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Lilith, uma análise junguiana: Parte II

lilith e psicologia

Segundo o Mito da Criação Jeovídico temos Lilith como primeira esposa de Adão (esta história está desenvolvida no primeiro Artigo com o nome de “Lilith, seu mito e uma breve análise: Parte I”). Neste texto podemos ver o desenrolar da criação de um ser hermafrodito, o REBIS, e a este ser é dado o nome de Adão. Ao se ver só, Deus lhe divide em dois e Adão, fica possuidor das forças masculinas, o Logos; e Lilith a possuidora das forças femininas, o Eros. Eva entra como terceira figura após uma separação conflituosa com a interseção de Deus, que interpela sua criação parecendo sempre estar “a favor” daquele que é a sua imagem e semelhança (a energia do Logos, a Ordem). Logo me pergunto onde estaria o Deus do Eros, o Caos? 

Dentro da perspectiva psicológica junguiana entendemos que todo individuo, aspecto ou situação se compreende dentro de uma polaridade, mesmo que algo esteja mais inclinado para uma perspectiva. Dentro dessa situação existe a Sombra, que seria algo não realizado ou percebido por esse aspecto dentro desta perspectiva polarizada. Mas a Sombra está lá, e se não é incorporada a partir de uma reflexão ou autoconhecimento ela toma o individuo com um aspecto completamente inconsciente, podemos dizer que de forma não controlada, a qual Jung chamou de Enantiodromia. Vem uma força oposta como modo de trazer um equilíbrio a aquela polaridade. O equilíbrio vem pelo desiquilíbrio.

E ao analisarmos o mito de Lilith e a obra de Jung não podemos deixar de lado a Coniunctio Oppositorum (união dos Opostos), principalmente o trecho V, Adão e Eva (Mysterium Coniunctionis, 14/2, 1990), no qual ele trabalha as relações de oposição dentro da perspectiva da Alquimia; Jung faz a comparação entre Adão e Eva como pares de opostos dando mais ênfase a Adão e associando ele ao elemento água e Eva ao elemento terra. O que fica curioso ao ler os mitos e mitólogos, os estudos apontam que que Lilith tem associação com a água, encontramos isso simbolicamente no princípio feminino associado com a Lua, essa deusa habitava lugares sombrios, sujos e perigosos, e sempre era vista a noite.

“No Talmud, os lugares de refúgio dos demônios são os rios, os lagos, os mares, as casas em completa ruína, as fontes escondidas ou as nascentes ocultas nos bosques; os banheiros, os fornos e até as latrinas, os sórdidos mictórios. Por isso as pessoas – Cita Cohen – quando entram neste último lugar ou vão pegar um balde de água da fonte, dizem “Com licença”, ou mesmo “Com licença, abençoado” …

A água é o refúgio preferido” (Sicuteri, 1987)

Uma associação perturbadora, mas não inconcebível; pois se voltarmos ao início do Mito da Criação, Lilith e Adão eram um só. Lilith trabalha na Sombra de Adão, Adão trabalha na Sombra de Lilith. Eles são feitos do mesmo elemento, diferente de Eva, que não nasce do barro, mas sim de uma matéria, mais sutil e já trabalhada por Deus, que é a Costela de Adão. 

E ao pesquisar Lilith dentro da Obra de Jung é visível que ele associa a uma natureza intrínseca a Adão, Adão e Lilith são um mesmo individuo que se apresenta com naturezas diferentes. Destaco os dois trechos:

“Conforme uma opinião rabínica, Adão até tinha uma cauda. O primeiro estado dele não era de modo algum favorável. Quando ele ainda inanimado jazia na terra, era de cor esverdeada e estava rodeado pelo zumbido de milhares de espíritos impuros querendo todos entrar nele. Deus, porém, os espantou a todos, exceto um, a saber: Lilith, a “soberana dos espíritos”, que conseguiu prender-se ao corpo de Adão de tal forma que engravidou. Ela fugiu somente quando Eva apareceu. A demoníaca Lilith parece ser em certo sentido um dos aspectos de Adão, pois corre a lenda que ela foi criada da mesma terra junto com ele. Algo lança péssima luz sobre a natureza de Adão: do sêmen dele provieram numerosos demônios e fantasmas.” (JUNG, Mysterium Coniunctionis 14/2, p.200, 1990)

