Site icon Blog IJEP

A utopia da irmandade universal à luz do arquétipo da alteridade

Mais de dois mil economistas, empreendedores e pesquisadores com menos de 35 anos reuniram-se com o Papa Francisco em novembro de 2020 para discutir propostas para uma nova economia. Mais do que um evento, o movimento denominado Economia de Francisco, e rebatizado no Brasil de Economia de Francisco e Clara, teve como objetivo firmar um pacto para criar a economia do futuro “com alma” – mais justa, sustentável e protagonizada pelas pessoas hoje excluídas. Desde a convocação, em maio de 2019, jovens de 115 países vêm se articulando e discutindo propostas e projetos. Eu nem precisava ser jornalista para reconhecer como notícia um movimento desse porte que, no entanto, praticamente passou em brancas nuvens. Parece que a falta de espaço nas mídias para falar de uma economia inclusiva reflete o não lugar do “outro” nas nossas relações pessoais, comunitárias e sociais – e quem sabe dentro de nós mesmos.

Contraculturalmente, o papa fala de “fraternidade” e “amizade social” – base de sua Carta encíclica publicada no mesmo ano e contexto, Fratelli tutti (“todos irmãos”) e dirigida “a todas as pessoas de boa vontade” (§7) – em um contexto de individualização, em que o coletivo perde cada vez mais força e importa apenas e tão-somente o indivíduo, sem laços ou com vínculos frágeis e passageiros. A pandemia da Covid-19, cujo combate pede um engajamento coletivo, escancara essa fraqueza e por isso até agora nos vence.

No contexto político-social, vemos no Brasil e em outros países o acirramento de disputas e polarizações. O princípio da polaridade é um dos sete princípios herméticos, segundo o qual tudo tem o seu oposto e os extremos se tocam. Para Jung, a questão das polaridades é de vital importância. Ele mergulhou nos estudos alquímicos e na questão da coniunctio, que é a união dos opostos, para mostrar o caminho do desenvolvimento humano através do processo de individuação e retorno ao Self, centro ordenador e unificador da psique total. Apenas no reconhecimento e na integração dos opostos se pode tornar-se quem se é, o que é sempre um gerúndio – ir tornando-se – e nunca algo completo e finalizado.

Na linha junguiana, o pesquisador brasileiro Carlos Byington chama de “arquétipo da alteridade” o que, numa posição dialética, propicia o relacionamento entre os opostos, ou, na consciência, entre o Ego e o Outro, reconhecendo as diferenças e fazendo com que elas somem e não dividam. Sua base é a compaixão. Neste artigo, veremos como esse arquétipo joga luz sobre a utopia da irmandade, que insiste em aparecer, e a força que pode ter aquilo que não tem lugar.

O outro na Fratelli Tutti e em Jung

A palavra “outro” (“outros”) aparece 135 vezes no sentido pessoal, ou seja, a pessoa do outro, na Carta encíclica Fratelli Tutti sobre a fraternidade e a amizade social. Já no primeiro número, o Papa Francisco, citando um conselho de São Francisco de Assis, figura que inspira seu nome, atitudes e encíclicas, convida a amar o outro e o define como “o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si” (FRANCISCO, 2020, §1). Para o papa, essa é a base do que chama de uma “fraternidade aberta”, estendida a todas as pessoas, independente das diferenças ou exatamente nelas. No segundo número, de fato, voltando a citar o santo, o pontífice destaca os excluídos e a natureza.

Nos números seguintes da Introdução, Francisco revela que a fraternidade que o santo homônimo ensinou, e ele propõe a todas as pessoas de boa vontade através dessa Carta, é um amor que, “sem negar a própria identidade” (§3), busca “viver em harmonia com todos”, libertando-se “de todo o desejo de domínio sobre os outros” (§4). Citando também a contribuição de outros líderes religiosos, Francisco ressalta o que pretende enfatizar: a dimensão de abertura a todos do amor. E antes de que o que já é utópico pareça alienado, o pontífice traz a realidade diante da qual faz o que chama de “humilde contribuição” (§6): “perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros”. Destacou a pandemia da Covid-19, que mostrou a nossa fragmentação, apesar da superconexão.

