meio da mentira? Estará ela transgredindo ou escondendo algo, com qual finalidade? Estará talvez a mentira protegendo uma fragilidade? Poderá a mentira se caracterizar como uma defesa da consciência contra algo de que não se quer recordar ou confrontar porque incomoda (por exemplo, em face da idealização de si mesmo)? E, desse modo, pode a mentira ser caracterizada também como uma proteção contra ação precipitada, propiciando avaliação mais acurada de prós e contras antes de se assumir uma nova atitude, uma nova ação? (conferir JUNG, 1990, pp.6-7, §16 e p.12, §27). Metaforicamente, o que diz a mentira sobre o que está acontecendo no interior da pessoa que mente, na vida daquela pessoa? Afinal, o deus da mentira se propôs a não faltar com a verdade, mas não a dizer a verdade por inteiro. Há que se trabalhar terapeuticamente e investigar o que de fato ocorre em um nível mais profundo.

Neste sentido, o presente trabalho se propõe a refletir sobre a mentira e, em especial, sobre a mentira do paciente em seus relatos sobre si mesmo, sobre eventos ou sobre outrem quando em terapia; suas possíveis motivações, contextos, implicações e principalmente elaborar algumas aproximações sobre os possíveis significados psicológicos do ato de mentir ao terapeuta. Para ampliar o contexto dessa reflexão, ideias e processos descritos por Jung serão confrontados com aportes de Espinosa, Hegel e Nietzsche e da Mitologia Grega, na figura do deus Hermes, cujo aspecto empregado do mito é sintetizado acima, na abertura deste texto.

Sob a luz metafórica inicial, trazida pelo mito de Hermes e a partir das questões acima apresentadas, vamos começar a refletir sobre o que são mentiras – e o que é a verdade, o verdadeiro, e como esses se relacionam com a dinâmica psíquica, segundo o contexto da psicologia analítica de Carl Gustav Jung.

De acordo com o Dicionário Junguiano (PIERI, 2002, p. 318) entende-se por mentira “qualquer asserção que altera, de vários modos e para diversos fins, aquilo que é verdadeiro e real”. Aquele que mente ou seu destinatário consideram falsa uma asserção por esta divergir do que cada um considera verdadeiro. Ainda, a mentira resultará da intencionalidade ao se comunicar algo que se sabe diverso do verdadeiro. Também envolve uma atitude valorativa com relação a um saber específico (idem). Ainda, ao afirmamos ser bom o que nos parece mau, o efeito é uma mentira (JUNG, 2013a, p. 205, §863). Em face do exposto, pode ressaltar que a mentira se refere em termos de atitude interna, ao não diálogo, à não disponibilidade para o diálogo.

