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Breve histórico da terapia de casal

É possível inferir, sendo um tanto generalista, que a terapia de casal tem início quando indivíduos, por suposta decisão, passaram a conviver como um par amoroso. Livros sagrados de culturas e credos distintos, canções antigas e textos clássicos apresentam conselhos aos casais para que seus casamentos sejam promissores, felizes, harmônicos e duradouros. As mulheres sempre foram as principais destinatárias desses conselhos, uma vez que, no patriarcado, a elas era e ainda é atribuída a função de ser a base de sustentação do casamento e de responsabilizar-se pela vida afetiva do casal. Na modernidade, as conquistas femininas de autonomia e reconhecimento são expressivas, porém não o suficiente para dividir esse peso de forma mais equânime entre os parceiros.

          Nos livros sobre terapia de família, a menção à terapia de casal, quando existe, ocupa uma porção reduzida do texto, evidenciando a pequena importância que os estudiosos da família deram à terapia de casal na prática clínica. Pode-se supor, por um lado, que a tradição clínica de atendimento individual considerava a entrada de qualquer membro da família, incluindo o parceiro, como maléfica ao processo individual. Por outro lado, o desenvolvimento da Terapia Sistêmica enfatizou a necessidade de trabalhar a família como um todo, atenuando o foco no casal. (C.f., NETO, 2005, p. 46-47)

          As intervenções psicológicas com casais, no início, variavam de acordo com o momento histórico e com as diferentes abordagens teóricas dos terapeutas que se propunham à essa prática. Neto descreve as variadas combinações utilizadas:

[…] cada membro do casal, simultaneamente atendido em sessões individuais, com terapeutas diferentes; cada membro do casal, simultaneamente atendido, em sessões individuais com o mesmo terapeuta; cada membro do casal atendido em sessões individuais, com o mesmo terapeuta consecutivamente, ou seja, à análise de um cônjuge seguia-se a análise do outro; do casal em conjunto com o mesmo terapeuta.                                 (NETO, 2005, p. 48)

          Diferentes pesquisadores do desenvolvimento da Terapia de Casal, apontam quatro fases metodológicas e conceituais predominantes na história dessa abordagem. A primeira fase tem início com o Aconselhamento Matrimonial onde a orientação teórica era diversificada e indiferenciada. A segunda fase caracterizou-se pela aplicação da psicanálise ao casal. Na terceira fase o enfoque sistêmico familiar é introduzido. A quarta e última fase representou vários intentos de articulação dos distintos modelos e abordagens utilizados nas Terapias de Casal.

         Considerada como a primeira fase do desenvolvimento da Terapia de Casal, o Aconselhamento Matrimonial vai de 1929 até 1932, começando com a fundação de três Institutos Clínicos de Aconselhamento Matrimonial nos EUA, embora atendimentos de casais já existissem anteriormente. Nesse período, atuavam profissionais de formações diversas, guiados pelo “bom senso”. Para esses profissionais (clérigos, médicos, educadores, assistentes sociais), o atendimento de casais representava uma atividade auxiliar de sua principal profissão. Aconselhavam jovens casais – em sessões em separado –  sobre a importância de desempenhar bem os papéis conjugais, correspondendo às expectativas da sociedade.

          A segunda fase que vai de 1934 a 1945, tem início com a fundação do “American Association of Marriage Counselors”. Surgem também, centros de treinamento que  contribuíram para a melhor formação e qualificação profissional. Mesmo com essas mudanças, o modelo de atendimento permaneceu o mesmo.

          Na terceira fase, de 1946 a 1963, a terapia de casal consolidou-se e em 1963 a profissão obteve o reconhecimento oficial.

