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Crise da meia idade: você ousa sair da cápsula?

“Envelhecer é extraordinário: você se torna a pessoa que sempre deveria ter sido”. Jung concordaria com essa frase de David Bowie? Leia aqui

“Envelhecer é extraordinário: você se torna a pessoa que sempre deveria ter sido”. Jung concordaria com essa frase de David Bowie? Leia aqui

Resumo: Uma pesquisa realizada com mais de 730 mil pessoas ao redor do mundo, de diferentes faixas etárias, apontou que a pior qualidade do sono do ser humano ocorre dos 33 aos 53 anos. Considerando que a expectativa média de vida das pessoas no mundo é de 72 anos, os 36 anos podem ser considerados o início da “meia idade” – evidentemente, isso varia de acordo com o país e a condição socioeconômica do indivíduo.

Trechos do texto d’O Livro Vermelho indicam que Jung viveu sua crise da meia idade de forma profunda e criativa, nas madrugadas insone, o que resultou na grande obra deixada pelo pensador.

As noites mal dormidas talvez possam encontrar sentido, na ampliação do sintoma. “Não há tempo para dormir, se você não encontra tempo durante o dia para permanecer na obra”, Jung relata ter ouvido da própria alma.

Estava tudo certo e combinado. Ele cresceria, seguiria sendo o bom aluno da classe, se formaria em uma boa faculdade, encontraria um bom emprego, um bom casamento. Faria uma boa pós-graduação. Teria filhos e uma boa família. Fariam juntos boas viagens nas férias, nas quais visitariam bons restaurantes, comprariam roupas e alguns souvenirs que ajudariam a recontar a história. O celular seria do último modelo, assim como o carro.

Mas havia algo naquela boa vida que não soava bem.

Aos 45 anos, ele era tomado por uma tristeza inexplicável. Sempre que tentava compartilhar de seu sentimento com amigos, precisava ouvir recitada a lista de tudo o que compunha a boa vida dele, como quem escuta uma lista de pecados. “Você não tem do que reclamar”, precedia, invariavelmente, a bronca fraternal.

Mas a tristeza estava lá, assim como uma inexplicável impossibilidade de encontrar um novo emprego e uma insuperável falta de tesão pela mulher e até pelas amantes. Nem nas prostitutas encontrava seu desejo. As contas não paravam de aumentar, enquanto ele via as reservas financeiras serem consumidas, a fim de manter a vida do jeito que sempre foi. Havia o álcool para distrai-lo todas as noites. E também as maratonas do streaming, suspensas apenas para receber o delivery da sobremesa. Havia o telefone de um médico que poderia receitar algo que o tiraria de vez daquela tristeza inexplicável. Não sabia chamá-la de angústia.

Estava lá também uma insônia recorrente. Todas as noites, ela o acordava com a mesma pergunta, repetida como eco: “e agora?”.

Insônia como símbolo

Como afirma Jung no ensaio Etapas da Vida Humana, em A natureza da psique (OC 8/2): “Só o ser humano adulto é que pode ter dúvidas a seu próprio respeito e discordar de si-mesmo.”

O estudo Sleep duration reveals segmentation of the adult life-course into three phases (livremente traduzido como A duração do sono revela a segmentação do curso da vida adulto em três fases) publicado, em 2022, na revista Nature Communications, envolvendo 730.187 participantes em 63 diferentes países, buscou revelar o padrão do sono ao longo da vida de pessoas de diferentes idades.

A pesquisa foi feita por cientistas da Universidade College London (UCL), da Universidade de East Anglia (UEA) e da Universidade de Lyon. Segundo o trabalho, a pior qualidade de sono dos adultos se dá na faixa de idade que vai dos 33 aos 53 anos. Considerando que a expectativa média de vida das pessoas no mundo é de 72 anos, os 36 anos podem ser considerados o início da “meia idade” – evidentemente, isso varia de acordo com o país e a condição socioeconômica do indivíduo.

