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Mãe, eu te amo, mas amo ainda mais a minha jornada

Mãe, eu te amo, mas amo ainda mais a minha jornada Psicologia Junguiana

Este artigo propõe refletir sobre a simbiose família/mãe/filho e o distanciamento necessário entre eles para o filho ganhar sua autonomia na vida. Buscou-se dados quantitativos para ilustrar o tamanho do fenômeno no Brasil bem como uma análise do conto de Percival, dos ciclos Arturianos. 

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que nas últimas duas décadas indivíduos entre 25 e 34 anos estão considerando cada vez menos sair de casa. No final da década de 1990, 20% dos indivíduos dessa faixa etária morava com os pais; já, no final de 2010, a taxa aumentou para 25%. O IBGE ainda aponta que 60,2% desses jovens são homens. 

Sair de casa na maioridade é um processo natural do ciclo familiar, apontam Cerveny e Berthoud (2010), pois existe uma necessidade de diferenciar-se da família e buscar autonomia, contudo, parece que esta faixa etária tem modificado o comportamento coletivo. Vale a ressalva que aqui não estamos pensando nesta autonomia como um individualismo e ascensão de carreira, mas como a autonomia integral do ser humano maduro – bio-psico-socio-espiritual: o processo de individuação. Sobre o individualismo, Jung (2013) aponta que “nunca foi um desenvolvimento natural, mas sim uma usurpação contrária à natureza, uma atitude inadequada e impertinente, que muitas vezes se revela oca e sem consistência, por desabar à primeira dificuldade encontrada”. (JUNG, 2013, §292). 

Cerveny e Berthoud (2010) ainda denominam estes jovens de “Geração Canguru”, devido ao marsúpio, a bolsa epidérmica que cobre a parte dos seios da canguru fêmea, servindo como uma incubadora para os filhotes, na região do ventre, que transporta e protege o canguru filhote. Ferreira, Rezende e Lourenço (2011, p.14) discorrem que fatores como “a comodidade, o conforto, a segurança financeira, um bom padrão de vida, a progressão na carreira profissional são tidos como prioridades” por esses jovens adultos. Mesmo com a preocupação com a carreira, os autores revelam que o consumo desta geração tende à compra de produtos supérfluos – de roupas caras ou em exagero a vídeo games do ano, etc. 

Juntando isso à aspiração do individualismo tão estrutural na sociedade por estes jovens e à crítica a este modelo por Jung, pode-se reconhecer que há uma fragilidade psíquica para o enfrentamento das adversidades sociais. Jung (1995, §456) explica que “o medo do mundo e o dos homens causa um recuo maior […] o que leva ao infantilismo e à volta ‘para dentro da mãe’”. 

Outro fator de grande importância para os filhos permanecerem em casa são os pais que, em sua maioria, não tem discutido, cobrado ou incentivado seus filhos a buscarem autonomia de vida. Como a família é composta por poucos filhos, os pais parecem não sentir tanto o ônus de sustentar mais um indivíduo, abrindo espaço para o adulto que trabalha e tenta subir na carreira com custo zero.

Vale ainda somar este fenômeno ao número de crianças e jovens brasileiros que crescem sem seus pais no Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro do Direito de Família, 5,5 milhões de crianças e jovens não possuem o nome do pai na certidão de nascimento. Além disso, ainda temos uma infinidade de famílias onde a figura paterna inexiste e os filhos são criados pelas avós ou terceirizados para outros cuidadores ou instituições. Desta forma, este artigo faz um recorte de um segmento socioeconômico menos excluído.

