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Fadiga por compaixão x síndrome de burnout: os custos dos cuidados com o outro

burnout e jung

Há pouco tempo tive o prazer de ler o brilhante artigo do Prof. Dr. Waldemar Magaldi, intitulado Autoanálise da Injúria Cardíaca, publicado no site do IJEP – Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa: (http://ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=332&ref=autoanalise-da-injuria-card%EDaca*#conteudo). Para além da riqueza do texto, com suas fundamentações de referenciais teóricos, fui impactada pela coragem do uso do verbo na primeira pessoa, pelo desnudamento da alma e seus questionamentos acerca do sentido da vida. Ao sair da situação de encantamento que paralisa o olhar, me deparei com uma crítica à atual medicina da sociedade de consumo e com um questionamento, no supracitado artigo: onde estão os curadores feridos?

Lidando há muitos anos com Psico-Oncologia, uma interface entre a Psicologia e a Oncologia, tenho podido observar profissionais das equipes de saúde encarregadas dos tratamentos de pacientes com câncer e seus familiares. E tenho, muitas vezes, acompanhado o adoecimento de muitos destes profissionais. O problema aparece com tanta frequência, que passou a ser tema bastante presente em congressos das sociedades médicas, de enfermagem ou de Psico-Oncologia.

A primeira pergunta que me vem à mente quando penso nos cuidadores é sobre o significado do cuidar. O verbo cuidar significa prevenir-se, empregar atenção, cautela, zelo e desvelo. Para Boff (1999), o cuidado apenas aparece quando a existência de alguém adquire significado para nós. Portanto, mais do que um momento de atenção, é uma atitude de preocupação, ocupação, responsabilização e envolvimento com o ser cuidado ao qual estamos ligados afetivamente. Nesse sentido, passamos a cuidar, participar do destino do outro, de suas buscas, sofrimentos e sucessos. Como uma atitude e característica primeira do ser humano, o cuidado revela a natureza humana e a maneira mais concreta de ser humano. (BOFF, 1999).

Cuidar significa apresentar escuta e atitude terapêuticas, constituindo-se em um conjunto de procedimentos que exercem efeitos terapêuticos sobre o equilíbrio psicossomático do paciente (MACIEIRA, 2007). No trato com o paciente, o cuidar envolve sentimentos, valores, atitudes e técnicas científicas com o intuito de conferir qualidade à assistência. Desta forma, para que o cuidado ocorra genuinamente, a ação de cuidar deve repleta de sensibilidade, delicadeza, solidariedade e profissionalismo. Mas estarão os profissionais de saúde preparados emocionalmente para a exposição à dor, ao sofrimento, à angustia frente a imprevisibilidade da doença, ao inevitável contato com sua impotência frente à morte?

Em nossa prática com a Oncologia e acreditamos, em outras áreas de saúde também, a resposta à pergunta acima é não, aqueles que cuidam não estão sendo devidamente cuidados. Estão, portanto, mais sujeitos ao adoecimento por depressão, Síndrome de Burnout e Fadiga por Compaixão.

Os quadros clínicos de depressão e a Síndrome de Burnout apresentam algumas semelhanças, como tendência ao isolamento social, sentimentos de menos valia e cansaço. Mas possuem, todavia, diferenças acentuadas entre eles. Enquanto a depressão é um conjunto de emoções e cognições que têm consequências sobre essas relações interpessoais, a Síndrome de Burnout está intimamente ligada a atividades profissionais e organizacionais (salários, falta de recursos, segurança, violência oculta no trabalho, etc.). Ou seja, é um construto social que surge como resultado das relações conflituosas intra/interpessoais e organizacionais. Podemos pensar em burnout como um mecanismo de defesa frente à perda de esperança na capacidade de modificar as situações vividas, sensação de impotência ou resposta ao estresse prolongado. Um lado mais cruel ainda desta síndrome, é que quanto mais dedicado, esperançoso, dedicado e iludido, quanto maior a expectativa, mais propenso ao acometimento pode estar o profissional.

Recentemente, observou-se que a evolução da Síndrome de Burnout não tratada, juntamente com a submissão contínua à situações causadoras de Estresse Pós-traumático Secundário (perturbação mental desenvolvida como resposta à exposição a eventos traumáticos), pode conduzir à Fadiga por Compaixão, que representa o custo do cuidado sobre o cuidador.

A Fadiga por Compaixão pode ser definida como uma síndrome causada por uma profunda exaustão física, emocional, social e espiritual, decorrente do estresse e do custo emocional pela exposição continuada à dor, ao trauma e ao sofrimento alheio. É um processo gradual e cumulativo que pode acometer indivíduos que liberam energia psíquica, em forma de compaixão, a outros seres (humanos ou animais) e que traz como consequência uma mudança acentuada na capacidade de auxiliar e de sentir empatia, um crescente cinismo e uma perda de prazer com a profissão.

“Fadiga por Compaixão é um termo amplo, englobando os conceitos de trauma secundário, estresse pós-traumático secundário, traumatização vicária e adicionando os componentes de estresse cumulativo, intrusão, evasão, evitação e hipervigilância.” (FIGLEY, 2002)

A Fadiga por Compaixão atravessa a pessoa e causa um declínio generalizado na vontade, energia e na capacidade de sentir e cuidar dos outros. Eventualmente pode transformar-se em marcante depressão e outras doenças relacionadas ao estresse. Mas aspecto mais insidioso da fadiga por compaixão é que afeta exatamente a essência do que nos trouxe a este trabalho: nossa empatia e compaixão pelos outros.

