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Amor na perspectiva da psicologia analítica: príncipes em sapos; belas em feras

Tenho uma colega que, em certa época, trabalhou com revisão de romances populares. Segundo ela, os pequenos livros eram planejados numa estrutura padrão. No início havia sempre algo que impedia que a heroína gostasse do protagonista, em geral apresentado com qualidades, como beleza física, nobreza de caráter e prosperidade econômica – atributos devidamente evidenciados num cenário exótico. Lá pelo terceiro capítulo havia uma guinada que levava a um relacionamento sexual, não raro tórrido. Ao redor do quarto ou quinto capítulo, outro acontecimento levava a jovem a conhecer melhor o herói e até aceitar um relacionamento, muitas vezes “contra sua vontade” -algo como casar com o moço bom, bonito e rico para salvar um pai da falência. Próximo do sétimo ou oitavo capítulo, havia um turning point na história que levava a mocinha a descobrir que seu amor verdadeiro estava ali, ao seu lado. A partir daí era seguir o caminho para o final feliz – condição sine qua non, afinal a consumidora comprava o livro justamente pela garantia de que o desfecho não a decepcionaria.

E minha colega ia revisando as histórias, que de novo só traziam o local onde se desenrolavam os fatos e os nomes dos protagonistas. Até que certo dia lá estava ela a revisar o romance do mês quando notou que já havia passado da metade do livro e nenhum dos conflitos previsíveis da história havia acontecido.  Ela começou a revisar o sétimo capítulo e, qual não foi sua surpresa ao ler as palavras iniciais: “E, então, Steve mudou”. O(a) autor(a), provavelmente, havia se esquecido de articular a trama, já tinha avançado por uns três capítulos e talvez não quisesse jogar fora o material, decidindo então “forçar” o mocinho a uma guinada súbita, sem maiores explicações, apenas para manter a estrutura desse tipo de romance e agradar sua leitora.

É óbvio que guinadas nos scripts amorosos (AMÉLIO; MARTINEZ, 2005)eventualmente acontecem na vida, mas embora pareçam abruptas aos olhos dos demais o fato é que elas foram cozinhadas no fogo lento dos processos psíquicos.

Há vários fenômenos envolvidos nesse processo de estruturação do ego da criança – entendido no contexto junguiano como um complexo, uma carga emocional constelada ao redor do núcleo formado por uma imagem arquetípica a partir das experiências pessoais de cada indivíduo. Na criança, a representação do feminino e do masculino é formada a partir da mãe.

O menino terá o modelo do feminino (anima) formado a partir da relação consciente com o ego da mãe ou a figura que exercer este papel de maternagem. Por isso, o menino tem uma figura de feminino bem definida – a anima é uma unidade. Daí a fantasia da “musa”: ao entrar na adolescência, o jovem sabe que tipo de mulher busca com precisão.

No caso da menina, a representação do masculino (animus) é oriunda do inconsciente da mãe (animus) ou de quem exercer este papel, sendo que Jung dizia que não se tratava de uma figura única, mas de uma legião. Não há, portanto, a fantasia de um “muso”. Assim, ao entrar na adolescência, a jovem não tem um modelo de homem tão definido, mas pode se apaixonar por várias facetas do masculino.

Essas imagens arquetípicas – que serão essenciais no relacionamento amoroso – vão sendo construídas a partir da experiência que a criança tem com os pais e em como eles reagem em suas relações e com seu entorno. No caso de ter se sentido abandonada, por exemplo, a criança reagirá como se o mundo fosse ruim. Bem cuidada, como se o mundo fosse um lugar bom, onde se pode viver sem medo. É óbvio que a criança não está numa bolha, mas inserida num contexto social. De toda forma, tratam-se de interpretações. O risco é o de a psique do adulto permanecer no estágio infantil, representada na criança que espera que haja alguém sempre pronta a estender a mão para apoiá-la em caso de queda, para satisfazer suas vontades e tomar conta dela.