Embora saibamos que um sintoma tende a ser multifatorial, a partir da cosmovisão de Carl Gustav Jung (1875 – 1961), a insônia na meia idade pode representar, simbolicamente, o chacoalhar da alma, buscando acordar o indivíduo para a Vida que precisa ser vivida. Para que ele possa despertar e se responder a pergunta: “e agora?”.

Em 5 de janeiro de 1922, Jung, então com 47 anos, teve um diálogo contundente com sua própria alma, retratado pelo especialista Sonu Shamdasani, na Introdução d’O Livro Vermelho.

Incomodado com noites mal dormidas, já em conversa com o sintoma, Jung escuta sua alma dizer: “…você devia ter percebido que eu estava perturbando seu sono há muito tempo…”, complementando a orientação dada por ela antes de que não era tempo de dormir, mas de ficar acordado e preparar coisas importantes no trabalho noturno. Ao ser questionada por Jung qual trabalho seria esse, a alma respondeu sem rodeios: “A obra precisa ser feita agora. É uma obra imensa e difícil. Não há tempo para dormir, se você não encontra tempo durante o dia para permanecer na obra”.

Ao questionar à própria alma qual era a sua vocação, Jung escuta assustado a resposta: “A nova religião e sua proclamação”. (apud SHAMDASANI, 2010, p. 211)

Nesta conversa, fica evidente a função de um sintoma como a insônia na meia idade. Outros trechos do texto d’O Livro Vermelho indicam que este foi um período de bastante sofrimento para o pensador. Jung estava em crise. Na meia idade, Jung também estava em crise.

Foi a partir desta crise vivida profunda e criativamente nas madrugadas que resultou a grande obra deixada pelo pensador. Na introdução de O Livro Vermelho, a psicóloga e pensadora junguiana Marie-Louise von Franz afirma que a produção presente no livro foi feita “com o coração”, enquanto a Obra Completa de Jung foi escrita “com a cabeça”. Von Franz, colaboradora próxima do autor, destaca que O Livro Vermelho é um trabalho muito mais pessoal e expressivo, revelando o processo interno e emocional de Jung, enquanto sua Obra Completa reflete uma abordagem mais intelectual e sistematizada de seus conceitos psicológicos.

Dúvida como caminho

A partir da perspectiva da Psicologia Analítica, pode-se afirmar que a crise da meia idade convida o indivíduo para o que Jung chamou de caminho de individuação, cujo sentido é permitir que o arquétipo do si-mesmo se realize em prol de si e à serviço da Humanidade. Se até o meio da vida, costuma-se existir com foco no ter, a partir deste momento há de haver uma morte simbólica deste indivíduo, a fim de que o ego possa existir em função do ser (do self) e do servir.

Em uma sociedade que valoriza demasiadamente a razão e os prazeres, as ondas de dúvidas intrínsecas à meia idade e que quebram os castelos de areia da vida construída até a metade da experiência humana costumam ser bastante angustiantes.

Cada um de nós espontaneamente evita encarar seus problemas, enquanto possível; não se deve mencioná-los, ou melhor ainda, nega-se sua existência. Queremos que nossa vida seja simples, segura e tranquila, e por isto os problemas são tabu. Queremos certezas e não dúvidas; queremos resultados e não experimentos, sem entretanto, nos darmos conta de que as certezas só podem surgir através da dúvida, e os resultados através do experimento. Assim, a negação artificial dos problemas não gera a convicção; pelo contrário, para obtermos certeza e claridade, precisamos de uma consciência mais ampla e superior.

OC 8/2 §751

Como conquistar uma consciência mais ampla e superior sem encarar de frente as ondas de dúvida contidas na insistente pergunta: “E agora?”? Esta atormentadora questão insone pode conter, mesmo que inconscientemente, a certeza psíquica do fim de um corpo que envelhece e de que é necessário agir antes deste término, para se realizar “a grande obra”. Deixar emergir o arquétipo do si-mesmo, o motivo, a finalidade de cada existência em prol do Todo.

“E agora que já não há mais tanto tempo?” “E agora que já não posso mais fingir continuar gostando do que (ou de quem) deixei de gostar?” “E agora que já não me reconheço como sempre fui?” “E agora que percebo que minhas certezas já não são tão certas assim?”.