Este exemplo não é único e nem localizado. Pelo mundo existe o fenômeno dos Hikikomori, indivíduos que não saem de casa e não estabelecem contato interpessoal com ninguém, vivendo em seus quartos e conectados na internet, explanado em meu livro “Contágio Psíquico: a loucura das massas e suas reverberações na mídia”. E também, indivíduos que mesmo após saírem de casa buscam no parceiro o vínculo inicial do pai ou da mãe, reconfigurando assim, a estrutura familiar inicial, assim como Jung (1995) aponta:

Um indivíduo é infantil porque se libertou insuficientemente ou não se libertou do ambiente da infância, isto é, da adaptação aos pais, razão por que reage perante o mundo como uma criança perante os pais, sempre exigindo amor e recompensa afetiva imediata. Por outro lado, identificado  com os pais devido à forte ligação aos mesmos, o indivíduo infantil comporta-se como o pai e como a mãe. (JUNG, 1995, §431)

            Se lançarmos o olhar à literatura a fim de encontrar uma lenda, um conto que faça uma homologia ao descrito acima, encontraremos Percival. Percival, de acordo com Chrétien de Troyes, é filho de um nobre cavalheiro morto em batalha e da mulher Heartsorrow. Esta, por sua vez, traduzindo seu nome para o português, é “Tristeza no Coração”. Na lenda, conta-se que ela perdeu seu marido e demais filhos para as batalhas cavalheirescas, tendo que criar Percival sozinha. O jovem era o grande e único vínculo que a mulher possuía, pois ambos viviam isolados na floresta. Sobre Heartsorrow, pode-se conferir Nichíle (2021) refletindo sobre o papel cultural da maternidade ao longo da história e na contemporaneidade. A autora aponta que a cultura patriarcal trouxe a partir do séc. XVIII como positivo o comportamento da mãe demasiadamente protetora e altamente atuante em sua maternagem, sendo ela criticada e condenada caso não cumpra este papel exaustivo, esquecendo-se até sua integralidade bio-psico-sócio-espiritual em prol da maternidade, promovendo as mais variadas frustrações nas mulheres.

            Retomando a lenda, Percival encontrava-se em uma grande simbiose com este feminino materno, simbolizado pela floresta e pela sua mãe. Já os jovens e adultos “cangurus” também parecem estar em simbiose com a família de origem. Assim como marsúpio, estes jovens e o próprio Percival permanecem em um estado de passividade e de fantasia. A imagem da Árvore Wak-wak que Jung (1995, p. 251) traz em Símbolos da Transformação ilustra brilhantemente tal simbiose:

Não somente a árvore é um símbolo materno, mas também o dragão, monstro que os cavalheiros usualmente enfrentam nas lendas, contos e mitos: 

o dragão, como imagem materna negativa, exprime a resistência contra o incesto, ou melhor, o medo dele. O dragão e a serpente são os representantes simbólicos do medo das consequências da quebra do tabu, da regressão para o incesto. Por isto é compreensível porque sempre encontramos a árvore com a serpente. A serpente e o dragão têm principalmente o significado de guardiães e defensores do tesouro. Na canção persa antiga de Tishtriya aparece, neste sentido, o cavalo negro Apaosha, que mantém ocupadas as fontes do lago das chuvas. O cavalo branco Tishtriya duas vezes avança em vão contra Apaosha, mas na terceira tentativa, com a ajuda de Ahuramazda, consegue vencê-lo123. Abrem-se então as comportas do céu e uma violenta chuva cai sobre a terra124. (JUNG, 1995, §395).

Pondera-se ainda que a fantasia neste ponto é uma encruzilhada para o indivíduo. Se por um lado ela pode promover um impulso de “ir para a vida” e almejar uma autonomia, isto é, tornar-se um processo psíquico de progressão, por outro, ela também pode manter o indivíduo no estado infantil simbiótico como supracitado, gerando indivíduos não-autônomos, frustrados pois não alcançam suas expectativas pueris, mas aparentemente com uma vida confortável. 

Já na lenda, Percival encontra cinco cavalheiros que atravessavam a floresta e fica encantado e paralisado com suas armaduras, emergindo assim nele um desejo de tornar-se também um cavalheiro. Conta-se que Percival enfrenta sua mãe e vai à procura de Rei Arthur, exclamando para ela: “mãe, eu te amo, mas amo ainda mais a minha jornada”. Sua mãe, contudo, morre de dor pela perda do filho. Esta passagem deve ser lida e apreendida de forma simbólica, tanto para os filhos atuais como para seus pais. 