“Todos estes símbolos podem ter um sentido positivo, favorável ou negativo e nefasto. Um aspecto ambivalente é a deusa do destino (as Parcas, Greias, Normas). Símbolos nefastos são bruxas, dragão (ou qualquer animal devorador e que se enrosca como um peixe grande ou uma serpente); o túmulo, o sarcófago, a profundidade da água, a morte, o pesadelo e o pavor infantil (tipo Empusa, Lilith etc.)” (JUNG, Os Arquétipos do Inconsciente, p.88, 1990)

Logo podemos fazer uma associação psicológica como Adão sendo a parte consciente, Lilith a parte inconsciente e Eva como sendo uma espécie de “psicopompo” desta relação. Construindo dentro do mito mais uma trindade que temos os opostos e um terceiro participante que condiciona a relação destas duas partes. Por isso encontramos na maioria das obras que tratam o Mito jeovídico  Lilith como uma Anima negativa e Eva a Anima positiva, aquela que é bem vista aos olhos do Deus Logos, mas é a condutora da maldição que ocasiona a expulsão do Paraíso; no qual ele condena Eva e suas descendentes a parir com dor, obediência ao marido e obriga Adão ao trabalho na terra para garantir o que comer, além da perda da imortalidade (podemos fazer um a parte aqui: Lilith não possui esse pecado, ela é imortal).

Emma Jung, em Animus e Anima, fala sobre esse sentimento de privação e rejeição vivido pelo feminino. Isso dentro da psicologia feminina está latente, essa dor e raiva são uma dificuldade primária na mulher, e isso impede a evolução plena do seu Animus pois sempre existe um sentimento de baixa autoestima e diminuição de valor nas relações com o mundo machista e patriarcal que valorizam o que não está tão acessível ao arquétipo feminino. Essa é Eva. Lilith se rebela, se auto exila e pronuncia o nome de Deus pra se colocar no lugar que ela prefere estar mesmo sendo amaldiçoada. 

Lilith poderia ser um indivíduo com a Imago Dei desconectada dos conceitos externos, que respeita apenas seus valores a despeito do coletivo. Ou uma pessoa extremante conectada com o Self que se respeita a despeito do que o Coletivo pensa ou que a Cultura local cultua. Lilith é rebelde, ela se coloca onde ela quer estar, mas pra isso se dissocia completamente daquilo que a prende, no caso sua consciência, Adão e sua voz exterior cultuada como verdade absoluta, Deus Logos. É uma deusa e um mito que são muitos em um só. Não é fácil achar UMA verdade para um mito tão abrangente.

O Caos é fecundo, é aquele que gera e cria. A Ordem (o Logos) é organizador… Temos um Deus que se mostra, e o outro que se recolhe e não fala, apenas cria. Lilith não espera a sentença quando ela se exila com os demônios no Mar Vermelho, ela SABE, ou supõe, que aquele Deus que pede a Sanvi, Sansavi e Samangelof para virem lhe falar, querem que ela volte subjugada a viver no Paraíso como foi ordenado. Quando pensamos psicologicamente isso podemos nos perguntar quantas vezes sucumbimos a Ordem por ter medo do Caos? E, assim, desrespeitamos algo profundo e pessoal que solicita e implora uma nova organização e a transformação do que não nos serve mais.

Pode parecer simples quando pensamos dissociadamente os conceitos de Jung, mas quando encaixamos um conceito no outro percebemos que é um mecanismo vivo e uma teia que se conecta com movimentos vivos e distintos, mas completamente associados. Vê-los dentro dos mitos, contos, imaginações e sonhos parece uma insensatez, mas ao mesmo tempo é obvio e mágico. Lilith é o outro eu dentro do indivíduo que clama a consciência seu lugar, pede a consciência para ser visto, mas a consciência sendo uma ilha no mar não tem a capacidade de absorver tudo o que esse Oceano tem pra oferecer, talvez se oferecermos pequenos espaços dentro da auto consciência podemos transformar uma figura nefasta e medonha, num caminho de luz e conscientização do que Eu sou e ferramenta de compreensão para alcançar algum entendimento dentro dessa perspectiva tão complexa e caótica que é a psiquê.

Bárbara Pessanha

barbara@pessanha.com.br

– Copacabana/RJ

Membro Analista em formação pelo IJEP

Referências Bibliográficas

Bárbara Pessanha

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