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Androides e a Ilusão da Humanidade Puramente Artificial

androides e humanidade

Durante os estudos para a minha participação no Congresso Junguiano do IJEP, fiz a reflexão sobre a nossa conexão com a natureza. Me perguntei como seria se a humanidade se desconectasse totalmente das suas raízes naturais e orgânicas. Nessa elaboração cheguei a um ponto de que já fantasiamos isso na figura do robô humanoide, mais comumente chamado de androide, nas obras de ficção científica e na linguagem em geral. 

Androide é designado no dicionário online Michaelis como um autômato com figura de homem e que imita os movimentos dos seres animados[1]. No Dicionário Online de Português, também temos a definição de aparelho ou máquina que se assemelha à figura humana, sendo seus movimentos idênticos aos dos humanos[2].

Acredito que existe um desejo egóico na consciência, principalmente na ocidental, de se destacar de uma vez por todas da dependência vital que temos da natureza como meio ambiente, Grande Mãe, assim como da natureza que habita em nossa psique, o inconsciente. O quanto esse desejo e essa luta não desembocam na figura do androide, essa figura que responde apenas a comandos binários pré-programados, teoricamente não precisa de uma alimentação completa e balanceada, não precisa refletir sobre a sua existência, não precisa lidar com seus dejetos orgânicos e com a sua própria sombra.

Em uma de suas passagens mais significativas, Jung chegou a afirmar que sua obra (a psicologia analítica) visa, acima de tudo, “romper com as muralhas que nos separam da natureza que há em nós” (JUNG, 2011, v. 8/2, par. 739). O autor afirmou, ao longo de toda a sua pesquisa científica, a necessidade do homem de se realizar, assim como uma semente se realiza tornando-se árvore. A esse processo, que consiste no ato de tornar-se si mesmo, ele deu o nome de individuação. Ao longo da obra de Jung é possível identificar, ainda, inúmeras passagens alegóricas nas quais o autor comparava os fenômenos naturais aos processos inconscientes e maturacionais dos seres humanos (Duarte, 2017).

Jung fala em sua obra que para que possamos elaborar uma neurose é necessário realizar a coniunsci oppositorum, ou seja, integração dos opostos que se encontram na consciência e no inconsciente e criar um símbolo por meio da função transcendente. Esse processo ocorre inúmeras vezes durante nossa vida e é chamado de individuação. Esse é o processo de desenvolvimento psicológico, em que olhamos para dentro em busca de nós mesmos, na busca do nosso verdadeiro Eu.

O abandono da nossa natureza significa uma cisão de nós mesmos e talvez essa dissociação, do homem com o meio e com sua própria natureza, esteja à frente dos principais problemas ecológicos da atualidade (Duarte, 2017). A crise ecológica parece ser um tanto distante e abstrata, mas tem ligação direta com a nossa vida.

Essa crise é nossa sombra coletiva. Uma neurose planetária que busca nos levar a uma reflexão sobre nossa relação com a natureza nos mais diversos aspectos. O espírito da nossa época, governado pelo capitalismo consumista, transformou a natureza em produto, matéria-prima. Esquecemos que da natureza vem nosso alimento e a nossa vida.

Jogamos nossos mais diversos detritos para a natureza e esquecemos que logo em seguida precisaremos ir até ela colher nossa comida, nossos remédios e beber a nossa água. Não há nada que exista em nosso planeta que não tenha sido originado na natureza. Não há nada que existe no mundo que não tenha passado pela psique. Nosso descaso com a natureza externa, mostra nosso desprezo pela nossa própria natureza psíquica. Queremos uma vida sem os incômodos da organicidade e do inconsciente.

Mas, curiosamente, essa criatura imaginária, o androide, não escapa das intempéries da psique humana. Quando não se tornam revoltosos contra a humanidade, ou ainda, nos escravizam (a exemplo: Eu, Robô e Matrix) se voltam a uma atitude reflexiva e quase invejosa sobre a humanidade (IA: Inteligência Artificial, O homem Bicentenário) desejando viver coisas que a programação binária não permite.

Os androides aparecem principalmente como ferramentas para realização de atividades que são consideradas monótonas, perigosas ou servis, que não exigem reflexão e que muitas vezes são repetitivas, tanto que as leis da robótica, inventadas por Isaac Asimov em 1950 no livro, Eu, Robô (Aleph), são apenas 3: 1) um robô não pode ferir um humano ou permitir que um humano sofra algum mal; 2) os robôs devem obedecer às ordens dos humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a primeira lei; e 3) um robô deve proteger sua própria existência, desde que não entre em conflito com as leis anteriores[3].

Segundo Jung: 

[…] para o julgamento científico, o indivíduo constitui uma mera unidade que se repete indefinidamente e pode ser igualmente expresso por uma letra ou um número. Para a compreensão, o homem em sua singularidade consiste no único e no mais nobre objeto de sua investigação, sendo necessário o abandono de todas as leis e regras que, antes de tudo, se encontram no coração da ciência […]. (Jung, 2013, §497).

Essa fala de Jung já traz luz sobre o problema da robotização da vida. Há um desejo de transformar as pessoas em números, letras e massificar a compreensão da sociedade, esquecendo que somos uma composição de indivíduos. O espírito capitalista simpatiza com essa visão e não é à toa que robôs substituem pessoas a cada dia.

