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A relação psíquica com o trabalho na atualidade: reflexões a partir do filme “Capitão Fantástico”

Capitão Fantástico e Psicologia Jung

Assistir ao filme Capitão Fantástico é embarcar na possibilidade da construção de uma sociedade utópica, em que a chama da consciência, aquela que a mitologia grega atribui à Prometeu a responsabilidade de tê-la oferecido aos humanos, consegue ter uma relação harmônica com os princípios naturais e instintivos da vida. Para este texto fazer sentido, é necessário fazer um breve resumo da ideia do filme, e aviso de antemão que, caso você não tenha visto, aqui contém spoilers.

O enredo trata de uma família de 7 pessoas, sendo um pai, chamado Ben (interpretado com maestria por Viggo Mortensen) e seus 6 filhos, que vivem numa floresta. Eles caçam, se exercitam, fazem rituais, seguindo o roteiro de uma sociedade primitiva. Mas ao mesmo tempo eles leem (têm uma biblioteca no meio da selva), aprendem música e discutem questões profundas da humanidade.

Como uma boa narrativa hollywoodiana, acontece um ponto de inflexão na trama, que obriga a família a deixar a floresta e entrar em contato com o que chamaríamos de civilização. É neste momento que as diferenças se destacam: como seria para uma família absolutamente adaptada à natureza ter de seguir os preceitos organizatórios de uma sociedade civil? A verdade é que eles adotam comportamentos que chamaríamos de subversivos ou que são antíteses do politicamente correto. Um exemplo é quando ludibriam os seguranças de um supermercado para roubarem a comida fresca, em vez de pagarem para comer comida industrializada. Seus argumentos se pautavam na ideia de igualdade, no sentido de que todas as pessoas têm direto à alimentação. 

Outra situação é quando o filho de 8 anos pergunta ao pai o que é transar, e ele responde o que é efetivamente, fugindo das respostas metafóricas que normalmente são usadas para responder essas questões às crianças. Mas as provocações não param por aí. A razão que os faz sair da floresta e voltar ao mundo urbano é realizar o desejo da esposa de Ben (e mãe de seus filhos) que morreu: ser cremada e ter suas cinzas depositadas num vaso sanitário. Inicialmente não fica claro porque ela não estava junto da família na floresta, algo que vai sendo respondido no decorrer do filme. Ela era uma mulher subversiva: adotara a religião budista em vez de seguir os preceitos cristãos protestantes de sua família e apoiava a vida selvagem do marido e filhos.

No que tange o aspecto religioso, se recorrermos à Jung em Psicologia e Alquimia, ele diz “A exigência da ‘imiatito Christi’, isto é, a exigência de seguir seu modelo, tornando-nos semelhantes a ele, deveria conduzir o homem interior ao seu pleno desenvolvimento e exaltação. Mas o fiel, de mentalidade superficial e formalística, transforma esse modelo num objeto externo de culto” (CW12, §7)Esse é o modelo da família da esposa de Ben, diferente da integração com a natureza e liberdade ao indivíduo que Ben e seus filhos adotaram.

Ainda em Psicologia e Alquimia, Jung comenta “A concepção inadequada da ‘imitatio Christ’ apenas exterior é reforçada pelo preconceito europeu que distingue a atitude ocidental da oriental. O homem ocidental sucumbe ao feitiço das ‘dez mil coisas’: distingue o particular, uma vez que está preso ao eu e ao objeto, permanecendo inconsciente no que diz respeito às raízes profundas de todo o ser. Inversamente, o homem oriental vivencia o mundo das coisas particulares e o seu próprio eu como um sonho, pelo fato de seu ser encontrar-se enraizado no fundamento originário; este o atrai de forma tão poderosa que relativiza sua relação com o mundo, de um modo muitas vezes incompreensível para nós” (CW12, §8).

