A afetividade – para C. G. Jung expressa por meio de sentimentos, sensibilidades, emoções – seria o fundamento da personalidade. Esses centros de energia afetiva estariam, como sóis, no centro de galáxias de energia psíquica conhecidas em psicologia junguiana como complexos.
Todos temos complexos, uma vez que eles seriam “manifestações normais da vida” (JUNG, 2012a, § 211). Aliás, em psicologia junguiana, o próprio eu é entendido como um deles. “O Complexo do Ego seria um entre os múltiplos – o Eu como um dos outros na psique em cada um” (SALVADOR, [s.d.]). Segundo Ajax Salvador, “Jung destaca que o complexo do Ego seria formado pela percepção geral do corpo, existência e pelos registros da memória” (SALVADOR, [s.d.]).
A batalha entre ego e complexo, obviamente, não é das mais fáceis. Até porque o ego tem interesse em manter a situação como está, uma vez que, de uma forma mais ou menos efetiva, está fazendo o indivíduo seguir pela vida. Mas com que qualidade? Quando recalcados ou cindidos, os complexos podem ser altamente prejudiciais a uma vida plena. Nos seus trabalhos iniciais, feito com os testes de associação, Jung já estabelecia a relação entre “complexo e neurose” (JUNG, 2012, § 1352), “cujo efeito perturbador faz com que as pessoas adoeçam” (JUNG, 2012, § 1353).
Como os complexos foram forjados pelas percepções que o indivíduo teve dos acontecimentos, com as quais construiu sua realidade, é justamente por meio da narração de seu cotidiano, sonhos e memórias, bem como relatos de fantasias e imaginações, que é possível ressignificar estes eventos ao longo do processo analítico.
Assim, o complexo vai sendo despotencializado, isto é, conscientizado e elaborado ao longo das sessões. Como, à semelhança do corpo, a psique é entendida como um sistema autorregulatório, é por meio da compreensão destes conteúdos simbólicos que “os complexos tornam-se visíveis” (KAST, 2019, p. 23).
Esse processo libera a energia psíquica do analisando. É como se houvesse um nó de energia estagnada ou congelada que, ao ser reintegrado, volte a seguir seu curso. Não é que o complexo suma como num passe de mágica, evidentemente, mas o fluxo interrompido do desenvolvimento pode ser retomado, em alguma medida, o que permite que a pessoa apresente um ajuste mais satisfatório em seus relacionamentos com outros e com o meio em que vive. Em outras palavras, a vida volta a fluir. Por isso que Jung dizia que os complexos, “com efeito, constituem as verdadeiras unidades vivas da psique inconsciente, cuja existência e constituição só podemos deduzir através deles” (JUNG, 2012a, § 210).
O problema é que estes núcleos possuem um grau alto de autonomia em relação à consciência. O que levou Nise da Silveira a dizer que a “verdade é que não somos nós que temos o complexo, o complexo é que nos tem, que nos possui” (SILVEIRA, 2007, p. 30). “O complexo obriga-nos a perder a ilusão de que somos senhores absolutos em nossa própria casa” (SILVEIRA, 2007, p. 30). Os complexos estariam, portanto, por trás de lapsos e gafes, situações contraditórias e perturbações da memória.
Esta interferência é comum inclusive na relação analítica entre analisando e analista. Não por acaso, a análise teria justamente com alvo principal possibilitar que o ego, o centro da consciência, se estruture e, assim, administre os diferentes tipos de complexo (materno, paterno, de poder, de inferioridade, entre outros).
Waldemar Magaldi lembra que dentre “todas as possibilidades de transferência, a do complexo materno negativo é a mais perversa, porque mantem o analisando na condição de puer, a eterna criança ou adolescente que não quer contrariar a mãe” (MAGALDI, [s.d.]).
Para ele, o analisando precisa compreender que o processo analítico é mais importante do que seu embate inconsciente com o analista, e que ambos precisam se unir para enfrentar o complexo dominante. Caso contrário, “mais uma vez acontecerá a frustação e, como no mito de Sísifo, [o analisando] partirá para um novo recomeço, por um novo caminho, mas com a mesma pedra, que é o complexo materno negativo e o dinamismo do puer constelado na personalidade” (MAGALDI, [s.d.]).
O que há no núcleo do simbolismo de um complexo? Em geral, uma imagem arquetípica. Mas isto fica para o próximo artigo.
Referências
JUNG, C. G. A natureza da psique (OC 8/2). 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012a.
JUNG, C. G. Estudos experimentais. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012b.
KAST, V. Jung e a Psicologia Profunda. São Paulo: Cultrix, 2019.
MAGALDI, W. Complexo materno, relação transferencial e o puer/puela aeternus. Disponível em: <https://www.ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=243&ref=complexo-materno-relacao-transferencial-e-o-puer/puela-aeternus#conteudo>. Acesso em: 5 ago. 2019.
SALVADOR, A. P. Complexo do eu sujeito como posiçao de indeterminação. Disponível em: <https://www.ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=238&ref=complexo-do-eu—sujeito-como-posicao-de-indeterminacao#conteudo>. Acesso em: 5 ago. 2019.
SILVEIRA, N. DA. Jung: vida e obra. 21. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.
Monica Martinez, analista em formação do IJEP – Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa – E-mail: analisejunguianasp@gmail.com.