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Endometriose, um feminino em conflito

Endometriose, um feminino em conflito

Endometriose, um feminino em conflito

O feminino está profundamente atrelado ao ciclo corporal que permite a geração da vida. Hoje consigo relacionar melhor as fases que o corpo de uma mulher passa com o conto da mulher esqueleto, que menciona que somos vida-morte-vida. Durante sua fase reprodutiva, as mulheres passam por esse ciclo de forma incessante, com uma cadeia de hormônios estimulando a ovulação, aumentando o endométrio para receber o possível concepto, e quando chega ao pico máximo hormonal, tudo desaba, levando à descamação uterina e à menstruação. E o ciclo se inicia novamente, entrelaçando vida e morte no seu caminho.  

O sangue jorra das mulheres todos os meses, e desde os tempos remotos, era considerado tabu ou período em que a mulher está impura. Muitas mulheres relatam que o menstruar é um grande alívio de toda essa pressão interna demandando a vida. E após a eliminação de todo esse processo preparatório, um novo ciclo recomeça, abrindo a possibilidade para que uma nova vida seja gerada. 

A endometriose é uma doença crônica, inflamatória, com a implantação de tecido endometrial na cavidade abdominal ou em outros locais, de forma mais rara, como cérebro, membros superiores/inferiores. Dados mostram que 6 a 10% das mulheres são portadoras de endometriose no mundo (NACUL & SPRITZER, 2010). É um extravasamento ou explosão de tecido uterino para fora dele, gritando para ser visto, mesmo que seja pela dor. Ou seja, a mulher portadora de endometriose faz o ciclo reprodutivo no útero e fora dele, um sangramento dentro do corpo, símbolo de uma ferida maior, que não pode ser vista. Uma ferida de alma. 

Entre os sintomas da endometriose está o fluxo menstrual intenso, cólicas, dor e inflamação uterina e abdominal. Representa um feminino que sofre com algo que deveria ser mais natural e cíclico. 

Pensando em símbolos do feminino relacionado ao sangue, o dragão é um ser mítico, devorador, cospe fogo, adora acumular riquezas para seu prazer, um animal vaidoso e muito orgulhoso. Nas lendas e contos, o sangue do dragão possui poderes mágicos, capaz de restaurar a vida, ou seja, relaciona-se à fertilidade. Como qualquer arquétipo, o arquétipo do feminino está repleto de dualidades. A questão é: as mulheres com o feminino ferido são capazes de lidar com isso? Ou estão tão unilateralizadas num processo de negação ou conflito com esse feminino? 

O corpo não é o veículo que leva a minha cabeça até o carro, mas matéria-prima através da qual ele pode vir a conhecer e valorizar suas próprias e profundas emoções, intuições e sabedoria instintiva (Qualls-Corbett, 1990). Jung corrobora essa ideia integrativa entre corpo e psique, base para a psicossomática, que estuda exatamente essa relação entre a mente e o corpo, numa visão mais holística do ser humano. 

Jung (2014) nos fala sobre os complexos, especialmente, o complexo materno negativo, que pode ser relacionado à negação da mãe, uma oposição seja pela intelectualidade, racionalidade, opiniões, trabalho, ou negando tudo que aquela mãe representa, incluindo o corpo e o feminino. Não obstante, o que negamos é o que nos mobiliza, pois temos aí afetos que nos dominam e nos possuem. Relacionando aos casos de endometriose, esse útero que se expande além de suas fronteiras, mostra que, ao negar o feminino e não elaborar as questões ou afetos relacionados, ocorre exatamente o movimento oposto. O complexo toma essa mulher de assalto em sua forma de se relacionar com o mundo interno e externo, inclusive com seu corpo. 

É muito comum observarmos mulheres com endometriose com um animus acentuado, mais agressivas, muitas vezes ocupando cargos de liderança ou mais masculinos, que exigem um nível maior de racionalidade. Harding (1985) menciona que na atualidade exige-se da mulher uma postura mais masculina, principalmente no mundo dos negócios, afetando não somente a vida profissional, mas a personalidade, causando mudanças profundas na relação consigo mesma e com os outros. 

A possessão de uma mulher pelo seu animus produz resultados funestos, segundo Emma Jung (2020), pois quando o feminino é forçado pelo animus a ficar nas sombras, surgem facilmente depressões, insatisfação geral, perda da sensação de vida, pois metade de sua personalidade está em dissonância. Os sintomas da endometriose não ficam restritos ao corpo físico. Em geral, as mulheres portadoras dessa doença são acometidas pelo quadro relatado por Emma. 

Esse extravasamento uterino está clamando por atenção e cuidado. Se a mãe biológica não exerceu boa influência ou exemplo de feminino, a tarefa analítica será fortalecer a auto-maternagem, o cuidado com o corpo, e o encontro da feminilidade, auxiliando a reduzir a toxicidade, seja física ou psíquica. 

Muitas mulheres com endometriose, ao contrário, relatam não ter problemas com o materno, e que o complexo que atua negativamente é o paterno. Pais abusivos, alcoólatras, agressivos, ausentes ou mesmo superprotetores podem influenciar a constelação desse complexo paterno desfavorável. Pais que não cumprem com sua missão de auxiliar a filha a ir para o mundo, a ter segurança para enfrentar os desafios da vida, a dar senso de justiça e responsabilidade, também podem afetar a cosmovisão dessas mulheres e sua relação com si mesma e com seu corpo. Afinal, o primeiro modelo masculino para uma mulher é seu pai. 