Entendo que essa percepção de Jung justifica a resistência do patriarca (sogro milionário de Ben, e cristão) de atender ao desejo de sua filha. Não havia exercício empático do sogro. Para ele os princípios externos de sua religião eram os mais importantes, ao passo que para Ben o importante era cumprir o desejo de sua esposa.

Além de relativizar perspectivas religiosas, o tempo todo o filme oferece confrontos com o modelo capitalista predominante que conhecemos e vivemos, trazendo uma percepção do que seria uma sociedade igualitária, cooperativa e que atribui responsabilidade crítica ao indivíduo singular. Não preciso dizer que o filme é uma exaltação ao socialismo, não em sua pecha sistematicamente vociferada de maneira acrítica, como se isso fosse sinônimo de ditaduras desumanas. A proposta é oferecer contraponto para o modelo social dominante. Em certo ponto do filme, Ben e sua família celebram o dia de Noam Chomsky, um social-libertário norte-americano.

O socialismo presente no filme se apresenta como uma utopia, a mesma que Leonardo Boff menciona em seu livro “Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência?”, em que esta deve estabelecer uma relação harmoniosa entre natureza, cultura e povo. No microcosmo social de Ben e seus filhos, é possível afirmar que obtiveram algum êxito por certo período.

Essa tônica do filme, que antagoniza modelos sociais dominantes e não dominantes do início ao fim, passando por religiões e cultura, traz à tona o ideal de equilíbrio que buscamos como indivíduos e como sociedade. É nesse ponto que se abre um espaço reflexivo: como encontrar esse equilíbrio ideal, individual e social?

Para rascunhar uma resposta, proponho uma desconstrução da palavra equilíbrio nos termos que conhecemos. O equilíbrio por si só é estático. O equilíbrio não enseja movimento. O equilíbrio pode até ser sinônimo de estagnação. A vida acontece no equilíbrio dinâmico e no movimento. Se pensamos sobre o que nos mantém biologicamente vivos, logo lembraremos do nosso coração, que expande e retrai ou do nosso pulmão, que inspira e expira, para ficar no básico.

Independentemente de concordarmos ou não com as proposições utópicas do filme, é indispensável um debate contemporâneo sobre a relação da consciência coletiva, na perspectiva da psique, e não apenas da economia, com o capital. Na versão online da Folha foi publicada uma matéria em 26/03/19 com o seguinte título “Atrás de sucesso, empresários são alvo fácil da síndrome de burnout”. Já na Globo.com, um pesquisador de Stanford, Jeffrey Pfeffrey, e autor do ótimo livro “Morrendo por um salário”, disse em 27/03/19: “O trabalho está matando as pessoas e ninguém se importa”. É pelo trabalho que produzimos o capital e é pelo trabalho que pagamos nossas contas. Mas deveria ser dessa forma excruciante?

O curioso é que atualmente há uma relação de equilíbrio com o trabalho, na visão estática, em que ele é priorizado pelos indivíduos, sem que outros aspectos da vida sejam incluídos nesta equação. No filme Capitão Fantástico, Ben e seus filhos se apresentam como um ideal novo e revolucionário de sociedade. Mas se olharmos para a realidade do trabalho, ele é um microcosmos social e que também precisa passar por uma reflexão crítica sobre a forma como tem sido conduzido. Essa reflexão é coletiva e individual.

No que tange o indivíduo singular, o primeiro ato a se fazer é deixar de usar a palavra equilíbrio como se fosse algo necessariamente positivo. É preferível pensar no conceito de harmonia, que enseja a ideia de equilíbrio dinâmico. Na mitologia grega, Harmonia é a filha de Ares, deus da guerra, e Afrodite, deusa do amor. Em outras palavras, a harmonia representa o reconhecimento do ambíguo que habita nosso ser. Ainda sobre harmonia, podemos pensar na sua aplicação na música, em que ela representa todo aquele som que não pode ser claramente identificado, que é fruto de uma ação conjunta de vários instrumentos e que serve de base para as melodias.