Jung (2011) discrimina a mentira consciente deliberada da patológica, diferenciando-as em especial com relação à responsabilidade do sujeito para com as consequências de seu ato. A mentira patológica está associada a quadros clínicos autônomos (ibidem, p. 27, §34). Pode haver em uma pessoa, por exemplo, “duas personalidades existindo lado a lado ou sucessivamente, cada qual lutando pela supremacia” (ibidem, p. 36, §44). Frequentemente, uma delas não tem a memória do que faz a outra e vice-versa. Personalidades inconscientes podem emergir e fenômenos desagregados podem se manter separados da consciência normal do sujeito (ibidem, p. 66, §93) e pode ocorrer dissociação entre a consciência e a memória (ibidem, p.76, §110).  A mentira patológica pode estar associada a esses fenômenos. Jung (2011, p.79, §116) cita o exemplo em que a paciente “constrói uma pessoa que está além de si mesma”. Acrescenta não se poder dizer que ela “minta para si”, mas que “ela se transfira em sonhos” para o estado ideal que considera mais elevado. Jung cita comportamentos patológicos “com falsificação autossugerida da memória, chegando mesmo a delírios e alucinações propriamente ditos” – comentando serem esses eventos muitas vezes encontrados na vida dos santos (Jung, 2011, p. 80, §117). E acrescenta, “o mentiroso patológico que se deixa levar por suas fantasias comporta-se da mesma forma que a criança que se perde dentro do jogo, ou como o ator que mergulha totalmente em seu papel” e ainda, “quanto mais se dissocia a consciência (…) menor se tornará também a parcela da mentira consciente e da consciência em geral” (ibidem, pp. 80-1, §117). Ou seja, a pessoa pode acreditar de fato serem verdades aquilo que para os demais são mentiras que perpetra. A histeria seria o tipo de patologia em que o “mentir” se manifestaria com maior frequência (ibidem, p. 168, §302). Entretanto, em mentirosos contumazes, muitas vezes é difícil caracterizar com certeza os traços de histeria. Jung (2011, p. 168, §303) ressalta o quanto mentir de modo bem sucedido requer energia: “às vezes há grandes exigências na arte de fingir, autocontrole e pertinácia”, ou seja, mentir consciente e deliberadamente requer obstinação, persistência e mesmo, teimosia, além de exigir grande autocontrole. O hábito de mentir pode se tornar tão habitual que a pessoa de fato mente para si mesma. Novamente estamos no limite em que a mentira consciente cede lugar à patologia. Jung (2011, p. 169-70, § 304) comenta: “os mentirosos mais seguros são os embusteiros patológicos e o convincente em sua mentira está no fato de eles mesmos acreditarem nela, pois já não conseguem distinguir entre verdade e ficção”. Ao contrário do ator, que sabe quando seu papel termina, o mentiroso patológico segue adiante “numa fantástica mistura de duas esferas de pensar que se excluem mutuamente”, podendo mesmo estar envolvida uma dupla consciência. Para Jung, entretanto, também “não se pode esquecer que grande parte dos simuladores são histéricos e, portanto, trazem em si um solo muito propício à autossugestão e distúrbios da consciência” (ibidem, p.71). A mentira consciente e deliberada não ocorre sem custos para a personalidade, conforme comenta Jung: “a arte consciente de fingir é um dom tão raro que não pode ser pressuposto sem mais nos simuladores; o fingimento prolongado exige uma energia que ultrapassa a medida normal, qualitativa e quantitativamente”. E continua: “não se deve acreditar que exista enquanto não se excluir com absoluta certeza o mais comum, ou seja, a histeria” (ibidem, §305), na qual poderia haver “autoengano patológico” (ibidem, p. 216, §437).  Jung considera que a histeria limita a responsabilidade do sujeito, dado que, “devido à força de suas emoções, os histéricos são sempre vítimas delas; eles, por assim dizer, não são donos de si mesmos, mas estão entregues à emoção do momento”. E acrescenta, talvez considerando ser o limite entre a patologia e a pretensa normalidade uma questão antes de intensidade que de qualidade: “todos sabemos o quanto a emoção pode turvar o julgamento e prejudicar a reflexão” (JUNG, 2011, p. 223, §475)

Em seu texto “Verdade e mentira no sentido extra-moral”, Nietzsche (1974/1873, §1, p. 54) pondera ser a busca da paz, definida pela ausência de guerra de todos contra todos, o contexto em que “é fixado aquilo que doravante deve ser ‘verdade’, isto é, é descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas” – o que requer um nível de consenso social e cultural. Mais adiante acrescenta que a verdade pura sem consequências é a “coisa em si” (ibidem, p. 55), à qual, nós humanos não temos acesso direto. Também no mundo grego, a Verdade era “uma divindade alegórica, representada como uma mulher nua, de porte majestoso” (CIVITA, 1973a, p. 186) e como sabemos, nós humanos não temos acesso direto aos deuses. No entanto, conforme Hegel (1770-1831) (discutido em Novelli, 2013, p. 38) “é pelo relativo que o absoluto se manifesta, pois o absoluto somente consegue sair de si revitalizando-se” – para o quê é indispensável a contingência “para que o ir além possa sempre tomar lugar”. O absoluto se expressa “na relatividade das contingências históricas” (ibidem, p.33). “O esforço hegeliano foi recuperar a historicidade do real”. No contexto dessa reflexão, “a verdade é sempre (…) uma situação em processo e um processo situado (…). Envolvendo-se com o real, a verdade apaixona-se pelos indivíduos e age no meio destes na história” (idem).

