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Fé, humildade e compreensão – para quem precisa

jung e fé

A psicologia de Carl Gustav Jung nos ensina que há um arquétipo da totalidade, também chamado de si-mesmo ou self. Pelas palavras de Jung “Nosso si-mesmo (self), como síntese de nosso sistema vivo, não só contém o sedimento e a soma de toda a vida vivida, como também é o ponto de partida, o ventre materno grávido de toda vida futura e cujo pressentimento se encontra tanto no sentimento subjetivo, como no aspecto histórico” (O eu e o inconsciente – v. 7/2, § 303). Além disso, a meta máxima do processo de individuação é permitir que essa totalidade se expresse, de forma que o inconsciente se realize, objetivando a unicidade psíquica. Em Psicologia e Alquimia, Jung menciona que apenas Buda e Jesus Cristo, simbolicamente, foram os únicos a atingir tal condição.

Do ponto de vista psicológico, o que se observa no momento contemporâneo é um distanciamento dos indivíduos do movimento de servir ao self, suas totalidades, porque estão identificados com suas personas, e ingenuamente confiantes de que o que se apresenta na consciência, distorcido pelos filtros dos complexos negativos e pessoais, é o suficiente para produzir autoconhecimento, como se este fosse resultante de uma combinação matemática reproduzível em escala para todos os seres humanos, tal qual um objeto manufaturado.

Diante desse distanciamento coletivo do self, falar de individuação é quase discorrer sobre algo mágico. Esta mesma teoria tinha, em outra perspectiva, maior compreensão por parte dos alquimistas medievais do que a que existe em nosso cientificismo atual. O próprio Jung sofreu críticas em vida, e sofre até hoje, sendo classificado como místico, em conotação negativa, ao ousar explicar os fenômenos da alma humana, por um caminho diferente do materialismo científico. Na realidade, ele era mais uma cientista humilde que, por reconhecer os mistérios e abrir mão da ilusão de explicar e definir tudo, foi acusado de místico.

A frase “Invocado ou não, Deus está presente” inscrita originalmente em latim sobre a porta de entrada da sua casa em Küsnacht carece de uma compreensão ampliada, dentro do espectro teórico e simbólico que Jung nos ofertou com sua obra. O Deus a que se refere é, em última instância, uma expressão do self, experimentado externamente pelas religiões exotéricas (com a letra x) e internamente pelas religiões esotéricas. Isso pouco ou nada tem a ver com a existência, ou não, de um Deus metafísico, e nem é esse o objetivo epistemológico da Psicologia Analítica.

Especialmente no que tange ao cristianismo, ao se deparar com a cisão que esta religião fez ao eliminar os aspectos negativos de seus dogmas, Jung percebeu que faltava algo, o elemento compensatório e polar que existe em qualquer princípio vital e psíquico. Ele encontrou na alquimia a resposta para este impasse, uma vez que ela não nega a polaridade que compõe a psique (Psicologia e alquimia, v. 12).

Com base nessa ideia, fiquei instigado a fazer uma reflexão sobre três ensinamentos que aprendi com a Umbanda quando eu era adolescente, que são os preceitos de fé, humildade e compreensão. Não posso afirmar que esta tríade de palavras seja a base da Umbanda, talvez por falta de conhecimento de minha parte, mas penso que é possível analisá-la num espectro amplo, como alicerces e objetivos filosóficos de vida, difundidos em diversas religiões, cada uma à sua maneira.

Considerando a dualidade dos opostos, conceber fé, humildade e compreensão como preceitos que não possuem suas antíteses ou como algo genericamente necessário à todas as pessoas, faremos um reducionismo que desconversa com ideia de self e da ambivalência que o habita. Em outras palavras, ainda que fé, humildade e compreensão apontem para um certo modo ético de se viver a vida, não é possível dizer que do ponto de vista psicológico são obrigatoriedades do desenvolvimento total da personalidade, senão para quem precisa.

Na perspectiva junguiana a meta máxima do desenvolvimento da psique é a individuação, e para que ela ocorra é necessário que os conteúdos do inconsciente sejam integrados à consciência, tal como Jung introduz em seu livro autobiográfico, Memórias, sonhos, reflexões.

As necessidades da consciência não correspondem rigorosamente às necessidades do self, sendo este um componente autônomo e central da psique. O desenvolvimento da psique ocorre na integração dos opostos, ao passo que aquilo que já está bem desenvolvido na consciência, não precisa de mais desenvolvimento. É necessário o desenvolvimento e integração dos componentes que fazem oposição àqueles que já estão desenvolvidos na consciência.

Por exemplo, um indivíduo com fé não precisa de mais fé na dimensão espiritual para seu desenvolvimento, porque, sem que seja proativo, que tenha foco na realidade e na materialidade, com execução, ação, mensuração, apenas a fé de nada adianta. Com isso, fé e a não fé podem coabitar o mesmo ecossistema psíquico, assim como a dimensão espiritual e a material, não como concorrentes, mas como colaboradores, em uma consciência ampliada. Por outro lado, um sujeito que só entende como realidade aquilo que é evidente, materializável, comprovável, talvez precise entrar em contato com sua fé na dimensão metafísica, de forma a encontrar outras possibilidades de estabelecer relações, menos aprisionadoras, menos passionais, menos controladoras, aceitando a imanência do mistério da vida.

