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Dor, Cura e Psicologia Analítica – Reflexões sobre o Sentido

Este artigo reflete sobre o aspecto simbólico da cura, frequentemente comparado à fantasia da saúde e do bem-estar, associada à completude e à perfeição. Na busca pela saúde, talvez estejamos negando que podemos nos tornar inteiros; porém, acreditar que podemos ser completos e perfeitos é, na verdade, uma grande ilusão do ego. Essa visão unilateral pode nos levar a buscar apenas o silenciamento da dor, sem compreender seu significado e o que o inconsciente tenta nos comunicar. No caso de dores crônicas que persistem por longos períodos, acredito que essa dor pode ser, na verdade, um grito da alma em busca do 'si-mesmo', e que a aceitação da imperfeição e da incompletude possa ser o verdadeiro sentido

O dicionário Priberam define cura como “restabelecer ou recuperar a saúde; pôr fim a uma doença”. Segundo Guggenbuhl-Craig (2022) curar, em alemão heilen, tem sua origem em uma palavra raiz que aparece em muitas línguas: provém de heilag, total completo. Curiosamente a definição de saúde, segundo a OMS é “o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”.

Olhando sob esse prisma a saúde foi absorvida pela completude, pela totalidade. E, nesse caso, a totalidade como sinônimo de um não comprometimento da função e pleno desempenho mental e físico onde não há lugar para a fantasia da invalidez. E assim, nossa fantasia de saúde se tornou tão total que deixou de ser verdadeiramente saudável (GUGGENBUHL-CRAIG, 2022).

De acordo com Guggenbuhl-Craig (2015, 2022), há uma fantasia contemporânea de saúde, na qual devemos nos tornar sãos e completos, sendo a totalidade entendida no sentido de perfeição: “Seja perfeito…”

O defeito mais insignificante, a menor disfunção deve ser curada, removida ou erradicada. Lutamos interminavelmente, insensatamente para manter a ilusão de totalidade ao tentar alcançar a saúde perfeita.

Vitaminas, suplementos, proteínas, academias, gadgtes de atividade física, personal trainer, nutricionista, vamos a cada dia tendo mais e mais opções para que possamos alcançar a saúde perfeita. Entretanto, com essa visão uni lateralizada, esquecemos de reconhecer o aspecto simbólico dos sintomas e das doenças, cuja manifestação é uma das linguagens mais expressivas do inconsciente.

Em Aion, Jung (1998a, p.63, §122) traça um paralelo psicológico entre Cristo e o si-mesmo ao demonstrar como a imagem tradicional de Cristo engloba características do arquétipo do si-mesmo. Nesse paralelo ele nos recorda que há uma diferença entre perfeição e inteireza. Ele cita que se costuma ter uma imagem de Cristo como relativamente perfeita, ao passo que o arquétipo indica inteireza, mas está longe de ser perfeito.

Sendo o arquétipo um paradoxo e a realização do Si-mesmo implica no reconhecimento de sua supremacia, tal reconhecimento também leva a um conflito, a uma suspensão entre os opostos (o crucifixus) o que levaria a uma totalidade aproximada, a qual faltaria a perfeição.

A busca pela totalidade é legítima e inata ao homem, uma aspiração tão forte que chega ao ponto de “transformar-se em paixão, que tudo submete a seu império”.

Entretanto, nos será necessário reconhecer que o arquétipo se completa na sua inteireza, em correspondência com a sua natureza arcaica e em contraposição a qualquer aspiração consciente, o homem pode buscar a perfeição, mas em benefício de sua inteireza é obrigado a suportar a falta, a imperfeição e a incompletude. Nesse sentido, simbolicamente, a imagem de Cristo corresponderia a esse estado de coisas, como homem perfeito e crucificado (JUNG, 1998a, p.64, §123).