Estamos vivendo em um mundo de relações extremas e binárias: ou é isso, ou é aquilo. Não há meio termo. Esse é o pensamento robótico. Pensando aqui no androide como o homem 100% cultural, não iremos mais nos alimentar de comida, mas de recursos. Não teremos mais dilemas, nem sentimentos, apenas estatísticas.

[…]A separação de sua natureza instintiva leva o homem civilizado ao conflito inevitável entre consciência e inconsciente, entre espírito e natureza, fé e saber, ou seja, à cisão de sua própria natureza que, num dado momento, se toma patológica, uma vez que a consciência não é mais capaz de negligenciar ou reprimir a natureza instintiva […]. (Jung, 2013, §558).

Jung já alertava sobre o conflito homem natural x homem cultural. Para ele não podemos ser unilateralizados em nenhum desses extremos. Precisamos da cultura para viver em sociedade, da tecnologia para garantir bem-estar, saúde, informação e alimentos para todos. No entanto precisamos da natureza para fornecer tudo isso e, ao contrário do que se parece imaginar, ela não é infinita. Nossas ações têm impacto sobre o sistema ecológico e os desequilíbrios afetam diretamente nossa vida. Não podemos viver apenas na esfera egóica, precisamos do inconsciente para trazer criatividade, mistério e criação.

Coincidência ou não, já estamos a mercê de exércitos de robôs virtuais que comandam as redes sociais e algoritmos. Não há espaço na análise desses robôs para a reflexão. Apenas respondem a comandos e nos inundam com seu trabalho de repetição.

O androide muitas vezes é retratado como o fim à humanidade, de forma que a inteligência artificial considera a existência humana imperfeita, arriscada e perigosa, a partir de então a destruição do ser humano em carne e osso passa a ser a solução para os problemas. Nesse sentido evoco a reflexão sobre o quanto nosso ego individual e nossa consciência coletiva não querem acabar com essa existência orgânica e incômoda, para dar lugar a um ideal de existência estéril, binária e artificial, onde tudo pode ser controlado?

[…] Quanto mais o homem conseguiu dominar a natureza, mais lhe subiu à cabeça o orgulho de seu saber e poder, e mais profundo o seu desprezo por tudo que é apenas natural e casual, isto é, pelos dados irracionais, inclusive a própria psique objetiva que não é a consciência. […] (Jung, 2013, §562)

Talvez esse desejo manifesto na imagem do androide revele um anseio antigo do humano de viver eternamente, e isso só é possível saindo do ciclo de vida e morte da natureza, levado às vias da literalidade. Estamos tentando fugir da nossa própria natureza, negar nossa sombra, nossa carne e nos refugiar numa vida artificial, mas esquecemos que da natureza viemos e a ela voltaremos.

Curiosamente esse desejo egóico, manifestado na imagem do androide 100% racional e cultural, ao invés de nos levar para um lugar de ampla consciência faz justamente o oposto. Transforma o homem apenas em uma unidade indiferenciada no coletivo. Para Jung: 

[…]Quanto mais uma pessoa é inconsciente, tanto mais ela se conforma aos cânones do comportamento psíquico. Mas, quanto mais ela toma consciência de sua individualidade, tanto mais acentuada se torna sua diferença em relação a outros indivíduos e tanto menos corresponderá ela à expectativa comum. Além disso, suas reações se tornam muito menos previsíveis. […] (Jung, 2000. §344).

[…] Como se sabe, a natureza não é tão pródiga com seus dons a ponto de dar, por exemplo, a uma grande inteligência também o dom do coração. Via de regra, quando um é dado, o outro falta, quando uma faculdade se aperfeiçoa isso acontece, na maior parte das vezes, à custa de todas as outras. Um capítulo especialmente penoso é precisamente a falta de integração entre sentimento e intelecto que, na experiência, dificilmente se compatibilizam. (Jung, 2013, §569)

O próprio Jung refletia sobre a incapacidade humana de abarcar e se aperfeiçoar em todos os aspectos da vida. Talvez, seja uma lei natural a que não se pode ter tudo nessa vida, para que precisemos observar nos outros o que falta em nós com uma atitude integrativa e não defensiva. Ele mesmo diz que não há sentido em formular a tarefa que se impõe à nossa época e ao nosso mundo como uma espécie de exigência moral (Jung, 2013, §570).

Reconhecer que temos nossas finitudes, limitações e incapacidades nos traz humildade. Reconhecer que em nós há a natureza e que é ela que nos torna humanos é uma reverência ao sagrado e ao profano. É um bom passo para uma integração maior com o mundo e com nosso verdadeiro Eu.

Mauro Angelo Soave Junior – Membro Analista em Formação

E. Simone Magaldi – Analista didata

Referências Bibliográficas

Duarte, Alisson J. O. Ecologia da alma: a natureza na obra científica de Carl Gustav Jung. Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, v. 35, p. 5-19, 2017.

Jung, C. G. A Natureza da Psique, Vol. 8/2, Vozes, 2000.

Jung, C.G. Presente e futuro Vol. 10/1: Civilização em Mudança – Parte 1: Volume 10, Vozes, 2013.


[1]https://michaelis.uol.com.br/palavra/o0Nq/androide/#:~:text=Aut%C3%B4mato%20com%20figura%20de%20homem,%2C%20andr%C3%B3s%2Boide%2C%20como%20fr%20andro%C3%AFde.

[2] https://www.dicio.com.br/androide/

[3] https://super.abril.com.br/cultura/as-tres-leis-da-robotica/

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