          A quarta fase, de 1964 até 1978, assinala um intenso crescimento, incitando a busca de maior clareza quanto aos padrões de atendimento ao casal e o desenvolvimento de competências necessárias dos terapeutas. Nos anos sessenta, as relações conjugais começam a ser objeto de estudo, desenvolvendo intervenções cientificamente importantes ao tema. Como consequência, um grupo de profissionais ligados ao Aconselhamento Matrimonial aproximou-se da Psicanálise, grupo de maior prestígio na prática clínica. Nessa década, a Terapia Sistêmica de Família acabara de nascer e não tinha ainda credibilidade. Somente no final da década de sessenta, a entrevista conjunta do casal passa a predominar nos atendimentos. O ano de 1978  marcou o fim do termo “Aconselhamento Matrimonial” e o nascimento da “American Association for Marriage and Family Therapy”. (Cf. NETO, 2005, p. 50-52)

          A Psicanálise aplicada ao atendimento de casais passa por diferentes períodos. No primeiro deles – da década de 1930 até a década de 1960 –  a teoria e a técnica psicanalítica tradicionais eram os instrumentos utilizados no trabalho com casais. No segundo período – da metade da década de 1960 até a década de 1980 – ocorre uma diminuição do interesse na aplicação da psicanálise à situação conjugal. As críticas do próprio grupo psicanalítico quanto a aplicação da psicanálise em situações não tradicionais e o crescimento da Terapia Sistêmica de Família, contribuíram para esse esmorecimento. Nesse período, a Abordagem Sistêmica acusava a Psicanálise de ser personalista e voltada ao intrapsíquico. Somente a partir da década de 1980 surgiu um novo interesse pela Psicanálise que se mantém até hoje. Importante ressaltar que, nesse período, somente psiquiatras podiam se tornar psicanalistas. Assim, um grupo de Psicanalistas não satisfeitos com o método tradicional, iniciaram experimentações empíricas e modificações na técnica. Novamente, sofreram fortes críticas da Abordagem Sistêmica que questionava o modelo e a compreensão por demais individual. O imenso desafio de atender o par conjugal conjuntamente permaneceu e vários formatos de atendimento foram experimentados: “Terapia Colaborativa” na qual dois analistas atendiam o casal, comunicando-se sobre os processos, com o objetivo de manter o casamento. Tratamentos combinados também foram propostos com sessões conjuntas, com sessões individuais e de grupo com vários propósitos e combinações. A tarefa do terapeuta nesse período era destacar e corrigir as percepções distorcidas de ambos os cônjuges, permitindo uma relação liberta da irracionalidade. Assim, caberia ao analista decidir ou auxiliar na decisão do que era “mais racional”. Somente na década de 1960, a realização de sessões conjuntas prevaleceu, contudo, na Terapia conjugal, a ênfase ainda recaía nas defesas dos parceiros, no uso de associações livres realizadas conjuntamente e na análise dos sonhos, as associações eram realizadas pelos dois. Segundo Vargas (2004) Em 1937, Jacob Levy Moreno, publicou o artigo “Interpersonal Therapy end the Psychopatology of Interpersonal Relation” no qual descreve o primeiro caso de tratamento psicodramático que se tornou Terapia de casal; o vínculo conjugal foi utilizado como instrumento terapêutico. J.L. Moreno, desde 1930, tratava de casais e de famílias, por meio de psicodrama e psicoterapia de grupo.

          Nas décadas de 1980 e 1960, estudos, reflexões e descobertas permitiram novas perspectivas e olhares sobre a questão das patologias psicológicas. Pioneiros como: Bateson, Haley, Weakland, Lidz, Wynne, Lang e Esterson criaram a Terapia Sistêmica de Famílias como um novo campo de estudo e intervenção. A parceria de Wynne, Lidz, Lang e Esterson colocou em relevo o envolvimento da família na esquizofrenia e, provavelmente foi fonte de inspiração para o clássico estudo “Toward a Theory of Esquizofreny” de Bateson, Jackson, Haley e Weakland(1956), onde, pela primeira vez, apresentam a teoria do duplo vínculo e o envolvimento da estrutura e dinâmica familiar na eclosão e manutenção da psicopatologia. Tais estudos enfatizaram a importância de intervenções na família com foco de tratamento:

