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A prática da psicoterapia: a influência transgeracional e a sombra familiar

Família e Psicoterapia

A psicoterapia é um campo terapêutico que se desenvolveu e atingiu certa autonomia, as opiniões acerca do assunto estão em constante mudança e se diferenciam conforme a abordagem, o cliente e o próprio terapeuta. Tudo isso sofre a todo momento a influência da leitura que o profissional fez da obra de C. G. Jung, de seu próprio processo de individuação, do espírito do nosso tempo e da conversa constante com os mesmos processos do seu cliente, que acontecem no setting terapêutico a todo momento. Em outras palavras, muitas são as vozes e influências intervenientes na clínica, portanto, podemos compreender que a psicoterapia não é um processo simples nem evidente, como se queria a princípio. Pouco a pouco o próprio Jung percebeu que se trata de um tipo de dialética, onde essas vozes se comunicam, trocam e influenciam, tanto se pensarmos nos indivíduos terapeuta e cliente, e todas as vozes e processos coletivos que acontecem dentro e através de cada um. Como diz Jung em A prática da psicoterapia:

“A pessoa é um sistema psíquico, que, atuando sobre outra pessoa, entra em interação com outro sistema psíquico. Esta é talvez a maneira mais moderna de formular a relação psicoterapêutica…; evidentemente, distanciou-se muito da concepção inicial, segundo a qual a psicoterapia seria um método aplicável de maneira estereotipada por qualquer pessoa, para obter um efeito desejado.”  (CW 16\1 §1)

Desta forma desenvolveram-se concepções diametralmente opostas, representadas por várias teorias e práticas encontradas na psicologia. Jung diz que cada um desses métodos se baseia em pressupostos psicológicos especiais e produz resultados psicológicos específicos, dificilmente comparáveis entre si, e que às vezes nem podem ser comparados. Para os pontos de vista diferentes era, e continua sendo, natural e mais simples considerar a opinião e os pontos de vista dos outros, errôneos.  Estamos então, na psicoterapia, diante de uma situação comparável ao maniqueísmo, que se depara com duas variáveis, distantes e dissonantes, mas a teoria do Jung vem justamente dizer que é pela tensão dos opostos que a vida é possível, é somente com ela e através dela, que estamos aqui num eterno processo de construção, no processo de individuação. Isso acontece com todos nós e com o cliente no setting terapêutico também, na prática da psicoterapia, o terapeuta não tenta ir contra este sistema perfeitamente saudável do ponto de vista psíquico, mas sim entender de que forma e para que o seu cliente vive desta ou daquela forma. 

Neste contexto nos deparamos na clínica, principalmente quando falamos da terapia de crianças e adolescentes, com duas influências até mais prevalentes, falamos aqui da nossa necessidade em viver a vida não vivida dos pais e sobre o jovem ou criança, como portador da sombra familiar.  

Sobre a vida não vivida, no livro Civilização em Transição, Jung discorre:

“Nada exerce maior influência psíquica sobre o meio ambiente da pessoa, sobretudo das crianças, do que a vida não vivida dos pais…” (CW 15 § 4)

Sobre este fenômeno Jung disse tratar-se de um processo extremamente comum, em que os pais projetam, na maioria das vezes, inconscientemente, tudo aquilo que não conseguiram experienciar, estejam no campo dos desejos, das vontades, dos sonhos de vida, e até mesmo lugares que gostariam de ter ido, assim como se dissessem a seus filhos: “Meu filho será feliz aonde eu não fui, fará o que eu não consegui, e assim por diante”.  Falamos aqui não só de atitudes externas e realizações de vida, mas também de atitudes e comportamentos interiores. Se considerarmos a singularidade, as experiências, o espírito do tempo, cada um de nós é um ser absolutamente singular, e a diferença do espírito do tempo dos pais com relação aos filhos já acentua ainda mais, a discrepância na personalidade, identidade, desejos e tudo mais, para cada um deles. No entanto, como isso aparece como um imperativo, essa projeção pode ter mais ou menos força e, também para o filho, pode ter mais ou menos resistência, em seguir o script apresentado. Quase sempre vemos as pessoas em um sofrimento muito grande por se cobrarem de forma ampla a alcançarem metas das quais desconhecem, que não entendem e nem fazem sentido para si mesmas. Na criança além de isso aparecer com maior frequência encontramos barreiras maiores no sentido de identificar e ressignificar, uma vez que o complexo de ego ainda está em plena formação, a criança pequena é como o homem primitivo, carente de consciência, vive a inconsciência, ela ainda está demasiadamente imersa no inconsciente dos pais e do ambiente, de modo que esta simbiose provavelmente acentue esta identificação com o complexo de identificação com os desejos paternos. Além da própria imaturidade em todos os sentidos, a criança nasce imbuída em seu Self, que direciona a criança ao seu Daimon, no entanto, ela precisa construir seu complexo de ego se diferenciando deste self, eis o cerne da questão, um dos maiores desafios para os terapeutas que se dedicam a atender crianças, pois é necessário saber o que é da criança e o que é transgeracional. As crianças, em desenvolvimento, precisam se identificar com alguma coisa, com alguns atributos familiares específicos, a dificuldade está em se identificarem apenas com conteúdo sombrios e não conscientes pelos pais.