C. G. Jung, no texto “A importância da psicologia para a época atual”, considera que no mais primitivo ou primordial havia apenas “uma espécie de consciência global” (2018a, §281), sem diferenciação entre o “eu” e o “tu”. Nesse texto de 1939, Jung coloca o atual estágio como de crianças que apenas começaram a falar “eu”. Parece que “avançamos” no sentido deste “eu”, porém na forma de individualismo cada vez mais exacerbado, no qual os vínculos comunitários e sociais se afrouxam. Naquela época, no entanto, Jung já dizia (§290):

A humanidade experimentou inúmeras vezes, tanto individualmente quanto como coletividade que a consciência individual significa separação e inimizade. No indivíduo, o tempo de dissociação é tempo de doença, o mesmo acontecendo na vida dos povos. Não podemos negar que a nossa época é um tempo de dissociação e doença. 

            Em função disso, ele apresenta no mesmo parágrafo o mal-estar crescente que experimenta quem tem ao menos “só um pouquinho de sentimento de responsabilidade”. E mais ainda quando pensamos na palavra responsabilidade como habilidade responsorial ou resposta hábil ao rosto do outro.

A análise de conjuntura que o Papa Francisco faz em sua encíclica (2020) no capítulo denominado “As sombras dum mundo fechado” mostra bem esse mal-estar e essa situação de doença, traduzidos por “nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos” (§11); solidão e interesses individuais em detrimento da dimensão comunitária (§12); perda de sentido e da consciência histórica (§13); descarte de pessoas (§18); “inúmeras formas de injustiça” (§22); “deterioração da ética” e “enfraquecimento dos valores espirituais e do sentido de responsabilidade” (§29); entre vários outros pontos. Neste contexto, “esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade […], reina uma indiferença acomodada, fria e globalizada, filha duma profunda desilusão” (§30). A pandemia da Covid-19, se por um lado exacerbou o “mal-estar”, por outro escancarou que “ninguém se salva sozinho” e, para o papa, deixou a descoberto “esta (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos.” (§32)

Mas como chegar a reconhecer uma pertença de tal grandeza se o outro é aquele que perturba e chegamos a considerar a sua manifestação como delito? “O ser outro funciona como perturbação da ordem mundial, como erro que deve ser afastado o mais rápido possível ou como delito que é preciso punir.” (JUNG, 2018a, §277). Como nos custa aceitar concretamente as diferenças! “Mesmo aceitando em geral a diversidade da psique humana, esquecemos na prática sempre de novo que o outro é realmente um outro, que sente outra coisa, pensa, percebe e quer outra coisa do que eu.” (JUNG, 2018a, §279) 

            Para Jung, porém, no auge da escuridão da cultura atual está “o germe de nova luz” (2018a, §295). E o processo começa pela conscientização do “outro” em “mim”. Para Hillman, a “presença da alteridade em nossas vidas é sentida como autodesconhecimento, auto-alienação. Sou sempre um pouco estranho para mim mesmo e nunca posso conhecer-me a mim próprio exceto através da descoberta do outro que fantasio estar em algum lugar” (1999, p. 198). 

A alteridade é parte do processo da individuação, que passa por ela para chegar a uma consciência mais ampla e holística. E o caminho se dá no embate e acolhida dos opostos, na sua integração, que não é assimilação ou eliminação. Hillman convida a observar a serpente hermética menos no sentido do movimento de colear da esquerda para a direita mantendo os opostos unidos e mais na própria intermediação e o espaço criado por ela. “Focalizar os opostos é perder as oportunidades, perder o Hermes cuja presença está precisamente no entre.” (1999, p.181).

Ao falar do processo de iniciação ao significado da inquietude (a busca a partir da experiência de divisão de si mesmo e incompletude), Hillman diz: “A iniciação não faz de nós seres integrais; antes faz-nos sabedores de estarmos sempre em uma sizígia com outra figura, sempre em uma dança, sempre o reflexo de outro invisível” (1999, p. 199). É um outro fora de alcance, um outro sempre outro, não assimilável, mas que me provoca a não o negar, mas a estar diante dele. Curioso que a sizígia é justamente relacionada ao arquétipo da alteridade, como veremos a seguir. 

