Site icon Blog IJEP

A Sombra Gentil: a história de John Merrick

A SOMBRA GENTIL: a história de John Merrick O Homem Elefante

A SOMBRA GENTIL: a história de John Merrick O Homem Elefante

Me lembro de ter assistido na adolescência ao filme O Homem Elefante, de 1980 do diretor David Lynch. Eu devia ter cerca de 13, talvez 14 anos. Havia esquecido completamente disso até pouco tempo, quando a produção apareceu indicada para mim numa plataforma de streaming; acabei revendo o filme. Mas, antes mesmo de assistir novamente ao longa metragem, o simples contato com a imagem de John Merrick fez surgir memórias impactantes daquela época. Me lembro de ter ficado deprimido por alguns dias, de sonhar com o homem-elefante e de me imaginar sendo ele. Como seria a minha vida se eu fosse portador de tamanha deformidade física? A história é baseada em fatos descritos no livro de Frederick Treves, o médico que tratou de Joseph Merrick, que no filme é chamado de John Merrick. Aparentemente Lynch também utilizou como referência a obra de Ashley Montagu chamada O Homem Elefante: um estudo sobre a dignidade humana (1979).

            John Merrick nasceu na Grã-Bretanha vitoriana, em 1862. Sua deformidade começou a aparecer quando ele tinha três anos de idade e tomou cerca de 90% do seu corpo. Sua mãe morreu quando ele tinha dez anos de idade e a nova esposa de seu pai o rejeitava e o maltratava, assim como os irmãos e quaisquer outras crianças e jovens com quem ele tivesse contato. Ainda na adolescência, saiu de casa tentando sobreviver, mas como ninguém o aceitava como empregado por causa de sua aparência, acabou encontrando lugar somente no circo. Visto pelo público como uma aberração, encontrou certa aceitação entre os outros que também eram considerados dessa maneira. Sua história é muito mais longa e complexa, mas acredito que isso seja suficiente para fazermos o exercício de imaginar como era a situação psíquica desse indivíduo.

            A visão da deformidade de John aciona mecanismos emocionais; é um gatilho dos quais não podemos escapar. Quando você se deparou com a foto acima, qual a primeira coisa que lhe veio à cabeça? Quais emoções, afetos, lembranças, conexões, associações e julgamentos surgem do contato com essa imagem? Como esses elementos tocam cada um de nós, é uma questão individual, mas o fato é que o mero contato com tamanha diferença estética faz irromper as mais diversas fantasias em nossa própria psique; sejam elas de simpatia, antipatia, empatia ou, até mesmo, de apatia. Nas palavras de Jung: “A emoção, com efeito, não é uma atividade, mas um evento que sucede ao indivíduo” (JUNG, 2011, p. §15).

            Poderíamos fazer recortes diferentes dessa narrativa do ponto de vista conceitual, mas escolho falar aqui da sombra, da maneira que Jung a descreve como parte estrutural da psique. Devemos lembrar sempre da dificuldade natural de falarmos do mundo imaginal porque dependemos do mundo concreto para isso. Por ser a imagem sempre mais do que conseguimos descrever, tudo que aqui falamos sobre o mundo interno é metáfora e assim é também com a sombra. Sendo a sombra constituída de material inconsciente (isso não quer dizer que ela seja a totalidade do inconsciente), podemos encontrá-la nas projeções que fazemos no mundo externo e, como diz Jung:

“Como se sabe, não é o sujeito que projeta, mas o inconsciente. Por isso não se cria a projeção: ela já existe de antemão. A consequência da projeção é um isolamento do sujeito em relação ao mundo exterior, pois ao invés de uma relação real o que existe é uma relação ilusória. As projeções transformam o mundo externo na concepção própria, mas desconhecida” (JUNG, 2011, p. §17).

            Nesse sentido, o exercício que fazemos aqui é tentar caminhar ao encontro do homem-elefante que habita a nossa própria psique e compreender algumas das projeções que fazemos na imagem deformada desse homem. Nas palavras de Ashley Montagu:

“Sua deformidade nos lembra a imagem aleijada que relutamos em enfrentar, de nós mesmos, uma imagem que rejeitamos, da qual, de fato, nos afastamos. É a imagem que projetamos sobre esses infelizes sofredores que consideramos monstruosos” (MONTAGU, 1979, p. 105). [1]

A perda da capacidade de empatia e de compreensão das casualidades da natureza é uma das deformidades da psique individual e/ou coletiva que não consegue lidar com a diversidade. Nesse sentido, deformados são aqueles que transformam categoricamente o mundo concreto na própria sombra. De muitas maneiras, podemos dizer que somos todos deficientes, pois todos possuímos estruturas psíquicas menos desenvolvidas, infantilizadas e tirânicas que tomam conta do nosso comportamento numa escala muito maior do que, egóicamente, gostaríamos de aceitar. Esses valores subdesenvolvidos ficam negados e relegados às sombras, mas continuam agindo de lá, atuando em nossas vidas de maneira concreta e contundente, determinando nossas escolhas e comportamentos. Não é à toa que vivemos em uma sociedade caracterizada por tamanhas disfuncionalidades comportamentais e relacionais.