Ainda em Etapas da Vida Humana, Jung faz uma analogia simbólica bastante didática sobre o que representa a metade da vida e sua crise, comparado a existência humana ao nascer a ao por do Sol. Se na primeira metade do dia, o Sol emerge e tende ao ápice, sem ao certo saber onde este local de superioridade se localiza, já no primeiro minuto após o cume inicia-se a decadência, a queda, rumo à escuridão. “Precisamente ao meio-dia, o Sol começa a declinar e esse declínio significa uma inversão de todos os valores e ideias cultivados durante a manhã. O Sol, então, torna-se contraditório consigo mesmo.” (OC 8/2 §778)

Esta contradição, porém, é, do ponto de vista psíquico, absolutamente coerente. A Vida vivida em cada um sabe que a existência do corpo tem fim, embora o indivíduo contemporâneo ocidental e subjulgado ao sistema capitalista de consumo desenfreado seja convidado a acreditar no contrário.

Evolução como fim

O mercado “ageless” vende rostos sem marcas, músculos definidos, vende hormônios, implantes capilares e dentes embranquecidos. A alma sabe o que a razão e o consumo tentam negar. Mas ela, a alma, sempre encontra formas de se fazer notar pelos sintomas, pelos sonhos, pelas sincronicidades que tendem a ganhar intensidade na meia idade, já que é tempo de despertar.

O homo sapiens busca a evolução da consciência há mais de 200 mil anos, a despeito do capitalismo, este jovem sistema econômico de pouco mais de 200 anos, que busca o crescimento sem fim e sem significado de indústrias que enriquecem poucos, ao escravizar bilhões no consumo ou no trabalho.

Quanto mais desconectado do princípio arquetípico da evolução espiritual, mais contundentes serão os chamados da alma na metade da vida, quando a psique tende a indicar que nem tudo está bem, por meio da angústia manifestada de diferentes formas.

Se a vida psíquica fosse constituída de evidências naturais – como acontece ainda no estágio primitivo – poderíamos nos contentar com um empirismo decidido. Mas a vida psíquica do homem civilizado é cheia de problemas, e não pode ser concebida senão em termos de problema. Grande parte de nossos processos psíquicos são constituídos de reflexões, dúvidas, experimentos – coisas que a psique instintiva e inconsciente do homem primitivo desconhece quase inteiramente. É ao crescimento da consciência que devemos a existência de problemas; eles são o presente de grego da civilização.

OC 8/2 § 750

Com consciência do sentido espiritual da vida, a meia idade pode se tornar um portal para a realização de tudo aquilo que sempre esteve, porém ainda não foi manifestado. Indivíduos alinhados aos seus talentos e missões, podem enxergar a meia idade e o envelhecimento de forma inspiradora.

A partir dos anos 2000, o multiartista britânico David Bowie (1947 – 2016) passou a tratar de assuntos como envelhecimento e autoconhecimento nas entrevistas que concedia ao redor do mundo. É atribuída a ele a frase “Envelhecer é extraordinário: você se torna a pessoa que sempre deveria ter sido”, embora não se encontre literalmente essas palavras em entrevistas pesquisadas. Porém, de inegável autoria de Bowie, a canção Space Oddity (1969), convoca: “Now it’s time to leave the capsule if you dare” (em livre tradução, “Agora é hora de deixar a capsula, se você ousar”). Parece que ele falava a partir e sobre o self, o si-mesmo. 

E você, ousa sair da cápsula?

Luciana Branco – Analista em Formação IJEP

Waldemar Magaldi – Analista Didata IJEP

Referências:

COUTROT, A., Lazar, A.S., Richards, M. et al. Reported sleep duration reveals segmentation of the adult life-course into three phases. Nat Commun 13, 7697 (2022). https://doi.org/10.1038/s41467-022-34624-8

JUNG, C.G. A Natureza da psique. 10ª edição. Petrópolis: Vozes, 2013.

______ O Livro Vermelho. 1ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.

BOWIE, David. Space Oddity. Londres: Philips Records,1969.

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