Dessa forma, podemos concluir que o estado de totalidade, de inteireza só poderá ser alcançado quando aceitarmos a imperfeição. E Jung (1998a, p.59, §58) ressalta isso ao destacar que um pré-requisito indispensável para se chegar à totalidade é alcançar uma união superior, uma coniunctio oppositorum (unificação dos opostos), ele cita:

“…um conteúdo só pode ser integrado quando seu duplo aspecto se tornar consciente e o conteúdo tiver sido apreendido no plano intelectual, mas em correspondência com seu valor afetivo. É muito difícil, porém, combinar intelecto e sentimento, pois os dois, per definitionem, repelem-se. Quem se identificar com um ponto de vista intelectual, poderá eventualmente confrontar-se com o sentimento sob a forma da anima, numa situação de hostilidade; inversamente, um animus intelectual brutalizará o ponto de vista do sentimento”.

Na busca da totalidade em um ideal arquetípico de saúde e perfeição, talvez não levemos em consideração o seu oposto, o arquétipo do inválido dentro de nós mesmos.

Segundo Guggenbuhl-Craig (2105) nossa falha em aceitar o inválido dentro de cada um de nós, nossa fantasia de que seres humanos devem ser tão saudáveis quanto aqueles deuses gregos idealizados, é que nos torna incapazes de lidar com o arquétipo do inválido. E quando ele surge em nós, o negamos, queremos eliminá-lo e assim ele se torna tirânico, exigente e exige mais e mais cuidados.

Na prática clínica esse aspecto é fortemente observado em portadores de dores crônicas.

De acordo com o CID XI a dor crônica é “uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a dano tissular real ou potencial, ou semelhante à sensação associada ao dano. A dor crônica é aquela que persiste ou é recorrente por mais de 3 meses. A dor crônica é multifatorial: fatores biológicos, psicológicos e sociais contribuem para a síndrome dolorosa”.

Em nossa sociedade a dor não é tolerada, é vista como negativa, um sinal de fraqueza, que prejudica o desempenho, tira a atenção para aquilo que se quer realizar, o desejo imediato é que ela seja eliminada, calada, não há espaço para dor. Mas, para algumas pessoas ela se arrasta além da fase aguda, se estende por meses, anos e lidar com as limitações que ela impõe pode ser extremamente desafiador para aqueles que por ela atravessam.

O convite nesse texto é para que possamos trazer um outro olhar para a dor, como algo que pertence a natureza humana.

Jung (1998b, p.2, §1) considera corpo e psique como uma das principais antinomias e cita que “a psique depende do corpo e o corpo depende da psique” e completa citando “que um juízo objetivo não poderá decidir-se pela preponderância da tese sobre a antítese”, ou seja, a contradição entre quaisquer princípios está sempre presente, de forma que quando se tem premente um padrão coletivo no qual a dor e o sofrimento não deveriam existir, cabe-nos dar espaço a eles.

Byung-Chul Han em seu livro Sociedade Paliativa (2021) cita que a tolerância à dor atualmente é mínima em uma sociedade que busca uma anestesia permanente. O autor reflete que ao calarmos a dor, calamos a crítica, calamos relações sociais doentias, calamos a reflexão, calamos a verdade, calamos a alma que se expressa através da dor.

Nesse contexto talvez seja válido considerar que esse calar da alma, seja justificado para garantir a alta performance e o desempenho.

Han (2021) fala sobre a experiência da dor ser percebida como um mal sem sentido, que deve ser combatido com analgésicos e sendo compreendida como uma mera aflição corporal, tem seu aspecto simbólico excluído. Ele cita:

a dor se coisificou, hoje, em uma aflição puramente corporal. A ausência de sentido da dor aponta, para o fato de que a nossa vida, reduzida a um processo biológico, é ela mesma esvaziada de sentido…”

Acho interessante fazer um paralelo com a narrativa de Han onde ele cita que “se sofre cada vez mais com cada vez menos”, visto que nos casos de dor crônica em função de um estado de hiper vigilância e sensibilização do sistema nervoso central responsável pela memória de dor, as sensações dolorosas existem mesmo na ausência de doença ou estímulos nociceptivos. Como o autor ainda cita a dor não é nenhuma grandeza objetivamente constatável, mas uma sensação subjetiva. Talvez a ausência de sentido da dor faça com que ela seja percebida como insuportável. E a ausência de sentido dói e a dor é como um grito do corpo por atenção pela falta de sentido.