Essa ideia de relação harmônica com o trabalho deve ser buscada fora do lugar comum, a partir de perguntas como: Por quem, e a serviço de que você trabalha? Sua ética pessoal está em consonância com a ética do seu trabalho? Qual é a sua contribuição para compor um espaço harmônico entre seus subordinados, seus líderes, seus pares e sua família? Sua empresa propicia essa construção harmônica? Caso não, qual é a sua responsabilidade para mudar isto?

São respostas que devem ser buscadas no íntimo, naquilo que o trabalho representa genuinamente para cada um. Como mencionei, o mundo do trabalho está equilibrado no capital. A consequência tem sido um adoecimento crônico de trabalhadores, do maior ao menor nível organizacional. Antagonicamente, como desequilibramos essa relação para reestabelecer uma dinâmica harmônica?

Em Capitão Fantástico há uma tentativa de resposta para este dilema, à medida que a família se isola para recriar um modelo social. Mas a pergunta contrária também cabe: seria o modelo de vida de Ben e seus filhos perfeitamente adequado para ser inserido neste ponto da civilização que estamos? Ben também enfrenta dilemas com seus filhos, que em certo momento decidem adotar o modelo de vida da civilização e do capital, em detrimento da vida socialista e selvagem.

Gosto quando Jung fala em Presente e Futuro que “a pregação do desejável é inútil” e que “sem a transformação do indivíduo, nada pode acontecer” (CW10/1, $582). Em outros termos, o que o Capitão Fantástico nos deixa de questionamento, que deveria ser respondido na nossa maior profundidade e intimidade é: o que há de fantástico em viver uma vida não vivida em sua plenitude, no melhor exemplo do mito de Sísifo possível? Se o trabalho unilateraliza e equilibra estaticamente para o lado do capital, não há plenitude. Há doença, e é uma doença que vem do equilíbrio.

É urgente a necessidade de reestabelecermos uma relação harmônica com o trabalho em que ele possibilite nosso desenvolvimento como ser humano, e que cumpra seu propósito primário, que é oferecer um produto/serviço que servirá positivamente a sociedade, recompensando de maneira justa as pessoas que trabalham por isso. Num olhar simplório, isso não deveria ser danoso ao indivíduo, ou seja, não deveria causar adoecimento. 

A nossa jornada de vida não é um caminho prescrito, e em si é um processo de aprendizado. Por outro lado, precisamos ter um papel ativo na aceitação e compreensão de padrões antagônicos, sabendo que são eles que propiciam equilíbrio dinâmico quando aplicados harmonicamente. A existência de um lado não deve ser a razão para reprimir a existência do outro lado.

É a partir da constatação de que tudo aquilo que sabemos também pode ser experimentado em seus contrários, que conseguiremos resgatar a harmonia individual e coletivamente no trabalho. Ou então continuaremos seguindo padrões, regras e modelos tidos como corretos. Nossa capacidade adaptativa fará com que aceitemos esse padrão e chamaremos isso de equilíbrio. Mas a nossa psique segue o mesmo princípio de harmonia e equilíbrio dinâmico que rege a vida. Pelas palavras Kierkegaard, “o ser humano é infinito e finito, temporal e eterno, liberdade e necessidade, é em suma, uma síntese” (p. 195).

Rafael Rodrigues de Souza, membro Analista em formação do IJEP.

Referências:

BOFF, Leonardo. Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência?

CAPITÃO FANTÁSTICO (filme). Direção: Matt Ross, Produção: M. Levinson, J. Patricof, S. Rawat, L. H. Taylor. Estados Unidos da América, DVD, 2016.

JUNG, Carl Gustav. Presente e futuro (V. 10/1).

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e alquimia (V. 12).

KIERKEGAARD, Sören. O Desespero Humano.

Rafael Rodrigues de Souza

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