Montagu vai apontar ainda em sua análise, publicada no início do séc. XX, o fato de que a própria sociedade força os indivíduos para uma situação de desumanização. Do ponto de vista junguiano, podemos enxergar a dinâmica da negação do direito à existência do outro no mundo exterior e no mundo interior. É um mecanismo de retroalimentação onde a negação de um leva à negação do outro numa relação que está intrinsicamente conectada. Negando a sombra, negamos também toda a multiplicidade de potencialidades inexploradas da nossa própria existência; aprisionados no monoteísmo da consciência, deixamos de enxergar que aquilo que julgamos saber sobre os outros é, na verdade, projeção dos conteúdos não integrados da nossa própria psique. Como afirma o filósofo indiano Jiddu Krishnamurti, experienciando o mundo e as relações dessa maneira, tentamos forçá-los a serem o que gostaríamos que eles fossem, claramente tentando exercer poder e controle sobre a natureza e sobre os outros. Segundo Albert Camus (1961), toda afirmação ou explicação sobre os objetos ou sobre nós mesmos só é verdadeira na mesma medida em que é aproximativa. Portanto, para viver verdadeiramente o presente, precisamos fazer o exercício constante e vigilante de compreensão daquilo que projetamos como fantasia explicativa do mundo e dos objetos que o habitam.

Retomando a ideia das deformidades e subdesenvolvimentos das capacidades humanas na contemporaneidade, o vício nas redes sociais e nas telas reforça esse fenômeno atuando diretamente para a diminuição das capacidades físicas das pessoas. O mundo fica reduzido a um quadrado visual (algumas vezes auditivo) enquanto nossos outros sentidos são subutilizados e consequentemente atrofiados. Nesse processo, até mesmo o sonho, espaço importantíssimo para o contato com as imagens espontâneas do mundo interno, parece estar fadado à invasão dos mecanismos capitalistas predatórios que visam somente a produção e o consumo (BALESTRINI JR, 2023).

Percebemos, portanto, que nesse processo tanto a capacidade cognitiva quanto a simbólica são afetadas; assim como nossa habilidade de aprender a lidar com as emoções e com os vínculos. Nos tornamos tão isolados e egoístas que deixamos de conectar com os outros e o funcionamento dos algoritmos nos leva para cisões cada vez maiores. Parece que estamos nos tornando, como espécie, cada vez mais deformados, incapazes de enxergar para além da imagem visual, como aconteceu com aqueles que encontraram com John Merrick durante grande parte de sua vida.

Mas podemos ampliar essa dinâmica se perguntarmos: se John serve como depositário da projeção das deformidades negadas pela consciência e, se ele mesmo tem consciência da sua deformidade física, como podemos imaginar a sombra do chamado homem-elefante?

            Algo que choca na história desse personagem é a gentileza que ele apresenta em seu próprio comportamento; atitude que fora utilizada por muitos como porta de entrada para os abusos que ele sofreu desde a infância até a vida adulta, mas que foi percebida rapidamente pelo médico Freddie Treves e que serviu como ponte para que eles se aproximassem.

            A palavra gentil deriva do Latim gentilis que significa algo como “pertencente à mesma família ou clã”. A expressão denota, então, a capacidade de um indivíduo tratar o outro como semelhante, compreendendo e respeitando suas diferenças e idiossincrasias.

Tamanha gentileza e doçura de alma revela algo importante sobre a subjetividade de John, uma estrutura de sua psique que se apresentava como oposto à deformidade externa que possuía, encarada como monstruosa pela maioria das pessoas que o conheciam. Talvez por isso, simbolicamente, ele tenha sido nomeado de o homem-elefante; mesmo aqueles que, quando o chamavam assim tentavam se referir apenas à sua aparência física, pareciam perceber que ele poderia ser facilmente manipulado e controlado exatamente por sua gentileza. Em muitas culturas diferentes o elefante é considerado uma espécie de monstro gentil. Porém, alguém poderia dizer que ele era, na verdade, apenas passivo; pensando assim eu pergunto, como seria possível que um homem só, naquelas condições, se rebelasse? Talvez sua gentileza fosse a estratégia necessária para sobreviver.