Uma possível ampliação para esta questão é que o Self precisa encontrar um caminho para que esta família cresça, olhe para tudo que está escondido e quem sabe faça a agregação deste conteúdo sombrio em seus egos, de forma a caminhar para o processo de individuação. Da mesma forma que todos os participantes da família continuam em maior ou menor simbiose, tendo em vista que todos acessam o inconsciente coletivo familiar e são influenciados por ele, se os conteúdos puderem ser ressignificados, todos podem se beneficiar. Jung diz:

“Quando os pais sabem quais de suas tendências e hábitos inconscientes são prejudiciais à psique de seus filhos, sentirão como dever moral fazer algo, suposto que seu senso de dever e amor estejam normalmente desenvolvidos. A mesma lei atua nos grupos e também nas nações, isto é, nas minorias dirigentes se forem constituídas de pessoas conscientes de certas tendências que poderiam ameaçar seriamente as relações humanas.” (OC 18/2§1398)

Aos pais, cabe a consciência e a importância do processo de psicoterapia para a construção da personalidade de seus filhos, não apenas em palavras, mas sim em atitudes. Jung, além de valorizar o mundo interior, também acreditava que a construção da personalidade de uma pessoa se dá em estreita relação com o meio, ou seja, a criança interage e replica aquilo que ouve e vê, aprendem através da troca e da imitação. Ajudar os filhos a se desenvolverem nesse sentido não é nada fácil, muito pelo contrário, dispende muito tempo, valores pregados nesse ambiente familiar e coragem. Coragem para aceitar a si mesmos e entrar em contato com suas próprias sombras e desenvolver um ego flexível e revigorado. Como mencionado acima, não basta apenas falar e usar sermões moralistas, o importante é vivenciar e observar a vida que esses pais levam, sem hipocrisia, um EU verdadeiro, transparente.

É preciso olhar e enxergar o que precisa ser olhado, é permitir dar novas chances, dar vasão a tudo aquilo que estava oculto e submerso em nossas entranhas, em nosso lado mais obscuro. É preciso acolher e colocar para brincar, cantar, contar e recontar, externalizar e trazer à superfície o que nos incomoda e, consequentemente, incomoda também ao outro.

Essa ampliação pode ser entendida nesta fala do Jung em Civilização em Transição: “A vida não vivida é uma atmosfera irresistível de destruição que age em silêncio, mas inexoravelmente.” (CW 10\3 § 251)

Frances G. Wickes cita que as crianças estão tão submersas e envolvidas no inconsciente dos pais que suas atitudes e suas perturbações nervosas devam estar ligadas ao seu próprio psiquismo. Sendo assim, acreditamos que as coisas não vistas, revistas, projetadas e escondidas se passarem pelo crivo da ampliação, da reflexão, ou até mesmo da própria comunicação consciente/inconsciente propiciadas pela prática da psicoterapia, torna a atmosfera que sozinha se trata de destruição, em uma possível morte simbólica.  Esta família pode vir a um renascer, uma entrada de fato na vida, como indivíduos e como família, que compartilha o inconsciente familiar, a vida e neste caso, a ampliação de consciência e integração de sombra, enfim, caminhar para a individuação. O apego em busca do desapego, o aprisionamento gerando a autonomia, o desamor construindo o amor, e tudo isso através de um vínculo de respeito e confiança, os pais liberam seus filhos, apesar das suas dores e tristezas, concedem a alegria e o seu crescimento. 

Para ilustrar esse pensamento, esse jogo de opostos necessário para o início do desenvolvimento da personalidade na infância, compartilhamos um poema de Fernando Pessoa, 

“Quando as crianças brincam”

Quando as crianças brincam

E eu as ouço brincar,

Qualquer coisa em minha alma

Começa a se alegrar.

E toda aquela infância

Que não tive me vem,

Numa onda de alegria

Que não foi de ninguém.

Se quem fui é enigma, 

E quem serei visão,

Quem sou ao menos sinta

Isto no coração.

Elaine Bedin e Natalhe Costa 

Membro Analistas em formação pelo IJEP

E. Simone Magaldi 

Membro Didata do IJEP

Referências

JUNG, C.G. A prática da psicoterapia. (CW16\1) 16a Ed.Petrópolis,RJ: Vozes,2013.

_________ O espírito na arte e na ciência. (CW15)10a Ed. Petrópolis,RJ: Vozes,2013.

__________ Psicologia do Inconsciente. (CW 7\1) 11a Ed. Petrópolis,RJ: Vozes,2014.

_________ Civilização em transição. (CW 10\3) 6a Ed.Petrópolis,RJ: Vozes,2013.

___________ Desenvolvimento da Personalidade (CW 17/1) 14ª Ed. Vozes,2013. __________     A vida simbólica (OC 18/2) Ed. Vozes 2019

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