Em curso livre, o professor George Barcat (2014) ressalta que Nietzsche (1844-1900) apoiando-se em Espinosa (1632-1677) propõe uma inteligência afetiva ou um afeto inteligente. Considera que os conceitos morais são como constructos humanos e, portanto, falíveis. Com apoio em Hagel (1770-1831), Nietzsche considera que toda verdade “o é por enquanto”. Considera a verdade como um operador que usamos em busca de compreensão, não é uma descrição da realidade em si. Refere-se a avalições associadas à realidade psicofísica daquele que avalia, avaliações essas que mudam com o tempo. Ou seja, avaliações que definem o que é verdade em um dado tempo e lugar e de acordo com a história de vida de cada um.

Ainda com base em Nietzsche, Barcat (2014) ressalta que nossos valores, quando atrelados a um tipo especial de razão, a que opera calculando custos-benefícios, tornam-se negação de valores verdadeiros. Para Nietzsche, ao deixar de fazer algo devido a uma regra, o indivíduo torna-se um fraco. Ao deixar de fazer algo porque é nocivo para si ou para outrem, é um forte. Não é possível, portanto, universalizar seja uma regra, seja um valor. Pondera também que o eu é uma arena onde ocorre um conflito insolúvel de impulsos diferentes, cada um buscando a dominação. Nesse contexto, individuum seria uma singularidade rígida, unilateralizada em torno de valores considerados universais; dividuum se referiria a uma pluralidade flexível, não baseada em universais (Barcat, 2014). De fato, ao optar por mentir ou assumir em sua expressão o consenso como realidade, uma pessoa precisa lidar com as diferentes vontades que em si habitam.

Dissertando sobre a verdade de acordo com Hegel, Novelli (2013, p.28) destaca a verdade moral como “conformidade das palavras com o pensamento”. Destaca que deste modo, “a verdade pode ser vista diversamente” e “teria várias expressões e implicações” – “a verdade se dá nas relações que a consciência trava”.  A verdade não apenas é fruto de um processo, ela é o processo (idem). E mesmo, ao longo do desenvolvimento humano há diferentes formas de relação com a verdade. Explica que “se por um lado a verdade é constituída pela multiplicidade, pelo plural, por outro lado, ela precisa assumir uma perspectiva de unidade onde a diversidade é reunida sem que com isso a própria diversidade desapareça” (ibidem, p. 29). Isso propõe uma tarefa difícil que em dados momentos do desenvolvimento humano, leva ao questionamento de si mesmo, o que o levará à consciência de si (ibidem, p. 30). Para Hegel, o desenvolvimento da consciência culminará na percepção por parte do sujeito, de que “faz parte de um todo universal em relação a tudo que é e faz”. Essa inserção histórica não ocorre de modo fácil. Esbarra-se em conflitos de interesses regulados (ou não) por leis e, “sabe-se que a lei é válida, mas possui seus limites” e, portanto, “Hegel recomenda uma atitude crítica diante das leis” (ibidem, p.32). O sujeito poderá chegar a um momento em seu desenvolvimento em que conseguirá, por meio da intersubjetividade, reconhecer também, a liberdade do outro.

