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A Substância: quando o feminino rejeita a segunda metade da vida

O artigo analisa o filme A Substância (2024) sob a ótica da psicologia analítica, explorando a crise de meia-idade enfrentada pela protagonista Elisabeth Sparkles. Após ser demitida aos 50 anos, ela participa de um experimento para recuperar a juventude, mas a coexistência entre sua versão jovem e velha gera conflito e desintegração. O texto aborda os arquétipos da puella e da anciã, que não se integram, evidenciando sua rejeição ao processo de metanoia e à individuação. Elisabeth permanece presa à persona e à ilusão de perfeição, culminando em um estado de fragmentação psíquica. O filme reflete os desafios contemporâneos de envelhecimento e busca de identidade.

O artigo analisa o filme A Substância (2024) sob a ótica da psicologia analítica, explorando a crise de meia-idade enfrentada pela protagonista Elisabeth Sparkles. Após ser demitida aos 50 anos, ela participa de um experimento para recuperar a juventude, mas a coexistência entre sua versão jovem e velha gera conflito e desintegração. O texto aborda os arquétipos da puella e da anciã, que não se integram, evidenciando sua rejeição ao processo de metanoia e à individuação. Elisabeth permanece presa à persona e à ilusão de perfeição, culminando em um estado de fragmentação psíquica. O filme reflete os desafios contemporâneos de envelhecimento e busca de identidade.

Resumo: O artigo analisa o filme A Substância (2024) sob a ótica da psicologia analítica, explorando a crise de meia-idade enfrentada pela protagonista Elisabeth Sparkles. Após ser demitida aos 50 anos, ela participa de um experimento para recuperar a juventude, mas a coexistência entre sua versão jovem e velha gera conflito e desintegração. O texto aborda os arquétipos da puella e da anciã, que não se integram, evidenciando sua rejeição ao processo de metanoia e à individuação. Elisabeth permanece presa à persona e à ilusão de perfeição, culminando em um estado de fragmentação psíquica. O filme reflete os desafios contemporâneos de envelhecimento e busca de identidade.

Recentemente entrou em cartaz o filme A Substância (2024), estrelado pela atriz Demi Moore e dirigido por Coraline Fargeat, o qual causou grande impacto na crítica e no público em geral.

O filme conta a história da apresentadora de TV Elisabeth Sparkles, que é demitida no seu aniversário de 50 anos, demissão justificada pelo seu envelhecimento. Inconformada com a rejeição sofrida, ela aceita passar por um experimento que prometia que ela retomasse a vida perdida e atingisse a sua “melhor versão”. Melhor versão esta que, na verdade, é um duplo de Elisabeth, mais jovem, mais bonita, mais perfeita. Contudo, mesmo havendo duas Elisabeth, uma jovem e uma velha, o experimento alertava que elas eram uma.

No filme, tanto a antiga como a nova versão de Elisabeth coexistem, mas distantes entre si. Enquanto uma está performando a outra está escondida.

Pelas orientações do experimento, ambas deveriam ter um tempo de recuperação em que haveria uma retroalimentação entre as versões, mas no decorrer do tempo essa tentativa e integração fica insuportável. A nova Elisabeth não consegue conviver com os limites da velha Elisabeth, e as versões acabam por se afastar e adoecer. A coexistência que poderia ocorrer se o protocolo estipulado pelo experimento fosse respeitado não acontece e, ao final, a integração das versões gera um monstro. A jovem não aceita a experiência da velha, e a velha não aceita a vida na jovem.

Analisando pela perspectiva junguiana, Elisabeth, aos 50 anos, constela o arquétipo da puella, pelo qual recusa-se a sofrer as consequências do envelhecimento, utilizando para tanto a Substância. Quando demitida, ao invés de utilizar o fato como impulso para a transformação, regride, buscando uma forma de parar o tempo, demonstrando estar identificada com a persona valorizada pelo patriarcado. A personagem recusa-se à metanoia, seja por inconsciência, seja por atendimento do zeitgeist ou espírito da época contemporâneo, que possui como um de seus valores a supremacia da ciência e a técnica.

Como Jung bem anuncia, falando do espírito da época, ele é como uma religião, um credo, e não se enquadra em categorias da razão humana (2000, p. 296). Estar sempre jovem, ser bem-sucedido, sempre com alta performance são algumas das fantasias da atualidade, e que impregna a todos os indivíduos.

Ao mesmo tempo que o duplo jovem recusa-se a ir em direção ao pôr-do-sol, utilizando-se aqui a metáfora de Jung para a segunda metade da vida, a outra parte, o arquétipo da velha sábia, a chama para aceitar o destino de todo ser humano, a passagem do tempo, quando vê que a jovem não possui a sua sabedoria. A sua versão do presente e, portanto, mais antiga, a chama, a partir da consciência de que a jovialidade do corpo não traz a sabedoria da experiência. Contudo, por resistência, Elisabeth não as integra, não progredindo sua energia psíquica para a individuação. Se transformando ao final não num indivíduo íntegro, mas numa coisa amorfa, desintegrada.