Jung destaca o papel do inconsciente como responsável por provocar ou prolongar doenças físicas, ao afirmar que um funcionamento inadequado da psique pode causar tremendos prejuízos ao corpo, da mesma forma que, inversamente, um sofrimento corporal consegue afetar a alma, visto que só artificialmente é que se pode separar a psicologia da biologia, uma vez que a alma humana vive unida ao corpo, numa unidade indissolúvel.

Alma e corpo são animados por uma mesma vida, sendo “rara a doença do corpo que não seja de origem psíquica e que não tenha implicações na alma”. (JUNG, 2013a, §232; JUNG, 2013b, §194).

Guggenbuhl-Craig (2022) em seu artigo cita que “Arquetipicamente nosso corpo, através do qual nossa psique se manifesta, é um organismo defeituoso, impreciso, sempre vivenciado como parcialmente funcionando e parcialmente não funcionando, sofremos continuamente de uma permanente imperfeição limitadora. É uma verdade de nossa condição existencial que somos parcialmente defeituosos sem reparo. Segundo o autor esta é uma vivência básica da vida que deveria definir nossa ideia de saúde.

Se, por um lado, devemos compreender a totalidade e a perfeição abarcando a incompletude e a imperfeição, isso poderá nos aproximar da numinosidade dos arquétipos e permitir que possamos compreender e aceitar os sintomas, imperfeições e doenças que nos apresentam.

Por outro lado, ao compreender os sintomas como expressões simbólicas do inconsciente e a dor como uma dessas expressões, talvez a dor crônica e persistente possa ser compreendida como uma desunião consigo mesmo. Como sendo essa uma condição neurótica por excelência, que se torna insuportável para o indivíduo. Entretanto como “Só aquilo que somos realmente tem o poder de curar-nos”, se não há como negligenciar a psique e negarmos a influência do inconsciente em nossas vidas, não há possibilidade de cura ou de melhoria no mundo que não comece pelo próprio indivíduo (JUNG, 2014, § 258 e §373).

Atualmente quando se fala nas abordagens da dor crônica e persistente, fala-se em manejo e não em cura.

Ou seja, fala-se em abordagens para alívio da dor, mas especialmente em melhora da funcionalidade e da qualidade de vida.  A partir disso, talvez possamos buscar em paralelo também qual seria o chamado da dor crônica e persistente, a aceitar esse arquétipo e tirar dele um para quê, um aprendizado e uma nova experiência de viver.

Refletir por que é tão difícil vivenciar uma experiência sensorial e emocional desagradável que pode ou não estar associada a dano? A recusa e a impossibilidade de viver com limitações e deficiências, fala o que sobre mim? Seria possível apesar da presença da dor crônica e persistente, se chegar à realização completa de si-mesmo, ou de seu Self, e a completude alcançada através da incompletude? Qual seria o embate na consciência que se apresenta em cada história para tornar tão difícil a aceitação dessa oposição?

O percurso é laborioso, mas tudo quanto começa, começa pequeno. E a meta do desenvolvimento e maturação da personalidade está ao alcance de todos. Um processo de análise poderá contribuir para que em cada indivíduo desabroche a vida na maior amplitude possível. Pois o sentido da vida só se cumpre no indivíduo vivendo plenamente a sua existência e o chamado da alma. (JUNG, 1998b, p.104, §229).

Patrícia Cordeiro – Analista em formação IJEP

Waldemar Magaldi – Membro Didata IJEP

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