Nietzsche, por outro lado, propõe que “o mentiroso usa as designações válidas, as palavras, para fazer aparecer o não-efetivo como efetivo”. Explica que ao mentir, o ser humano “faz mal uso das firmes convenções por meio de trocas arbitrárias ou mesmo inversões dos nomes” (NIETZSCHE, 1974/1873, §1, p. 54). Com relação ao ato de mentir realizado por um ser humano e ao apreço humano pela verdade, comenta ainda Nietzsche:

Se ele [o que mente] o faz de maneira egoísta e de resto prejudicial, a sociedade não confiará mais nele e com isso o excluirá de si. Os homens, nisso, não procuram tanto evitar serem enganados, quanto serem prejudicados pelo engano: o que odeiam, mesmo nesse nível, no fundo não é a ilusão, mas consequências nocivas, hostis de certas espécies de ilusões. É também em um sentido restrito semelhante que o homem quer somente a verdade: deseja as consequências da verdade que são agradáveis e conservam a vida; diante do conhecimento puro sem consequências ele é indiferente, diante das verdades talvez perniciosas e destrutivas ele tem disposição até mesmo hostil” (NIETZSCHE, 1974/1873, §1, p. 54-5).

Em face do exposto, cabe refletir sobre quantos e quais papéis a verdade pode representar na vida de uma pessoa ou coletividade. Cabe abordar ainda, uma outra dimensão da verdade, esta, hegemônica como verdade, no mundo contemporâneo.

Hermes, o deus da mentira, é também o inventor da ciência (CIVITA, 1973b, p.179), nossa grande fonte de verdade contemporânea. O que nos disse Nietzsche, com relação à verdade no âmbito da ciência? Com extraordinária contemporaneidade, comenta Nietzsche (1974/1881-2, §344, p. 220): “somente quando elas [as verdades] se resolvem a rebaixar-se à modéstia de uma hipótese, de um ponto de vista provisório de ensaio, de uma ficção regulativa, pode ser-lhes concedida a entrada e até mesmo um certo valor dentro do reino do conhecimento”, permanecendo ainda assim, sempre sob vigilância. Entretanto, acrescenta com ênfase, mais adiante: “não há nenhuma ciência ‘sem pressupostos’” e, portanto, não há ciência sem convicção a priori, convicção esta “tão imperiosa e incondicional, que sacrifica a si mesma todas as outras convicções” (idem). E nesse contexto, Nietzsche ressalta haver na ciência uma “incondicionada vontade de verdade”. Para alcançar a verdade e evitar o engano devemos sempre duvidar ou sempre crer? Nietzsche questiona: “O que sabeis de antemão do caráter da existência, para poder decidir se a maior vantagem está do lado do desconfiado incondicional ou do confiante incondicional? Questiona ainda: por que não querer enganar, dado haver a aparência de que a vida depende da aparência, ou seja, do erro, da impostura, do disfarce, do cegamento e do auto cegamento (ibidem, p. 221). Dado ainda, ser a ciência baseada a priori em convicções, Nietzsche questiona a convicção incondicional “de que a verdade é mais importante do que qualquer outra coisa, do que qualquer outra convicção” (idem). Acrescenta que tanto a verdade como a inverdade se mostram constantemente úteis. Ressalta ser perigosa e inútil a referida “‘vontade de verdade’, da ‘verdade a todo preço’” pela qual podemos trucidar “uma crença após outra sobre esse altar!” (idem). E, ressalta que a vontade de verdade não se refere a não querer se deixar enganar, mas a não haver escolha, a não querer enganar nem a si mesmo – o que para Nietzsche coloca a questão no terreno da moral. Segundo Nietzsche, a moral é “um lugar de paz” onde mesmo “os pensadores repousam de si mesmos, respiram, revivem”. Para ele “o característico da ação moral reside na renúncia a si, na negação de si, no sacrifício de si mesmo, ou na simpatia, na compaixão.” Considera-a a “mais célebre de todas as medicinas” (NIESTZSCHE, 1974/1881-2, §345, p. 222). Nesse contexto, porém, ressalta: não querer enganar poderia ser até mesmo um princípio destrutivo, hostil à vida, poderia ser uma velada vontade de morte. Questiona a aderência da ciência à moral, dado que reconhece vida, natureza e história como “imorais” A ciência estaria então negando o mundo tal como se apresenta, seria seu reverso. Apresentadas essas ideias, acrescenta então, que “é sempre ainda sobre uma crença metafísica que repousa nossa crença na ciência. Deste modo, para Nietzsche “também nosso fogo, nós [os “conhecedores de hoje”] o tiramos ainda da fogueira que uma crença milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também a crença de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina (…)”. Questiona ainda: “[e] se Deus mesmo se mostrar como nossa mais longa mentira?” (NIETZSCHE, 1974/1881-2, §344, p. 220). Ou seja, nossa mais cara fonte de verdades contemporâneas, de objetividade, pode resvalar em tantas convicções prévias, em tanta crença de fato “não científica”, em tantas versões convenientemente apropriadas da Verdade Absoluta configurada como Deus… E Nietzsche pondera: “Em que medida nós também somos devotos ainda?” (ibidem, § 344, p. 220). E, diante da busca da verdade por meio da pretensa objetividade da ciência, “do homem como medida do valor das coisas, como juiz de mundos”, reflete ainda Nietzsche sobre o risco de abolirmos nossas venerações ou a nós mesmos, ou se, a despeito de qualquer esforço, ambos significam niilismo (ibidem, § 346, p. 223). Ou seja, na busca da verdade há tanto o risco de nos perdermos em nossas crenças irrefletidas como, igualmente, o risco de negando-as, nos perdermos daquilo que em diversas medidas nos constitui. Que deusa esta, tão terrível e fugidia, é a Verdade que facilmente nos escapa – seja ela procurada na ciência, a orientadora das demais verdades contemporâneas, seja ela buscada na vida cotidiana. Neste sentido, pode estar faltando mentira à verdade.