A personagem no filme está totalmente vinculada persona, que é a máscara social da profissional bem-sucedida, jovem e símbolo sexual.

Na definição de Jung, podemos entender persona como “uma simples máscara da psique coletiva, máscara que aparenta uma individualidade. Procurando convencer os outros e a si mesma que é uma individualidade, quando, na realidade, não passa de um papel, no qual fala a psique coletiva” (2015, p. 47)

Como evidência, no filme podemos ver várias fotos suas sozinha, tanto em sua casa como na empresa, todas em grandes dimensões, sem demonstrar em nenhuma delas relações de intimidade com ninguém, sendo apenas ela. Aparentemente, além de tomada pela persona, ela encontra-se em hybris, isto é, vê-se em uma situação de superioridade, com o ego desconectado da totalidade psíquica, com uma inflação que não reconhece suas limitações e se desconecta da função do self como regulador psíquico.

Outra característica apresentada no filme por Elisabeth é que ela constela o arquétipo da puella, pois não aceita a inexorável ação do tempo.

Antes de explicarmos no que consiste a puella, cabe esclarecer o que é arquétipo.  Segundo a teoria da psicologia analítica, o arquétipo é entendido sob o conceito de inconsciente coletivo. Para Jung, os arquétipos são padrões coletivos, significando um ““typos” (impressão, marca-impressão), um grupamento definido de caráter arcaico que, em forma e significado, encerra motivos mitológicos, os quais surgem em forma pura nos contos de fadas, nos mitos, nas lendas e no folclore” (Jung, 2017, p. 35)

Quando se dá a constelação do arquétipo “indica que o indivíduo adotou uma atitude preparatória e de expectativa, com base na qual reagirá de forma inteiramente definida” (Jung, 2000, p. 41). Assim, Elisabeth ao agir identificada com a jovem, com o ideal de beleza eterna está atuando sob os efeitos do arquétipo da puella.

Elisabeth, no decorrer do filme, demonstra que tem grande dificuldade em aceitar a passagem do tempo e mudança provocada por ele.

Ela demonstra de várias formas uma incapacidade de amar e de sentir, não tendo relacionamento significativos com outras pessoas, apenas e exclusivamente com o trabalho e com sua própria imagem. Como característica da puella que expressa, ela possui um ego frágil, uma persona rígida. Funcionando como fachada, com o eu abandonado, e o entusiasmo embotado, o que podemos observar quando ela ao ser demitida ao invés de refletir sobre o fato, reage de forma intempestiva para reverter o ocorrido.

O arquétipo da puella aeterna representa a menina eterna, aquela que se sente uma fraude, vergonhosa, pequena, vulnerável e medrosa, muitas vezes com grande sentimento de insuficiência. A marca registrada da puella aeterna é aquela que vive provisoriamente, escondendo-se nas sombras da desconexão, auto aversão e rejeição da autoexpressão autêntica, enquanto recusa as partes inconscientes que precisam de integração (Schwartz, 2025).

Sob determinado aspecto, dentre os mitos que tratam da juventude feminina no ocidente, podemos identificar para o caso, como puella, o mito de Artémis, a deusa virgem, que se refere ao auto centramento, ainda não pronto para se abrir. Como virgem, ela é autodirigida, autônoma e fechada, não estabelecendo relações com outras pessoas do mundo exterior.

Na personagem, podemos observar o aspecto da puella, pelo qual ela está presa na fantasia que vive em uma bolha do sucesso e da juventude. Abdicando do espelho masculino, submissa ao patriarcado (que é representado pela emissora e pelo seu chefe), com sua individualidade interrompida, já que busca atender o ideal performático da coletividade. Tem uma capacidade subdesenvolvida de empatia e compaixão por si mesma e pelos outros, sendo extremamente dura consigo mesma e implacavelmente crítica, o que podemos observar quando ela não aceita sair com um homem que demostra interesse por ela, por se considerar velha demais.

Tensionando com a puella constelada, temos um outro aspecto que emerge do arquétipo do feminino, em sua versão sombria, que é a bruxa.

Segundo Magaldi, a imagem arquetípica da bruxa, a qual “tem um perfil de personalidade histriônica, impaciente, ressecada e rígida, com desejos de vingança e poder, devido seus sentimentos de exclusão e de infertilidade”, o que podemos observar em Elisabeth.

