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Atendimento online na pandemia do covid-19 – uma perspectiva junguina

psicoterapia e covid

Com o advento da pandemia do COVID-19 o atendimento online ganhou um protagonismo inesperado para que psicólogos, terapeutas e analistas continuassem a fazer os seus atendimentos terapêuticos. É possível que até mesmo aqueles menos familiarizados com esse tipo de tecnologia se dispuseram a repensar a prática, a fim de manterem suas atividades profissionais em andamento e para não interromperem o tratamento de seus pacientes.

No que tange especificamente aos psicólogos, o Conselho Federal de Psicologia permite essa a prática do atendimento online, conforme portaria expedida em 2018. Na realidade, sabemos que muito antes disso terapeutas e psicólogos já praticavam o atendimento online, não apenas no Brasil, mas em muitos países, especialmente nos Estados Unidos (Russel, 2015).

Contudo, seria possível fazer o atendimento online no âmbito da análise junguiana? De maneira geral, penso que sim, mas é preciso observar alguns pontos importantes. 

Antes eu queria comentar dos aspectos funcionais dessa forma de atendimento. Mesmo sendo online, esse momento deve se aproximar ao máximo de um consultório terapêutico, ou seja, é preciso que se tenha um espaço que preserve o sigilo da conversa, tanto no ambiente do analista quanto no do analisando e que se tenha mutuamente uma boa conexão de internet para reduzir ao máximo os cortes da fala, por que quando acontece deixa a sessão bastante precária.

A dúvida que fica no ar é se o processo online tem a mesma profundidade e eficácia que a análise junguiana conduzida de maneira presencial, e aqui se abre um grande campo de pesquisa e debate, e este artigo não intenciona dar a resposta definitiva ou conclusiva sobre isso, mas oferecer algumas reflexões, baseadas em minha prática pessoal dos atendimentos que conduzo, nas conversas com colegas terapeutas que também atuam desta forma e com leituras e pesquisas sobre o tema que já realizei.

É claro que não encontraremos diretamente em Jung qualquer alusão à esta forma de conduzir a análise, por uma razão histórica, mas encontraremos uma prática comum e amplamente registrada em sua biografia: a troca de cartas. Não podemos afirmar que as correspondências trocadas entre Jung e Freud, ou entre Jung e diversas outras pessoas, tinham o mesmo efeito da análise pessoal, que requer regularidade e constância, mas seguramente ofereciam questões reflexivas, avaliativas e interpretativas, que se alinhavam em algum nível ao processo analítico. Seria o Skype, Zoom, ou qualquer outro aplicativo de comunicação online com áudio e vídeo, uma evolução das cartas amplamente utilizadas no início do século XX? Claramente nas cartas entre Jung e Freud haviam análises de sonhos que eles realizavam um do outro, mesmo não sendo dentro de uma sala, olhando olhos nos olhos. Não quero reduzir a importância do olho no olho que o ambiente físico do consultório proporciona. Mas não me parece exagero comparar o Skype do século XXI com as correspondências do século XX.

Apesar disto, precisamos relativizar, porque análise não é só comentar e interpretar um sonho ou um acontecimento. Na análise temos as epifanias, as catarses, os insights, a ampliação dos sonhos – e não a interpretação –, o choro, o riso, a linguagem corporal, os silêncios que falam muito mais do que palavras, dentre outras coisas que não são encontradas numa expressão textual. Por outro lado, parte desses acontecimentos analíticos podem ocorrer via Skype ou por qualquer outro aplicativo. 

No aspecto simbólico, não podemos nos esquecer que Jung (2002) nos ensina que os inconscientes se comunicam, e que não seria inverossímil fazer uma aproximação entre acontecimentos atribuídos ao campo tecnológico com as questões trabalhadas em análise. Como menciona Merchant (2016) em artigo publicado na Journal of Analytical Psychology, não são raros casos clínicos em que o paciente apresente grandes resistências e a conexão com a internet esteja sempre precária, especificamente para o momento da sessão de terapia, afirmando o paciente “poxa, agora a pouco a conexão estava tão boa”. Ou então, quando a sessão anterior abordou temas densos ao paciente e no momento de se ter a sessão seguinte, a internet sai do ar ou o Skype não conecta. Ou ainda, quando a fala do analista ou analisando fica entrecortada, revelando uma desconexão simbólica com o processo. Seria absurdo ver estes eventos como sincronicidade ou como mecanismos de defesa? Não me parece. 

Neste momento de pandemia, em que o isolamento social forçado inviabiliza os encontros presenciais, é possível que, em prol da sua resistência, o paciente também use de racionalização, afirmando que não gosta de usar Skype ou que sua internet “não é muito boa”. Penso que neste caso não temos nada a fazer, a não ser respeitar os limites e o posicionamento do paciente, afinal a análise junguiana, tal como menciona Gambini (2008) é como um campo a ser cultivado, onde analista e analisando se colocam como lavradores dessa terra simbólica. Se um dos lados não tem predisposição, por resistência, por evitar entrar em contato com os conteúdos sombrios, nada há a fazer.

Definitivamente o atendimento online não é a mesma coisa que o atendimento presencial, pois além das limitações das observações das expressões corporais, do analista e do analisando e dos riscos de conexões de internet ruins, impede o uso de algumas práticas arteterapêuticas (especialmente para arteterapeutas), dentre diversas outras restrições. Por outro lado, seguramente se apresenta como uma alternativa viável para o processo analítico, mas sempre com a recomendação de que, dentro do possível, se faça sessões presenciais. Afinal, se programar na agenda, ir até o consultório do terapeuta, olhá-lo olhos nos olhos, também é parte da análise, possibilitando ao analisando se conectar antecipadamente ao processo.

Pessoalmente, ainda que eu conduza atendimentos online, sou um grande entusiasta do atendimento presencial. Mas em tempos de COVID-19, em que a vida nos convida a refletir sobre mudanças profundas na humanidade, cabe àqueles que praticam a análise junguiana, pensar no atendimento online como um novo vaso alquímico, o qual pode ser um viabilizador de transformações significativas da psique, individual e coletivamente.

Rafael Rodrigues de Souza, Psicólogo e Analista Junguiano em formação pelo IJEP – r.rafaelsouza83@gmail.com

Referências:

GAMBINI, Roberto. A voz e o tempo: reflexões para jovens terapeutas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.

JUNG, Carl Gustav. Sincronicidade (v. 8/3). 11ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

MERCHANT, John. The use of Skype in analysis and training: a research and literature review. The Journal of analytical psychology, Sydney, v. 61, n. 3, p. 309-328, jun, 2016.

RUSSEL, Gillian Isaacs. Screen Relations: the limits of computer-mediated psychoanalysis and psychoterapy. London: Karnac Books: 2015.

Rafael Rodrigues de Souza

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