As representações ligadas ao universo parental começam a ser revistas a partir da puberdade, quando gradualmente começam a ocorrer as primeiras vivências amorosas. No começo, em geral, os relacionamentos amorosos ainda são platônicos, ganhando uma materialidade com o passar dos anos, em geral de acordo com o tempo histórico e social no qual o(a) jovem está inserido(a).

O interessante é que as relações amorosas – parte integrante desta busca pelo sentido que se dá por meio da experimentação consciente da vida – é como um jogo de dois tempos. No primeiro tempo, vamos dizer dos 12 até o redor dos 40 anos, o foco está na formação da identidade, passando pela construção dos corpos físico, emocional e mental, que são ancorados nas esferas social e histórica.

Ao longo dessa primeira fase da idade adulta, o(a) jovem em tese começa a testar suas asas para se descolar da família de origem e consolidar seu próprio núcleo familiar; conquista seu espaço no mundo profissional, alguns até conseguem usar  seus recursos extras, seja de tempo ou econômicos, para apoiar serviços sociais. Nessa fase, o relacionamento amoroso se alimenta das sombras projetadas inconscientemente no outro, nas habilidades nubladas, nos pontos não desenvolvidos, enfim, nos aspectos ainda desconhecidos do jovem que serão projetados como numa tela no parceiro.

A analista junguiana alemã Marie-Louise von Franz (1915-1998) explica:

Filhos ou filhas que vivenciaram o pai como autoritário (quer ele efetivamente o tenha sido ou não) apresentam a tendência de projetar sobre todas as autoridades paternas – como um professor, um pastor, um médico, um chefe, o Estado e até mesmo a imagem de Deus – a propriedade negativa “autoritária” e de reagir diante delas de maneira correspondentemente defensiva”. Aquilo que é projetado, contudo, quando examinado mais de perto, não é de modo nenhum apenas uma imagem da lembrança do pai, mas representa a tendência autoritária do próprio filho ou filha (FRANZ, 2011).

Segundo o analista junguiano estadunidense John A. Stanford (1929-2005), quando um homem e uma mulher projetam respectivamente sua anima e seu animus um no outro, ocorre o processo de fascinação mútua conhecido como “ficar apaixonado” (STANFORD, 1980).

Figura 1: O Esquema de projeção proposto por Stanford (1980)

Nada como um dia após o outro e a intensa convivência para o príncipe encantado virar sapo, ou a princesa virar rã. A projeção que uniu o casal-até-que-a-morte-nos-separe cai por terra e, por trás dela, surge o outro como ele é – ou sempre foi.  Como uma projeção só pode ser trocada por outra, não é difícil neste momento ocorrer o “apaixonamento” por um(a) terceiro(a), tela nova no qual a projeção pode novamente ser feita.

Quanto mais a pessoa se conhece, em tese menos projetaria seus conteúdos inconscientes nos outros, uma vez que estaria em processo de tomar consciência desses conteúdos desconhecidos em si mesma. Von Franz chega a apontar os cinco estágios desse jogo de projeção: 1) a pessoa se convence de que a experiência interior e inconsciente é uma realidade externa; 2) ocorre a percepção de que há uma discrepância entre a imagem projetada e a realidade; 3) a pessoa reconhece esta discrepância; 4) o indivíduo reconhece que estava errado; 5) a pessoa passa a buscar o significado dessa projeção em si mesmo e não no outro (Von Franz apud HOLLIS, 2015, p. 47).

Caso a pessoa consiga integrar suas sombras por meio de processos psicoterápicos, ela mudará, ainda que gradualmente. Pode ocorrer, neste caso, de seu parceiro resistir à mudança, levando ao conflito e, às vezes, ao fim da relação. 

Para o analista junguiano estadunidense James Hollis, são dois os desafios da meia idade, que ele chama de “caminho do meio”. O primeiro é o encontro com a limitação, com o enfraquecimento e com a mortalidade. Não deixa de ter relação, portanto, com a imagem do trio que tocou Buda e levou-o à saga da iluminação: a noção de que não há como vencer, na materialidade, a velhice, a doença e a morte.