A salvação de John parece ser encarnada na figura do jovem médico Freddie Treves, o curador, que também, num primeiro momento utiliza as deformidades de John para ganhar prestígio entre a comunidade médica o exibindo como uma raridade, um caso médico, uma coisa que deveria ser estudada. Portanto, também é a projeção de aspectos da sua sombra que o leva a aproximar-se de John. Entretanto, na sua condição anímica de curador-ferido, ele, não agindo apenas a partir da sua persona de médico, percebe, talvez intuitivamente, que poderia existir algo mais profundo na relação que desenvolveria com John. É um aspecto de sua anima, personificada na imagem de uma enfermeira mais velha que trabalhava nos cantos mais escuros e sombrios do hospital, encarando, cuidando e acolhendo os pacientes portadores das mais variadas doenças, que chama atenção para o seu comportamento. Apesar de sua posição “hierarquicamente inferior” – e me pergunto se a maioria de nós, revelando a inflação egóica característica do ser humano contemporâneo, não olha para a sizígia anima/animus da mesma maneira -, ela o encara, o desafia e traz para a consciência o conflito que o fazia agir de maneira inconsciente. Faz isso através do questionamento: “Qual o propósito de suas ações?” A partir dai Freddie passa a tratar John de maneira diferente e os dois desenvolvem uma relação de amizade que será considerada genuína por ambos.

Em sua biografia é contado que John, depois de cair nas graças da princesa de Gales, acaba também recebendo tratamento e atenção de outras mulheres da alta sociedade. No filme de David Lynch isso é indicado, mas o fato é condensado na figura de uma atriz, uma artista que leva John ao teatro. Mais uma vez aqui percebemos a importância do elemento feminino. Podemos utilizar como ampliação a própria experiência de Jung quando este, se perguntando se a sua própria produção era ciência ou arte, ouviu pela primeira vez a voz feminina da mulher que habitava sua psique respondendo: “arte”. A ciência, representada na figura do médico, não era suficiente para John viver a totalidade da experiência humana; a arte precisava fazer parte do processo.

Emma Jung, assim como Jung, afirma que a receptividade é a maior característica do feminino (JUNG, 2020). Essa percepção dos dois concorda com o I Ching (WILHELM, 1984), o texto sagrado chinês mostra que o hexagrama número 2, “O receptivo”, é formado por seis linhas yin, caracterizando a mais feminina de todas as imagens do livro, afinal, podemos fazer um paralelo entre o yang como representante da energia masculina do Logos e o yin trazendo a energia feminina do Eros primordial. A etimologia do nome desse hexagrama em chinês, Kun, fala sobre a Terra – compreendida aqui como Gaia e representante da Grande Mãe – se manifestando em toda a sua completude. Faz sentido, portanto, que se revele na história de John, a capacidade feminina maior de aceitação do diferente, de compaixão e de empatia. A atriz pela qual ele se encanta no filme pode ser compreendida como depositária da projeção da alma gentil de John. Ela também fica fascinada por ele, porém, ao contrário dos outros, de uma maneira claramente positiva desde o início; se afeiçoa a ele e enxerga mais do que a deformidade estética que o acometia. Talvez, exatamente por ser artista e atriz, soubesse lidar melhor com os conteúdos sombrios da alma humana.

Podemos dizer que John serve, na maior parte do tempo, como Bode Expiatório. O encontro com sua figura causa catarse e alívio, seja apenas através da visão da sua deformidade ou dos maus tratos infligidos a ele por aqueles que não conseguiam lidar com a alteridade e com a própria sombra. Porém, não podemos esquecer, como afirma René Girard (2020), que o Bode Expiatório, oferece também a possibilidade de cura. Portanto, poderíamos levantar a hipótese de que mesmo o médico, a atriz e as mulheres que o tratavam de maneira bondosa, poderiam estar projetando sua busca por cura e integridade na imagem distorcida de John Merrick.

Para que esse movimento não fosse apenas um alívio passageiro da angústia de não conhecer a si mesmo, a saída para quem o encontrasse seria tratá-lo como igual, na acepção da expressão gentileza, como vimos anteriormente com a etimologia da palavra. Talvez John tenha encontrado isso em Freddie e vice-versa, quando num certo momento o chama, muito emocionado, de amigo. Mais uma vez, vamos aprofundar nossa compreensão do processo utilizando a etimologia, a palavra amigo vem do Grego amicus, que por sua vez deriva de amare, que significa simplesmente amar. Amigo é, portanto, aquele que ama. Se pensarmos na concepção de amor que Jung gostava de enfatizar, o amor é um comportamento e, onde ele reina, não há espaço para o exercício do poder. Amar é permitir que o outro se manifeste da maneira que é, deixar que ele seja aquilo que precisa ser. Nesse sentido, estaríamos vivendo o presente das relações, como explicou Jiddu Krishnamurti; dessa maneira, compreenderíamos um pouco melhor as fantasias que criamos sobre os outros, afinal, como diz Jung: “Quanto mais projeções se interpõem entre o sujeito e o mundo exterior, tanto mais difícil se torna para o eu perceber suas ilusões” (JUNG, 2011, p. §17).