As abordagens sistêmicas desenvolveram-se em larga medida como uma reação às limitações percebidas nas terapias que atribuíam as disfunções psicológicas e sociais a apenas problemas no individual, seja este visto como de natureza biológica, psicológica, psicodinâmica ou comportamental. (Fraenkel (1997) Apud Neto, 2005, p. 58)

           Schutzemberger (1997, p. 22) relata o trabalho relevante do “grupo de Palo Alto” que enuncia a hipótese do “duplo vínculo”, “dupla opressão” (double bind) : “perturbação grave de comunicação na família; mensagens…são estruturadas de tal forma que, ao afirmar verbalmente alguma coisa, afirmam ao mesmo tempo outra diferente, supomos que pela linguagem do corpo.”   

          Durante a metade da década de 1960, a década de 1970 e início da década de oitenta, a Terapia Sistêmica de Família foi soberana. Todo tratamento conjugal deveria passar pela visão da família. Tratar algo menos que a família era considerado inadequado. Destaca-se, nessa fase, o trabalho relevante de Salvador Minuchin e seu enfoque biopsicossocial da Abordagem Sistêmica à saúde onde expressa que os problemas humanos são emergentes do sistema biopsicossocial. Todos os problemas biomédicos são psicossociais e vice-versa.

          Abordagens experienciais humanísticas, como as contribuições de Virginia Satir, ficaram marginalizadas até meados da década de 1980 em razão do seu afastamento do movimento de Terapia de Família.

          Em 1986, Gurman e Jacobson publicaram “Clínical Handbook of Marital Therapy” que se tornou um clássico, quase um “manual” da Terapia de Casal. Robustas pesquisas empíricas sobre a conjugalidade, revisões de conceitos e teorias e a criação de centros de pesquisa e treinamento de terapeutas de casais, marcaram este período.

          Durante a década de 1970 e início da década de 1980, importantes aspectos do conhecimento foram intensamente contestados, contribuindo para o questionamento da teoria e prática utilizadas na Terapia de casal.

           O movimento feminista polemizou o pensamento científico, apontando seus pressupostos falocêntricos e patriarcais. A produção científica sobre a conjugalidade, até então restrita aos padrões da sociedade ocidental judaico-cristã, ampliou o seu olhar para diferentes culturas e novos questionamentos surgiram. A visão crítica do feminismo quanto as diferenças de gênero socialmente construídas, desafiaram crenças sobre a construção de complementaridades dos papéis entre os parceiros, na relação conjugal. Desse modo, preconceitos que perpassavam leituras teóricas e intervenções clínicas foram explicitados como prescrições sociais e não como erroneamente eram entendidas, como afirmações de um fato científico. O conceito de circularidade nas relações do casal que considerava sempre a coparticipação de ambos em eventos provocadores de constrangimento, intimidação e violência de todos os tipos, sendo as mulheres as principais vítimas, foi fortemente atacado. Neto aponta:

A crítica feminista, como preconizada pelo Akerman Violence Project (Goldner, Penn, Sheinberg e Walker, 1990), coloca que a construção de teorias circulares, como proposta pela perspectiva sistêmica, serve também como manutenção de uma descrição socialmente construída. E ainda que na visão linear de causalidade, no caso, de que homens são os responsáveis únicos pela violência contra as mulheres, é outra visão possível e mais moralmente comprometida com a proteção das vítimas. Assim, eles apontam que nós, enquanto seres sociais, escolhemos quando e quais teorias, pelo menos no campo das ciências humanas, usaremos para abordar e ressaltar um aspecto da realidade e, ainda, qual sentido construiremos. Portanto consideram que a escolha teórica implica em uma responsabilidade moral, por convidar a uma práxis social. (NETO, 2005, p.  63)

          Novos modelos de atendimento do casal foram propostos, dentre eles, destaca-se a Terapia Conjugal Comportamental que enfatiza o desenvolvimento de habilidades. Preconizou o ensino de habilidades comunicacionais para solução de problemas supondo que tais habilidades criariam padrões saudáveis de casamentos satisfatórios.  Estas habilidades seriam ensinadas aos casais em módulos, em uma sequência relativamente estabelecida. Importante ressaltar que a Terapia de Casal Comportamental descuida dos fatores familiares e transgeracionais, fundamentais no entendimento da dinâmicas da maioria dos casais.