A segunda maior deflação das expectativas da meia-idade, segundo ele, é o encontro com as limitações dos relacionamentos” (HOLLIS, 2015, p. 47):

O Outro Íntimo que satisfará nossas necessidades, que tomará conta de nós, que sempre estará presente para nos apoiar, é finalmente visto como pessoa comum, como nós mesmos, também necessitada, e que projeta sobre nós expectativas bastante semelhantes às nossas. Os casamentos frequentemente terminam na meia-idade, e uma das principais causas é a enormidade das esperanças infantis que se impõem sobre a frágil estrutura existente entre duas pessoas. Os outros não satisfarão e nem podem satisfazer as necessidades grandiosas da criança interior, de modo que somos deixados, e sentindo-nos abandonados e traídos (HOLLIS, 2015, p. 47).

Como ele aponta, a salvação, a cura, não está lá fora. “A vida tem uma maneira de dissolver as projeções e precisamos, em meio ao desapontamento e ao desconsolo, começar a assumir a responsabilidade pela nossa satisfação” (HOLLIS, 2015, p. 47).

Para o analista junguiano, “(…) existe uma excelente pessoa dentro de nós, alguém que mal conhecemos, e que está pronta e disposta a ser a nossa constante companheira (HOLLIS, 2015, p. 47-48). Uma possível analogia, talvez, fosse a protagonista de A Bela e a Fera, que entrou recentemente em cartaz na versão cinematográfica que traz no papel principal a atriz inglesa Emma Thompson – mais conhecida como a Hermione da saga Harry Potter.

Escrita em 1740 pela francesa Gabrielle-Suzanne Barbot, Dama de Villeneuve, e adaptada em 1756 por Jeanne-Marie LePrince de Beaumont, a história também é conhecida pelo título A Bela e o Monstro. A essência da obra é a de que a aceitação do outro como ele realmente é faz com que o parceiro amoroso revele-se melhor do que aparentemente é ou parecia ser, pelo menos aos olhos da companheira.

Por extensão, seria apenas quando abandonamos as expectativas e birras da criança que há em nós e que aceitamos a responsabilidade de crescer e buscar em nós mesmos o significado que move nossa vida, confiando que nossa psique nos mostrará o caminho, que poderíamos finalmente tentar viver de uma forma madura.

Isso não significa que tudo será perfeito. Mas, ao menos, que não apontaremos um dedo para o outro quando os demais quatro dedos da mão em forma de arma apontam para nós mesmos.

Quando a cortina do palco das projeções cai, o outro pode passar de vilão a ser o aliado companheiro – com seus defeitos inclusos – dessa maravilhosa jornada rumo ao mistério e ao desconhecido de que é feita a vida, que só pode ser experenciada por meio do assombro, da gratidão, da reverência – e, claro, de muita tolerância e paciência. Sim, “e Steve mudou” da água para o vinho, de uma hora para outra, é uma fantasia que acontece apenas nos romances escritos com linhas mal alinhavadas.

Dra. Monica Martinez, analista em formação do IJEP – Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, especialista em Psicologia Junguiana, jornalista, escritora, doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pós-doutorado pela Umesp. Realizou estágio pós-doutoral na Universidade do Texas em Austin. Atende na Vila Madalena, zona Oeste de São Paulo. Email: analisejunguianasp@gmail.com

Referências

AMÉLIO, A.; MARTINEZ, M. Para viver um grande amor. São Paulo: Gente, 2005.

FRANZ, M.-L. VONZ. Psicoterapia. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

HOLLIS, J. A passagem do meio: da miséria ao significado da meia-idade. 11. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

STANFORD, J. A. The invisible partners: how the male and female in each of us affects our relationships. New Jersey: Paulist Press, 1980.

Monica Martinez

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