 A Elisabeth do presente, vendo que a sua versão mais jovem a estava ignorando, desconsiderando a sua importância e que ela a jovem só existe porque a velha-bruxa ali também está, começa a sabotar o processo da Substância. A versão velha e nova, ao invés de coexistirem para uma síntese, uma transformação para formação do tertium non datum (terceiro elemento que surge como síntese ou resolução de uma oposição entre as duas imagens arquetípicas opostas) elas se digladiam, querendo um sobressair sobre a outra, querendo existir unilateralmente.

Para Jung, a vida seria dividida em duas fases, que ele denominou de primeira e segunda metade, cada qual com suas tarefas e desafios psicológicos específicos.

A primeira metade da vida teria como característica o foco no mundo externo, pois o principal objetivo é a adaptação do indivíduo à sociedade. Nesta fase, se constrói uma identidade pessoal, se estabelece uma carreira, formam-se relações pessoais e cria-se a base material e social. Nesse sentido, o ego e a persona são fortalecidos, favorecendo à adaptação.

Já na segunda metade da vida, que ocorre ao atingir a meia-idade (geralmente em torno dos 35-40 anos), a adaptação não está focada no mundo externo, mas sim na adaptação ao mundo interno, como um chamado do Self. Nesta fase, a tarefa principal é a individuação, que Jung descreve como o processo de tornar-se quem você realmente é. Isso envolve integrar aspectos inconscientes da psique e alcançar um equilíbrio entre o ego e o Self. O foco principal volta-se para o mundo interior, e o indivíduo é empurrado, muitas vezes através da crise existencial ou de eventos externos, a voltar-se para dentro e reconectar-se com o Self, arquétipo da totalidade e centro psíquico.

Esse momento é chamado de metanoia, consistindo em uma profunda transformação psicológica e espiritual que ocorre em um indivíduo.

O termo tem origem no grego antigo, significando literalmente “mudança de mente” (meta = além, mudança; noia = mente). Seria descrito como um processo de reorientação interior, em que a pessoa enfrenta aspectos reprimidos, desconhecidos ou não integrados de si mesma, dando início a uma nova percepção de vida e identidade.

No filme, a demissão leva a personagem a crise, contudo ela resiste à transformação, a sair da vida adaptada ao mundo externo para encarar aquilo que desconhece sobre si, a sua sombra, que nas palavras de Von Franz consiste em “qualidades reprimidas, não aceitas ou não admitidas porque incompatíveis com as que foram escolhidas” (2003, p. 8).

Ao resistir à chegada da metade da vida, todas as consequências psicossomáticas e tarefas externas que a passagem do meio impõe, Elisabeth resiste à metanóia e a puella e a anciã-bruxa não são integradas de forma harmônica, mas formam uma coisa, que não é nem nova nem velha, nem um terceiro elemento, mas pedaços sobrepostos e não digeridos de si. Ao final, essa coisa acaba por morrer de forma trágica, sem sentido, por não ter tido consciência da jornada.

Sendo assim, esta breve análise de A Substância evidencia como a rejeição à segunda metade da vida e a resistência à metanoia podem levar à desintegração psíquica e ao afastamento do processo de individuação.

A trajetória de Elisabeth Sparkles reflete as tensões entre os arquétipos da puella e da anciã, destacando os desafios do envelhecimento em uma sociedade que valoriza a juventude e a performance. Ao buscar manter a ilusão de perfeição, Elisabeth nega aspectos essenciais de sua psique, resultando em uma fragmentação que impede sua transformação em um ser íntegro. O filme, sob a perspectiva junguiana, funciona como um alerta sobre os perigos de se resistir às mudanças inevitáveis da vida, ressaltando a importância de integrar seus conteúdos sombrios para que o ego se submeta ao Self.

Marta Beatriz Conceição GuedesAnalista em formação IJEP

Ana Paula Z. MalufAnalista Didata IJEP

Referências:

Franz, M.-L. V. (1985). A sombra e o mal nos contos de fada (18e ed.). São Paulo: Paulus.

Franz, M.-L. v. (2003). Mitos da Criação. São Paulo: Paulus.

Hollis, J. (1995). A passagem do meio: da miséria do significado na meia-idade. São Paulo: Paulus.

Jung, C. G. (2000). A natureza da psique. Petrópolis: Vozes.

Jung, C. G. (2015). O eu e o inconsciente (27 ed., Vol. 7/2). Petrópolis: Vozes.

Jung, C. G. (2017). Os fundamentos da psicologia analítica. Petrópolis: Vozes.

Magaldi Filho, W. (22 de dez de 2022). Crise da meia idade feminina – rainha ou bruxa? Fonte: www.ijep.com.br: https://blog.ijep.com.br/crise-da-meia-idade-feminina-rainha-ou-bruxa/

Schwartz, S. (2025). A Jungian exploration of the puella archetype: girl unfolding (1 ed.). New York: Routledge.

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