          Cabe destacar também, a escola de Terapia de Casal Focada na Emoção que reaproxima a Terapia de Família e Casal à abordagem humanística e experiencial, inicialmente desenvolvida por Virginia Satir. Carl Rogers e Fritz Pearls fazem parte desta escola. Preconizam que os humanos têm uma necessidade inata para contatos emocionais consistentes, seguros e íntimos. Assim, o conflito conjugal retrata ligações afetivas não expressas e não emocionalmente satisfeitas.

          Em 1990, a eficácia dos modelos de Terapia de Casal aplicados aos conflitos conjugais já gozava de reconhecimento e iniciou-se uma nova fase de expansão. Intervenções preventivas, tratamento de transtornos psiquiátricos em modelos interdisciplinares passaram a fazer parte de várias pesquisas.

          No final do século XX as taxas de divórcio se elevaram e os profissionais envolvidos no atendimento de casais, retomaram o caráter preventivo do antigo Aconselhamento Matrimonial. Diferentes teorias abraçaram o trabalho de prevenção como: a abordagem cognitiva, comportamental, sistêmica, experiencial, humanística e psicodinâmica. Múltiplos modelos de intervenções são propostos, desde workshops com casais a abordagens que trabalham o casal separadamente, com número fixo de sessões. A Terapia Breve, a Terapia de casal dialogando com a Terapia Sexual, a Teoria do Apego (Bowlby) articulada com a Terapia de Casal. Importante salientar, que a Teoria do Apego analisa o relacionamento do indivíduo com figuras significativas no decorrer do seu desenvolvimento. Este relacionamento primário, interfere, significativamente, no padrão de apego que o indivíduo estabelece com pessoas significativas no aqui e agora. Bowlby descreve três padrões básicos dos modelos de apego: o modelo de base segura (confiança e cuidado), o apego ansioso (insegurança, ansiedade, ambivalência), o apego evitativo (aversão e desejo).

          A Psicologia Analítica desenvolvida por C.G. Jung, com suas contribuições muito relevantes para a Terapia de Casal, não é, sequer, mencionada.  Neto aponta essa omissão:

Os trabalhos de pioneiros como C.G. Jung que escreveu no contexto de sua obra, já no início do século XX, sobre aspectos ligados ao relacionamento conjugal, e pesquisou aspectos ligados à transmissão transgeracional de complexos inconscientes, podem ser adotados como ponto de partida (Jung, 1977; Clarck, 1993). Porém, esta contribuição não é sequer mencionada pela maioria dos revisores. No entanto, todos apontam para as contribuições ocorridas no início do século XX, nos EUA, como significativas. Tal posição parece dever-se ao fato de que a maior parte das escolas de Terapia de Casal ter surgido, nos EUA, durante o século XX. (Neto, 2005, pg. 49)

          A omissão da Psicologia Junguiana é bem conhecida por todos os profissionais que a abraçaram no seu campo de atuação, a academia é apenas um exemplo. Aguardem o próximo artigo: Breve histórico da Terapia de Casal na clínica junguiana.

Autora: Maria da Glória G. Miranda – Analista didata em formação pelo IJEP.

Analista Didata: Maria Cristina M. Guarnieri

                                                         REFERÊNCIAS

SCHUTZENBERGERANNE, Anne AMeus Antepassados. São Paulo:Paulus,1997.

VARGAS, Nairo STerapia de Casais: Uma Visão Junguiana. São Paulo: Madras, 2004.

NETO, Orestes Diniz. Jogos Conjugais: Proposta de um Modelo Construcionista Social para Terapia de Casais. 241 f. Dissertação (Doutorado em Psicologia), PUCRJ, Rio de Janeiro, 2005.

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