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Ensaio sobre o bom senso

bom senso psicologia

Nada mais danoso do que exigir de alguém algo que ele não possa te dar, crescemos com uma percepção que é inofensivo pedir bom senso ou aclamar aos outros entendimento ou, razoabilidade sendo que somos preenchidos por uma percepção singular e subjetiva sobre tudo aquilo que nos toca. Usamos o termo bom senso para termos coletivos, como se ele preenchesse o senso comum, mas a realidade é que vivemos numa sociedade plural com infinitas assimilações abstratas que fazem dessa dinâmica que envolve as relações éticas, morais e de coletividade sejam imersas numa sopa de orientações particulares as quais, intimamente, achamos que é o chamado bom-senso. E vem a pergunta: quem tem O bom-senso? 

Bom- senso no dicionário: “substantivo masculino, Forma sensata e equilibrada de decidir e julgar; razoabilidade, prudência. Forma de agir que não é afetada pelas paixões, que se pauta na razão e no equilíbrio, de acordo com os padrões e a moral: eu não faria isso por uma questão de bom senso. Etimologia (origem de bom senso). Bom + senso.”1E ao analisar pela perspectiva psicológica já vemos que não é possível o “bom senso” ser um só, pois o senso, que é essa capacidade de julgar, é muito relativa as individualidades, dentro de um mesmo grupo social, familiar e colaborativo temos o tanto de bom senso quanto temos de pessoas envolvidas. Rene Descartes já tinha assinalado em O Discurso do Método

O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada um pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm. Não é verossímil que todos se enganem nesse ponto: antes, isso mostra que a capacidade de bem julgar, e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se chama o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens; e, assim, que a diversidade de nossas opiniões não se deve a uns serem mais racionais que os outros, mas apenas que conduzimos nossos pensamentos por vias diversas e não consideramos as mesmas coisas. DESCARTES, 2010, p. 37.

Pelo que é pontuado pelo filósofo Descartes percebemos a condição que a problemática social nos traz, cada um tem seu senso e é esse que se julga o bom, passamos pelo senso comum que também é uma questão delicada de grupos afins que se baseiam em um trato coletivo que é considerado assim “lei” dentro da elaboração ética do grupo. Mas isso determina um pacto de uma pequena coletividade que pode ou não abarcar mais indivíduos, ao contrário de Hobbes, Locke e Rousseau, não existe “contrato social” que dê conta hoje da pluralidade de livre pensar. O homem é bom e é mau, é dicotômico e contraditório; com isso sua capacidade de julgar e pensar passa por discrepâncias e incongruências, Jung consegue pontuar isso por toda a sua obra.

O bom-senso é sem dúvida alguma altamente louvável, no entanto, em certos casos temos que nos perguntar se estamos tão seguros acerca das determinações do destino individual de cada um, que nos seja permitido opinar e dar o bom conselho em toda e qualquer circunstância. É evidente que temos que agir segundo as nossas profundas convicções, mas será certo que as nossas convicções também são o melhor para o outro? Quantas vezes nem sabemos o que é melhor para nós mesmos e pode acontecer que, passado algum tempo, agradeçamos a Deus do fundo do coração de que a sua mão bondosa nos tenha preservado do “bom-senso” dos nossos antigos planos. Depois, é fácil o crítico dizer: “Aquilo ainda não era bom-senso verdadeiro!” Mas quem é que sabe com inabalável certeza o momento do bom-senso verdadeiro? E então não faz parte da arte de viver o esquecer-se de vez em quando de tudo o que é considerado razoável e conveniente, para abrir espaço ao que não é tão razoável e conveniente assim?

JUNG, 2012d, §462

O bom senso chama a razão, mas quantas vezes não somos tomados pelos sentimentos e, achando que estamos racionalizando uma questão somos, na realidade, tomados por emoções? E desprevenidos, os complexos resolvem sem dar chances para o ego interceder. A ingerência em separar emoção de razão nos coloca no processo de criar desculpas, tentativa de explicar algo que emocionalmente não tem explicação, apenas sentimos, e somos “obrigados” a agir daquela forma. Nisso, ou quebramos um pacto social, ou compartilhamos o senso comum; e para explicar nossas fraquezas, nossos fracassos, ou nossa incapacidade de inserção em algum grupo ou conceito ético/moral criamos desculpas justificando atitudes ou pensamentos com nosso juízo de valor.