John Merrick era usado como um espelho que refletia aspectos obscuros da alma humana. Aprisionado no circo, era possuído, como se fosse um objeto, por uma instituição que explorava sua imagem deformada em troca de trocados, para que ele vivesse de maneira miserável. Servia então como um espelho, mas, obviamente, não era reconhecido como tal. Sua história ainda serve como um retrato da sociedade narcisista contemporânea que não reconhece que aquilo que enxerga e a fascina é reflexo sombrio dela mesma. Narciso acha feio o que não é espelho, mas não sabe que olha para si mesmo quando vê a projeção de sua imagem na água. Por isso, finge não querer ver, mas no fundo só quer olhar, tornando-se mero expectador e nunca ator da sua própria existência. Assim é a sociedade atual, formada por indivíduos fascinados pelas próprias sombras refletidas nas milhares de imagens publicadas incessantemente nas redes sociais; poucos parecem enxergar o homem-elefante que habita o mundo interior de cada um.

John carrega em sua sombra o contrário daquilo que é sua figura desfigurada. Por fora ele é o homem-elefante considerado monstruoso pelo público, por dentro, um ser humano gentil negado de sua humanidade. Quando finalmente a conquista, acredita-se humano e tenta dormir como uma pessoa normal, algo que era impossível para ele por conta do peso da sua cabeça agigantada. O que é mais curioso, é que John sabia disso, tinha ciência de que se tentasse dormir deitado, ao invés de sentado, como sempre fazia, morreria sufocado durante o sono.

John Merrick completa sua jornada: humanizando-se deixa de viver. A sombra humanizada não tem mais serventia e aqui, a totalidade da psique completa o processo que leva à individuação. Na sombra de John descansava a possibilidade de ser reconhecido como um ser humano e quando isso ocorre, quando ele finalmente se vê como tal, parece ter encontrado o seu mito do significado individual.Não enxergo a morte de John de uma maneira negativa, na minha visão, ele cumpriu seu caminho e o inconsciente se realizou, talvez de uma maneira inversa da que gostamos de imaginar: quando a sombra ganha vida, John pode finalmente morrer. Sua cura foi livrar-se da identificação sombria da coletividade. Antes era a sombra de todos, mas quando se compreende tão humano quanto os outros, integra seus conteúdos inconscientes. Conscientemente John se entrega para o mundo dos sonhos e das trevas e finalmente dorme como uma pessoa normal.

No final, quem salvou quem nessa história? Médico e monstro trilharam juntos a construção de uma relação amorosa de entrega, companheirismo e honestidade. O monstro é o curador da alma do médico, o médico é o curador da alma do monstro; um representando a sombra do outro. Portanto, o médico resgata o monstro e o monstro resgata o médico, algo que não foi possível para o Dr. Jekyll que tentou negar a existência de Mr. Hyde e acabou sendo completamente tomado por ele, como é contato no romance O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson. Quando nos aproximamos da sombra, percebemos que somos controlados por forças maiores do que o ego e do que a própria consciência. Se tentamos fazer com que ela permaneça invisível, fatalmente ela irá irromper na consciência tomando controle do eu. A sombra quer participar, é uma parte viva da personalidade e não podemos simplesmente anulá-la ou torná-la inofensiva através da racionalização. É preciso imaginar a sombra, assim como ela tem o direito de imaginar o eu.

Fotos do artigo “Morte do Homem Elefante” publicado British Medical Journal em 1890 – Domínio Público.

REFERÊNCIAS

BALESTRINI JR, J. L. Sonho, Imagem, Imaginação e o Coração Onírico. São Paulo: Eleva Cultural, 2023. 256 p. 978-65-993921-5-3 

CAMUS, A. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo.  Livros do Brasil, 1961.

GIRARD, R. O bode expiatório.  Leya, 2020. 9724423506.

JUNG, C. G. Aion-Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo (OC 9/2). : Petrópolis: Vozes, 2013f.(Original publicado em 1951) JUNG, CG Símbolos da … 2011.

JUNG, E. Animus e anima.  BOD GmbH DE, 2020. 655736023X.

MONTAGU, A. The elephant man: a study in human dignity.   1979. (Paperback.

WILHELM, R. I Ching: o livro das mutações. : São Paulo: Pensamento-Cultrix 1984.


[1] No original: “Their deformity remind us of the crippled image we are reluctant to face, of ourserves, an image we reject, from wich, indeed, we recoil. It is the image we project upon thses hapless sufferers who we think as as monstrous.”

Exit mobile version