Já a humildade é necessária quando a consciência é tomada por arrogância e, eventualmente, inflação do ego, em que ela fica identificada com o self, acreditando ser a própria totalidade (Deus). Antagonicamente, nos indivíduos que naturalmente têm uma atitude humilde para com o mundo, talvez seja preciso trazer à luz da consciência um comportamento de posicionamento perante as situações e convicção de opiniões, que pode flertar com a ideia de arrogância.

Por fim, a filosofia da compreensão, que também pode ser entendida como aceitação ou tolerância, mas que na realidade é a capacidade de entender, acolher e fazer crítica analítica com o outro ou o objeto a ser compreendido, quando já está integrada na consciência possibilita tanto a tolerância quanto a intolerância, de acordo com os princípios éticos, da humildade e da fé. Desta forma, quem tem uma atitude ignorante e expulsiva, que são características da incompreensão, é que precisa desenvolver e integrar, na consciência, a compreensão. De maneira oposta, é preciso que pessoas com excesso de compreensão tolerante, que beira o nível da patologia, desenvolvam e integrem à consciência a capacidade de ser intolerante, quando sua compreensão levar a isso, no sentido de se resguardar, se proteger e não aceitar aquilo que não deve ser aceitável.

É no processo analítico que ocorre a integração desses conteúdos inconscientes e antagônicos, contudo, o que é observado na experiência clínica, é que existem pessoas que tendem a buscar formatos herméticos, em que, a) suas convicções sejam legitimadas pelo terapeuta ou, b) que seus terapeutas atuem apenas como cúmplices de suas histórias. Posto de outra forma, para algumas pessoas – e de certa forma isso parece ser parte da consciência coletiva da atualidade – as ideias reinantes na consciência são hipervalorizadas, como se pudessem por si só lidar ou simplesmente ignorar os dissabores, angústias, inseguranças, excessos, ausências, que parecem ser acontecimentos do mundo externo, sendo que na verdade tudo que é reconhecido na consciência, já era anteriormente um conteúdo inconsciente, do mundo interno. Não há mudança no mundo externo que não passe necessariamente pela mudança da relação com o mundo interno. Tudo que é reconhecido na consciência como negativo, deve ser ampliado à luz do processo de análise individual em sua essência simbólica, individual e coletiva, criando um novo sentido e uma nova forma de se relacionar com este conteúdo, integrando-o à consciência.

Adentrar no processo de autoconhecimento, que a análise junguiana proporciona, é ter a prontidão de aceitar que há um campo simbólico e de possibilidades, em que tudo aquilo que acreditamos ser, conscientemente, não representa a nossa totalidade como seres humanos, isto é, a consciência só é capaz de descrever os conteúdos que são reconhecíveis pelos recursos que ela possui. 

O caminho do meio, preconizado especialmente pelo budismo, erroneamente interpretado como “equilíbrio”, propõe um caminho da integração, num composto harmônico em que conteúdos polares atuem dinamicamente para trazer ampliação de consciência, capacidade reflexiva e autonomia ao indivíduo.  Este é o caminho de servir ao self.

Precisamos de fé, humildade e compreensão, mas não como um mantra genérico, como se isso fosse uma obrigatoriedade horizontal – o mesmo vale para outros dogmas ou preceitos filosóficos. Ter fé também é ter prontidão para aceitar a existência da dúvida. Ter humildade é também saber o que é ter autoestima. Ter compreensão também é reconhecer quais são os limites da nossa autopreservação e autoproteção.

O caminho do meio implica na busca pela alteridade, de forma que no reconhecimento da ausência ou presença da fé, da humildade e da compreensão, tenhamos uma jornada de vida alinhada ao chamado do self e, consequentemente, saindo das exigências puramente egóicas, para integrar os conteúdos do inconsciente à consciência, reconhecendo que quanto mais se serve ao self, mais nos aproximamos do autoconhecimento, de forma que ele permite tanto um aprofundamento em si, como no coletivo, pois também é na totalidade do self que repousa os dramas humanos coletivos e atemporais.

Rafael Rodrigues de Souza é Psicólogo e Analista Junguiano em formação pelo IJEP. Atende em seu consultório particular na Vila Mariana em São Paulo.

Referências:

JUNG, Carl Gustav. Civilização em transição v. 10/3.

JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões.

JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente v. 7/2.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e alquimia v. 12.

NACHTMEERFAHRTEN: Eine Reise in die Psychologie von C. G. Jung (documentário). Direção e produção: Rüdiger Sünner. Alemanha, DVD, 2011.

Rafael Rodrigues de Souza

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