Cabe rememorar que várias das definições de mentira acima apresentadas recorrem ao conceito de verdade – evidenciando a inseparabilidade entre ambas. Dado que para Jung verdadeiro é tudo que aquilo que tem efeito, que põe em ação, temos que de diversos modos, pode haver verdade na mentira. Diante de um conteúdo comunicado por um paciente, importa menos se este corresponde à verdade em qualquer dos sentidos acima descritos, e sobre os quais refletimos, mas como este paciente experimenta tal conteúdo em sua consciência. E é sobre este “efeito”, ou sobre esta “ação” dos conteúdos sobre a consciência no paciente que o terapeuta vai trabalhar. O terapeuta vai buscar aproximar o consciente do inconsciente, em um confronto que propiciará a função transcendente na psique do paciente. A decorrente conscientização das fantasias levará a uma ampliação da consciência e concomitante redução da influência dominante do inconsciente e com isso, haverá uma transformação na personalidade (JUNG, 1987/1912, p. 95, §358 e 360). Temos desse modo o confronto entre Apolo, uma verdade inconteste, aceita ou percebida como tal e Hermes, as mentiras que perpetramos, aquilo que se vem a descobrir como não correspondente à própria experiência, percepção e valores. Portanto, ao se descobrir que a verdade em que dado momento acreditamos é de fato uma mentira diante da nova personalidade que continuamente vamos engendrando, pode se estabelecer uma tensão criativa entre Hermes e Apolo. A verdade absoluta, a unilateralidade da consciência precisa abrir espaço para o falível, o transitório e desse modo, novos caminhos de expressão da totalidade psíquica podem se configurar.

Nesse sentido, cabe lembrar que Hermes, o deus da mentira é também aquele que conduz as almas dos mortos aos reinos inferinos (CIVITA, 1973, 197). Quantas vezes, em nossas transformações ao longo da vida precisamos morrer para um modo de ser, para uma crença ou hábito, deixar de lado seguranças e apegos?! Temos a oportunidade então de mergulhar para longe da luz do conhecido, Apolo, e adentrar espaços errantes, cheios de incertezas, talvez mais afeitos aos domínios de Hermes, e ampliar aquilo que somos em nossa consciência. Esta jornada pode e deve ser bem amparada por um processo psicoterapêutico.