Principal ameaça à saúde mental dos profissionais da área de saúde, a combinação de Trauma Secundário, S. Burnout e Fadiga por Compaixão é uma das principais razões porque muitos profissionais de ajuda abandonam o campo (FIGLEY, 2002). Portanto, é imprescindível quando se pensa no aspecto preventivo em saúde coletiva, buscar soluções para diminuir o ônus psicológico em ser um profissional de saúde e ainda, a identificação precoce dos profissionais mais propensos ao adoecimento.

Segundo Mathieu (2007) são sinais e sintomas da Fadiga por Compaixão:

No entanto… profissionais de saúde, muitas vezes, têm dificuldade em identificar a exaustão associada com Fadiga por Compaixão e seu próprio adoecimento. Assim, acabam por não desenvolver planos de autocuidados que poderiam reverter a situação. Neste ponto, importa lembrar que compaixão (com-paixão; com-amor; com-emoção) envolve uma participação espiritual e terna para quem sofre. Mas o cuidar de si próprio como cuidador estará sempre relacionado diretamente à qualidade do atendimento prestado àqueles que sofrem, de vez a separatividade entre Eu e o outro é apenas uma ilusão.  Cuidar de si, cuidar do outro e cuidar do todo é cuidar como um ato de amor.

“…Nós somos, no entendimento mais profundo, vítimas ou meios e instrumentos do “amor” cosmogônico. Coloco essa palavra entre aspas para indicar que não quero dizer com isso apenas que é um anseio, uma preferência, uma valorização, um desejo ou algo semelhante, mas um todo, unificado e indiviso superior ao ser isolado. O ser humano como parte não entende o todo. Ele lhe é subalterno. Ele pode dizer sim ou se indignar; mas sempre está preso e trancado dentro dele. Sempre depende disso e é motivado por isso. O amor é sua luz e sua escuridão, cujo final ele não enxerga. “O amor não acaba nunca”, mesmo quando ele fala com a língua de anjo, ou persegue a vida da célula até a base mais profunda. Com acribia científica. O ser humano pode chamar o amor de diversos nomes que lhe estão à disposição, mas vai apenas envolver-se em infinitos autoenganos. Se possuir um pouco de sabedoria, vai mostrar as armas e chama-lo ignotum per ignotius, ou seja, com o nome de Deus. Essa é uma confissão de sua inferioridade, mas ao mesmo tempo também um testemunho de sua liberdade de escolha entre a verdade e o engano.” (JUNG, 2005 p.107-108, apud LIBERATO, 2015)  

Assim, o encontro cuidador/cuidado pode ser um relacionamento pulsante, criativo e transformador. Pode tornar-se um acontecimento sagrado.

“Estar vivo e experimentar o acontecimento da vida, participando dele e interferindo nos efeitos que cada experi6encia provoca no contorno plástico que a humanidade possui, é uma benção divina. É a expressão do sagrado em essência.

No fundo do coração de cada ser humano há um profundo anseio por uma vida que faça sentido.” (LIBERATO e MACIEIRA, 2008)

*Rita de Cassia Macieira – Psicóloga, Professora do IJEP – Instituto Junguiano de Estudo e Pesquisa, Mestre em Saúde Materno Infantil pela Faculdade de Medicina da Universidade de Santo Amaro. Presidente da Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia, gestão 2008/2010.

Referências:

BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis, RJ. Vozes, 1999.

FIGLEY, C. R. (2002). Compassion fatigue: psychotherapists chronic lack of self-care. Journal of Clinical Psychology, 58(11),1433-1441.

GROESBECK, C. J., 1983. A imagem arquetípica do médico ferido. Junguiana ­ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 1:72-96.

LIBERATO, Regina. O luto do profissional de saúde: a visão do psicólogo. in CASELLATO, Gabriela. O resgate da empatia: suporte psicológico ao luto não reconhecido. São Paulo: Summus, 2015. Pg. 155

LIBERATO, R.P. e MACIEIRA, R.DE C. Espiritualidade no Enfrentamento do Câncer, in Temas em Psico-Oncologia Pag. 556-571 Org.Vicente de Carvalho et al. São Paulo: Summus Editorial, 2008.

MACIEIRA, RC. Avaliação da espiritualidade no enfrentamento do câncer de mama em mulheres. 2007. Dissertação (Mestrado em Saúde Materno-Infantil) – Faculdade de Medicina, Universidade de Santo Amaro, São Paulo, São Paulo.

MAGALDI, W. Autoanálise da injúria cardíaca. Acesso em 22/02/2018 (http://ijep.com.br/index.php?sec=artigos&id=332&ref=autoanalise-da-injuria-card%EDaca*#conteudo

MATHEIU, F. (2007). Transforming compassion fatigue into compassion satisfaction: Top 12 self-care tips for helpers. In Matthieu, F.(Chair), Compassion Fatigue Conference. Workshops for the Helping Professions conducted at the conference of the Compassion Fatigue Awareness Project. Kingston, Ontario, Canada.

Rita de Cassia Macieira

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