O arquétipo da alteridade e a força do não-lugar

Arquétipos, na definição de Jung no texto “Sobre os arquétipos do inconsciente coletivo”, que faz referência ao aparecimento do termo em autores clássicos, tomando sobretudo o “eidos” platônico, são “imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos” (2018c, §5). Portanto, tipos arcaicos ou primordiais, formas, como que recipientes vazios, aos quais não se tem acesso diretamente, mas pelas ideias ou imagens arquetípicas, e quando preenchidas pela experiência consciente. Trata-se de uma estrutura herdada que influencia um padrão de comportamento e será atualizada na vida do indivíduo. Os arquétipos possuem uma forte carga de energia, influenciando o pensar, sentir e agir de cada psique, e são ativados compulsivamente, de forma construtiva ou destrutiva.

O pesquisador brasileiro Carlos Byington apresenta o arquétipo da alteridade como aquele que possibilita as polaridades interagirem na consciência numa relação dialética, na qual cada polo tem o mesmo direito de se expressar. É ele que propicia o “relacionamento simétrico entre o Ego e o Outro” (2015, p. 51). Ele é justamente o terceiro da relação entre os opostos matriarcal, que não diferencia o eu do outro (relação simbiótica), e patriarcal, que marca bem as separações opressor-oprimido, forte-fraco, senhor-escravo (relação dominadora). Aqui, as diferenças são reconhecidas sem que uma precise vencer a outra. Porque promove a comunhão das diferenças, há quem o chame de arquétipo da democracia, da criatividade e do amor. 

Como se pode ver, é um estágio mais avançado de consciência, totalmente ligado ao processo de individuação, meta do desenvolvimento humano para Jung. É o tornar-se si mesmo, uma totalidade formada pela complementação de consciente e inconsciente. Não é uma meta no sentido de que será atingida – não se atinge –, mas de que se caminha para ela, o telos de um processo que está ligado tanto ao despojamento da persona como do poder das imagens primordiais ou arquetípicas, segundo o próprio Jung em “A função do inconsciente” (cf. 2018b, §269). “Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por ‘individualidade’ entendermos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo” (2018b, §266).

Além disso, Jung explica que a individuação não tem uma ênfase egoísta ou individualística, porque o ser humano é composto de fatores universais e, por isso, não oposto à coletividade (cf. 2018b, §268). Sua singularidade está na combinação única das qualidades universais. Ao realizá-la, caminha-se para a “cooperação viva” daqueles fatores e para uma melhor relação com os demais e todo o ambiente – alter e holos presentes. 

Essa consciência ampliada não é mais aquele novelo egoísta de desejos, temores, esperanças e ambições de caráter pessoal […]; tornar-se-á uma função de relação com o mundo de objetos, colocando o indivíduo numa comunhão incondicional, obrigatória e indissolúvel com o mundo (JUNG, 2018b, §275).

Quando reflexões, projetos e clamores surgem daqui e dali durante tanto tempo, e iniciativas despontam, isso faz-nos pensar que a utopia, aquilo que não tem lugar neste mundo, nem por isso é fraca. Ao contrário, sua força de resistência é capaz de abrir brechas que sustentam silenciosamente a humanidade através do novo que manifestam. Novo que vem de baixo, do chão da vida, do indígena, do quilombola, da mulher e sobretudo do entre – afinal, quem sabe a renomeação pela delegação brasileira do movimento convocado pelo papa para “Economia de Francisco e Clara” tenha seu caráter revolucionário no “e” capaz de unir opostos.

Onde falta alteridade, é urgente “nos constituirmos como um ‘nós’ que habita a casa comum” (FRANCISCO, 2020, §17), “caminhantes da mesma carne humana” (§8).

Tania Pulier, analista em formação pelo IJEP

Referências

BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. Psicologia simbólica junguiana: a viagem de humanização do cosmos em busca da iluminação. 2 ed. São Paulo: Linear B, 2015.

FRANCISCO. Fratelli Tutti: sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Paulus, 2020.

HILLMAN, James. O livro do puer: ensaios sobre o Arquétipo do Puer Aeternus. São Paulo: Paulus, 1999.

JUNG, Carl Gustav. Civilização em transição. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2018a.

___. O eu e o inconsciente. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 2018b.

___. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2018c.

Tania Pulier

Exit mobile version