Para Neumann (2006, pág. 189), o ventre é a sede do inconsciente, dos afetos, que sobem de lá de baixo e obscurecem ou excluem a cabeça. Isso significa que se os elementos criativos do inconsciente, os quais empenham-se rumo à luz, não estabelecerem seu próprio reino luminoso do espírito e da consciência, eles continuarão a ser porções dependentes do inconsciente e nele permanecerão. Ou seja, a falta de consciência do complexo atuante, leva essa mulher a ser tomada pelo inconsciente, e com o tempo, o corpo também pode apresentar sintomas. 

Um dos sintomas mais frequentes e significativo para as mulheres com essa condição é a dor. A endometriose é uma das principais causas de hospitalização de mulheres em países industrializados. No Brasil, tivemos 71.818 internações por endometriose no período de 2009 a 2013. Todavia, não é somente sua epidemiologia que a torna impactante, mas seu caráter progressivo, que pode levar a tratamentos cirúrgicos (perda do útero, tubas, ovários, intestino etc.). Dependendo do local e da gravidade da doença, essa dor pode chegar a ser incapacitante (SÃO BENTO & MOREIRA, 2018). 

A dor sentida por essas mulheres, seja física ou na alma, é muitas vezes tratada com negligência, sendo comum ser visto como frescura. O manejo da dor física muitas vezes leva a utilização de muitas medicações anti-inflamatórias, anestésicas e inibidoras da menstruação. Quem não ouviu falar dos Dispositivos Intrauterinos usados atualmente para inibir a menstruação, muito utilizados nos casos sintomáticos de endometriose? São mulheres que sofrem muitas intervenções médicas na tentativa de inibição ou suspensão do problema. Contudo, poucos são os médicos que percebem a necessidade de um acompanhamento psicoterápico, e que as questões ali postas por essas mulheres vão além do corpo. 

Outro sintoma importante é a possibilidade de infertilidade decorrente da endometriose. Não se esperaria menos de um feminino tão combatente. O útero, em geral, fica inflamado e reativo à possibilidade de implantação de um concepto, negando a vida, com foco na dor e no sangramento. A infertilidade joga a mulher num conto bem conhecido, nesse caso, da patinha feia. A mulher infértil se torna aquela que é desajeitada, desajustada diante das outras, com sentimentos e criatividade congelados. Mas no fim da jornada, a patinha pode se encontrar, aprendendo a se amar, se conectando a sua beleza interior e irradiando luz. 

Estés (2014, pág. 244) se refere ao corpo como um planeta, uma terra por si só. E como qualquer paisagem, ele pode ser retalhado em lotes, esgotado e alijado de seu poder. Os quadris de uma mulher são estabilizadores para o corpo acima e abaixo dele, são portais, lugar para as crianças se esconderem. Mulheres portadoras de endometriose precisam ser lembradas de que o corpo sente, que precisa de um vínculo adequado com o prazer, com o coração e com a alma. Esse corpo tem alegria? Ele dança, ginga, rebola, se movimenta? 

Tudo o que o feminino representa já foi considerado fraqueza pelos homens, influenciando a relação das mulheres com elas mesmas. Por que será que o feminino assusta tanto? Ele nos convida a mergulhar em águas profundas, a nos conectarmos com o mundo além das aparências, a termos sensibilidade diante das emoções, a sermos criativos e capazes de nos adaptar e mudar quando necessário. É esse convite que faço as mulheres de forma geral e para aquelas portadoras de endometriose: deixem fluir e não se aprisionem mais. Sejam calor e frio ao mesmo tempo, alegrias e lágrimas, e, acima de tudo, permitam-se amar a si mesmas e ao mundo. Essa conexão é que nos torna belas e verdadeiras. 

Elaborado por: 

Michella Paula Cechinel Reis – membro analista em formação e Ercília Simone Magaldi, membro analista didata 

Referências: 

ESTÉS, C.P. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. 1 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. 

JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11 ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2014. 

JUNG, E. Animus e anima: uma introdução à psicologia analítica sobre os arquétipos do masculino e feminino inconscientes. 2 ed. São Paulo: Ed. Pensamento e Cultrix, 2020. 

HARDING, M.E. Os mistérios da mulher antiga e contemporânea: uma interpretação psicológica do princípio feminino, tal como é retratado nos mitos, nas histórias e nos sonhos. São Paulo: Ed. Paulinas, 1985. 

NACUL, A.P.; SPRITZER, P.M. Aspectos atuais do diagnóstico e tratamento da endometriose. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbgo/a/8CN65yYx6sNVhjTbNQMrB5K/?lang=pt). Acessado em: 07/11/2022. 

NEUMANN, E. A grande mãe: um estudo fenomenológico da constituição feminina do inconsciente. 5 ed. São Paulo: Cultrix, 2006. 

QUALLS-CORBETT, N. A prostituta sagrada: a face eterna do feminino. São Paulo: Paulus, 1990. 

SÃO BENTO, P.A.S.; MOREIRA, M.C.N. Quando os olhos não veem o que as mulheres sentem: a dor nas narrativas de mulheres com endometriose. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-73312018280309. Acessado em: 07/11/2022. 

Resenha: O presente artigo fala sobre um feminino que se expande para além de suas fronteiras, gerando dor, infertilidade, angústias e sentimento de desconexão. A endometriose acomete de 6 a 10% das mulheres em todo o mundo e merece ser olhada para além do corpo, uma ferida do feminino, uma ferida de alma. 

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