O tratamento psicoterapêutico em profundidade que propõe a psicologia analítica “representa um processo dialético individual” (JUNG, 2013c/1935, §239, p.132), do qual participam tanto o psicoterapeuta quanto o paciente. O êxito terapêutico depende do rapport, ou seja, da relação de confiança. Jung considera que o paciente em muitas circunstâncias tem na relação com a pessoa humana de seu psicoterapeuta o meio de obter sua segurança interior (idem). Dado que a mentira também pode envolver a não disposição ao diálogo, como se pode conceber a existência de mentiras atravessando a relação terapêutica? Qual o significado do paciente procurar psicoterapia e mentir para seu psicoterapeuta?

De acordo com Jung (2013a/1958, §864, p. 205) “se o paciente vem ao terapeuta, é porque está com algum conflito. Trata-se, então de pôr a descoberto esta situação conflitiva, muitas vezes inconsciente e, sobretudo, de descobrir uma saída para o conflito”. Para Jung, quando, em decorrência desse conflito há um transtorno emocional excessivo, de fato está havendo um choque com “um aspecto de Deus que não consigo julgar e ‘dominar’ logicamente porque é mais forte do que eu, porque possui um caráter numinoso e eu me encontro com o tremendo e o fascinante” (ibidem, pp. 205-6). Jung acrescenta: “não posso dominar um numinoso, apenas manter-me disponível a fim de ser dominado por ele, confiando em seu significado” (idem). Conflitos envolvem choque de princípios (como os de bem e mal), os quais em última instância, no limite extremo, são aspectos de Deus, nomes de Deus. Não é à toa que o pai e protetor do deus da verdade e do deus da mentira é nada menos que Zeus, o poderoso deus do trovão. Não é à toa que Apolo e Hermes são tão semelhantes, mas apenas em sua aparência. Não é fácil lidar com conflitos. Não é por menos que um paciente entra em um processo de defesa da consciência.

Os deuses assim considerados, nos revelam o que nos atravessa e está ativo, constelado no inconsciente. Assim, o confronto com aspectos ou nomes de Deus ou o confronto com deuses (os arquétipos na forma de suas imagens refletidas nos complexos) por meio do estabelecimento de um diálogo com esses está no cerne do trabalho terapêutico e não a verificação da veracidade literal de um relato ou de uma atitude, menos ainda o julgamento de uma conduta relatada pelo paciente em terapia.

Nesse contexto, a mentira (em terapia ou não) pode se apresentar justamente como indicadora de uma resistência a se lidar com um conflito e um mapa, um caminho para se lidar com ele – e uma alternativa à aporia de um diagnóstico ou classificação estanque. Para Jung (2013b/1910, §17, p.24) “por trás das resistências se oculta sempre um problema, um conflito”. Segundo Jung, um dos maiores méritos de Freud foi “ter descoberto que os motivos conscientes da vontade são de natureza duvidosa” e ainda, que “como consequência da repressão dos instintos, passou-se a valorizar desmesuradamente a importância do pensar consciente na atuação sobre o agir”. Jung também ressalta que “Freud estabeleceu como critério psíquico do agir não o motivo consciente, mas o resultado do ato (este não é avaliado tanto como efeito físico, mas muito mais em sua importância psíquica). Jung acrescenta ser esta concepção do agir muito valiosa no trabalho psicoterapêutico “para entender-se tanto a natureza, como a motivação dos fatos” (2013b, nota 5 ao §17, p. 24).  Deste modo, no contexto da reflexão do presente texto, uma mentira pode ser contada a um psicoterapeuta de modo inconsciente patológico ou não, ou como resultado de ação inconscientemente motivada – ambos indicadores de um conflito subjacente ao ato de mentir, conflito este a ser investigado pelo psicoterapeuta. E tal investigação terá que lidar com medo e evitação do paciente.