Os complexos são poderosos, eles se criam com imagens simbólicas e não temos poder sobre eles, eles nos direcionam, na maioria das vezes, sem ao menos notarmos. Os julgamentos do senso comum vêm de fora, de uma expectativa criada em cima do indivíduo por questões familiares, sociais, religiosas, culturais etc. Nesse contexto temos o ego, que é o centro regulador da consciência, muitas vezes ineficaz com relação aquilo que é demanda coletiva pois as demandas internas solicitam e, muitas vezes, exigem realizações contrárias aquilo que o grupo impõe. E nisso entra o processo criativo do homem que cria métodos para poder subverter e justificar sua saída daquele processo coletivo e juntar outros iguais a ele mesmo. “A evolução, assim, favoreceu aqueles capazes de formar fortes laços sociais” (HARARI, 2019, pag.17)

As mudanças vão se criando, a pergunta é: elas vêm a partir de percepções individuais que ser tornam coletivas ou de percepções coletivas que se tornam individuais? Alguém tem que ter pensado isso antes, diferente de conceitos abstratos, apesar de ter um viés lúdico, as ideias crescem sob uma reflexão e uma forma de pensamento e ao ser partilhada vai ganhando dimensões coletivas, assim, tornam-se questões morais de um determinado grupo. Religiões se criam, sociedades, culturas e países vão se formando por julgamentos de uns poucos que acabam por regular a vida de muitos. E Jung explica isso:

Nessas circunstâncias, compreende-se que o juízo individual seja cada vez mais inseguro de si mesmo e que a responsabilidade seja coletivizada ao máximo: o indivíduo renuncia a julgar, confiando o julgamento a uma corporação. Com isso, o indivíduo se torna, cada vez mais, uma função da sociedade que, por sua vez, reivindica para si a função de único portador real da vida, mesmo que, no fundo, não passe de uma ideia assim como o Estado. Ambos são hipostasiados, ou seja, tornam-se autônomos. E, desse modo, transformam-se numa personalidade quase viva, da qual tudo se pode esperar. Na verdade, o Estado representa uma camuflagem para todos os indivíduos que sabem manipulá-lo. JUNG, 2012a, §504

Desta forma, podemos sinalizar que o bom senso é um chamado a razão, mas ela está fundamentada no espírito do tempo e na sociedade em que ela é invocada. Acreditar que o bom senso é um conceito fixo que não se modifica e se manifesta de forma solida e coesa é irreal, mas justificada quando se pensa que “A sociedade se transforma no princípio ético supremo, atribuindo-se lhe inclusive a capacidade de criação.” (JUNG, 2012a, §554) É plural e via de mão dupla esse processo, o homem cria a sociedade e a sociedade cria o homem.

Somos governados por poucos, mas pertencemos a muitos, somos indivíduos e coletivos ao mesmo tempo. O bom senso deve ser uma percepção de “estado” de espírito, uma escolha razoável ou um bom caminho para se seguir; e não uma postura perante a vida com solidez e rigidez do eu que não dê margem para a criação perante o caos. Somos múltiplos em nós mesmos e só podemos nos sujeitar a criação quando podemos dar licença para aquilo que é considerado insensato ou sem juízo. Quem tem bom senso é quem direciona e escolhe naquele momento, bom senso é fugaz, é um lapso de razão que é compartilhado com alguns, bom senso é o meu que julgo aquilo coerente, bom senso é de quem tem, pois o “tu” tem o senso e não seria “a minha escolha”. Falta bom senso social, falta lógica, falta coletividade pensando no UNO. Criou—se bolhas de pensar com quem pensa com a gente pois o acesso ao mundo pelo computador nos traz tantos e tantas formas de ser, sentir e pensar que cada vez fica mais subjetivo aquilo que julgamos razoável. O razoável não é um ser social, não pertence ao coletivo e não está à disposição como pensamos; é uma particularidade e Jung pontua isso quando diz: “Métodos e regras são bons quando a gente consegue se virar também sem eles. Um verdadeiro saber só o tem quem sabe, e bom senso só o tem o sensato. Quem não se conhece a si mesmo não pode conhecer o outro. E em cada um de nós existe também um outro que nós não conhecemos. (JUNG, 2012b, §325)

Bárbara Pessanha

Membro Analista em formação pelo IJEP. RIO. 

Referências:

  1. https://www.dicio.com.br/bom-senso/  Acesso em: 17 mai. 2021

JUNG, Carl Gustav. Presente e Futuro. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2012a. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 10/1).

JUNG, Carl Gustav. Civilização em Transição. ed. Petrópolis: Vozes, 2012b. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 10/3)

JUNG, Carl Gustav. A vida simbólica. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2012c. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 11/1).

JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, Análise de sonhos e transferência. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2012d. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 16/2).

DESCARTES, René. Discurso do Método. Trad. Paulo Neves e introdução de Denis Lerrer Rosenfield. Porto Alegre: L&PM Editores, 2010.

HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Trad. Janaína Marcoantonio. Porto Alegre: L&PM, 2015.

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Bárbara Pessanha –

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