De acordo com Gambini (2008, p. 136) a psicoterapia é o “trabalho de tocar um cerne obscuro que nos apavora, e que até preferiríamos ignorar, que é o coração da agonia”. Não é de se surpreender, portanto, que a consciência busque se defender de tal confronto que poderá alterar radicalmente a percepção de quem somos – ou seja, envolver a morte simbólica de um estado de consciência ao qual o ego se apega por conhecido que é. O que de desconhecido será percebido? De que tanto se defende o ego, a consciência? Dado que “as pessoas têm um lado que não está incluído em sua autodefinição (…) observando-se seus sonhos e seu comportamento, fica patente a existência dessa dimensão não reconhecida pelo sujeito (ibidem, p. 45, destaque meu). O ato de mentir, compreendido como comportamento observado, revela bastante sobre a sombra e o quanto seus conteúdos nos apaixonam. O confronto com o inconsciente pode nos permitir viver com consciência muitas dessas paixões, sem estarmos presos a um estilo dominante de consciência.

Também é preciso considerar no contexto terapêutico que “qualquer segredo pessoal atua como pecado ou culpa, independentemente de ser considerado assim ou não, do ponto de vista da moral convencional” (JUNG, 2013c, §129, pg. 71). Um “segredo pessoal” assim referido, envolve um conflito, conforme brevemente discutido acima e pode levar ao ato de mentir diante do terapeuta. Mais perigoso pode ser um segredo inconsciente, o qual no limite, poderia até dar origem a um complexo inconsciente de suicídio (ibidem, §127-8, p.70), obviamente de alcance e periculosidade imediatos ainda maiores que a mentira consciente em terapia.

Quanto à possibilidade de um paciente trazer ao psicoterapeuta informações deliberada e conscientemente não verídicas, ou seja, reportar “histórias mentirosas”, Jung considera que não apenas um psicoterapeuta pode facilmente “perceber onde há coerência ou não” nas narrativas, como “as afirmações fraudulentas servem em primeiro lugar, para caracterizar a pessoa que as faz” (JUNG, 1990, §336). Nesse sentido, cabe ao trabalho psicoterapêutico também, uma leitura metafórica que atravesse a própria narrativa da mentira e comece a ouvir o sofrimento do paciente expresso naquela negação de si mesmo, expressa por meio da mentira. De acordo com Jung, “nunca é demais lembrar que ainda existem pessoas que acreditam poder o psicanalista ser enganado mentirosamente por seu paciente. Isto é totalmente impossível: mentira é fantasia. E nós trabalhamos com fantasia” (JUNG, 1990, nota 21 ao §300, texto de 1912).

De acordo com Adélia Bezerra de Menezes (in GAMBINI, 2008, p.14), na psicoterapia, “o profissional entra com o que ele é – em contextos de alto tônus afetivo – de troca, de circulação de energia psíquica”. E, “na psicoterapia (…) em última instância, não é a ciência nem a técnica que tem elemento curativo, mas somente a personalidade” (JUNG, 2013b, §240, p.154).  Ou seja, é indispensável ao terapeuta amadurecimento e trabalho sobre o si mesmo também quanto ao mentir para outrem e para si mesmo. Cabe ao psicoterapeuta “velar por sua personalidade para que ela tenha firmeza suficiente para servir de ponto de referência ao paciente” (2013c/1935, §11, p. 20), dado que “o trabalho terapêutico, na linha junguiana, acaba sendo a exteriorização de um processo interno que, em geral, não é linear, nem leve, nem agradável (GAMBINI, 2008, p. 29). Neste “velar por sua personalidade” que cabe ao psicoterapeuta empreender incansavelmente está incluído o acolher de suas profundidades, as verdades e as mentiras que o constituem. Não há como escapar do confronto e assim permitir que do diálogo entre ambas possa emergir um novo caminho que expresse em maior extensão o que acessamos em nós – dado que para Jung, “só aquilo que somos realmente tem o poder de curar-nos (JUNG, 1987, p.43, §258).

Fernando Pessoa (1955) em sua poesia Se tudo que há é mentira, de 1930 nos diz: “Fana a rosa não colhida/como a rosa posta ao peito”. Até que em psicoterapia, pacientemente o sujeito compreenda o que nos diz este poeta maior neste poema, e se desapegue de suas certezas e verdades absolutas para poder se lançar à descoberta do Si Mesmo, muito trabalho terapêutico conjunto paciente-terapeuta ainda será requerido na lida com o jogo de luz e sombras, visando tornar criativa a tensão existente entre Hermes e Apolo.

Analista em formação: Silvia Maria Guerra Molina

Analista Didata Responsável: Maria Cristina Mariante Guarnieri

Referências

BARCAT, George, Liberdade e Servidão: Nietzsche e Espinosa – curso livre, Associação Palas Athena do Brasil, 4-17 de julho de 2014 (6h).

BRANDÃO, Junito de Souza Mitologia Grega. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015/1987, 357p. (vol. II).

BULFINCH, Thomas O grande livro da mitologia: histórias de deuses e heróis. São Paulo: Madras, 2018/1881, 384p.

CIVITA, Victor (ed.), Dicionário de Mitologia Greco-Romana. São Paulo: Abril Cultural. 1973a, 196 p.

CIVITA, Victor (ed.), Mitologia. São Paulo: Abril Cultural. 1973b, 272 p. (vol. I).

GAMBINI, Roberto A voz e o tempo: reflexões para jovens terapeutas. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2008, 240 p.

JUNG, Carl Gustav Estudos psiquiátricos. Petrópolis: Vozes, 2011, 261p. (O.C., vol.1)

JUNG, Carl Gustav Psicogênese das doenças mentais. Petrópolis: Vozes, 1990, 279p. (O.C., vol.3)

JUNG, Carl Gustav Freud e a psicanálise. Petrópolis: Vozes, 1990, 351p. (O.C., vol.4)

JUNG, Carl Gustav O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1987, 166p. (O.C., vol.7/2 Estudos sobre psicologia analítica).

JUNG, Carl Gustav Civilização em Transição. Petrópolis: Vozes, 2013a, 269p. (O.C., vol.10/3 Civilização em mudança/3).

JUNG, Carl Gustav O desenvolvimento da personalidade. Petrópolis: Vozes, 2013b, 236p. (OC, vol. 17).

JUNG, Carl Gustav A prática da psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 2013c, 156p. (OC, vol. 16/1).

PESSOA, Fernando Se tudo que há é mentira (14/10/1930) in Poesias inéditas (1930-1935). Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990) (http://arquivopessoa.net/textos/4260, acesso em 23/10/21).

NIETZSCHE, Friedrich Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. São Paulo: Abril Cultural, 1974/1873. Coleção Os Pensadores vol. XXXII – Friedrich Nietzsche – Obras Incompletas, p.51-60.

NIETZSCHE, Friedrich Gaia Ciência. São Paulo: Abril Cultural, 1974/1881-2. Coleção Os Pensadores vol. XXXII – Friedrich Nietzsche – Obras Incompletas, p.195-231.

NOVELLI, Pedro Geraldo Aparecido A verdade em Hegel e em Marx. Aurora: Marília, SP, 2013, 27-38, Edição Especial.

PIERI, Paolo Francesco Dicionário Junguiano. São Paulo: Paulus, 2002, 563p.

SEARS, Kathleen Tudo o que você precisa saber sobre Mitologia: dos deuses e deusas aos monstros e mortais, seu guia para a mitologia antiga. São Paulo: Gente, 2015, 255p.

Silvia Molina – 30/11/2021

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