Quando os jovens adultos saem de casa, eles devem matar, no sentido de transformar, as fantasias e expectativas “perfeitas” e infantis para encontrar assim seus caminhos de vida – diferenciar-se deste mundo ilusório (Maya = Mãe). Perfeitas, afinal, tudo o que está em potência é perfeito: a poesia não colocada no papel é perfeita, diz Fernando Pessoa, ela imperfeiçoa-se ao escrever. Já, mulheres e homens pais deveriam reconhecer que seus papéis enquanto mães e pais foram cumpridos, a fim de transformá-los e ressignificá-los para um outro nível de paternargem e maternagem. Este processo do enfrentamento da fantasia é relatado por Jung (2011) quando aponta que:

consiste em entender sua própria fantasia como um verdadeiro processo psíquico, que aconteceu a ele mesmo. Ainda que de certo modo a pessoa olhe para isso como que de fora e sem participação, no entanto ela própria também é a figura que age e sofre no drama da alma. Este conhecimento significa um progresso tão importante quão imprescindível. Enquanto a pessoa apenas olhar para as imagens da fantasia, é ela como o tolo Parcival […]. Quando então cessar o fluxo das imagens, tudo se parecerá como se nada houvesse acontecido, ainda que se repita mil vezes o processo. Mas desde que a pessoa reconheça sua participação, então ela deverá entrar no processo com sua reação pessoal, como se ela fosse uma figura da fantasia, ou melhor, como se fosse real o drama que se desenrola diante de seus olhos. E na verdade um fato psíquico o acontecimento dessa fantasia. Ele é tão real como a pessoa é um ser psíquico real. Se a pessoa não realizar esta operação, todas as transformações ficam relegadas para as imagens, enquanto ela própria não se transforma. (JUNG, 2011, §407)

O real drama do ego é servir à alma rumo ao processo individuação, isto é, buscar autonomia e integralidade bio-psico-sócio-espiritual: tornar-se quem se é. Ao enfrentar os desafios da vida o indivíduo tem a oportunidade de relativizar e descontruir suas fantasias pueris (muitas vezes heranças dos pais); aprofundar-se em sua própria alma e encontrar no lodo da profundeza o ouro da vida. Este processo também é contado em Percival, quando o rapaz emprenha-se na busca do Santo Graal (Self – Si-mesmo). 

Sobre o Santo Graal, historicamente, ressalva-se que vale considerar a lenda de Percival como uma passagem da cultura pagã para o cristianismo, revelando o processo de repressão do feminino visto nos últimos séculos. Loomis (1963) demonstra que o Graal, tão perseguido por Percival, possui uma homologia com o caldeirão da cultura e da mitologia céltica e gaulesa, que oferecia a quem toma-se dele a Vida e livraria o indivíduo da Morte e da Fome. 

Retomando, o processo de tornar-se quem se é, assim como no setting terapêutico, faz o “eu” começar a perceber e criar enfrentamentos com sua sombra. Para isso, é necessário que ele não esteja na simbiose materna na posição de acolhido, se não é impossível concluir a obra heroica, isto é, de enfrentar o que ele não aceita em si, bem como a própria imagem da mãe (complexo materno). Por isso mesmo, Jung faz a comparação entre o “Filho da Mãe” humano e simbólico:

o “filho de sua mãe”, enquanto apenas ser humano, morre cedo, mas como deus pode realizar o que não é permitido, o sobre-humano, pode cometer o incesto mágico e com isto alcançar a imortalidade. Em muitos mitos o herói não morre, mas em compensação precisa vencer o dragão da morte. (JUNG, 1995, § 394). 

            Este “morrer cedo” pode ser considerado de forma literal, visto estudos anteriores de puer aeternus, mas também, simbólico: indivíduos que nunca buscaram à autonomia permanecem no uno amedrontados, portanto, não vivem. Não à toa Jung (1995, §315) aponta que “o neurótico que não consegue separar-se da mãe tem boas razões: afinal é o medo da morte que o prende a ela”. Por isso a frase “Mãe, eu te amo, mas amo ainda mais a minha jornada” pode parecer dura sob a ótica da contemporaneidade, visto que aí surge o filho ingrato e abandonador, isto é a sombra do “Filho da Mãe”, mas mais do que necessária – preparou Percival para morrer, e, enantiodromicamente, para viver. Se este não abandona, isto é, deixa o bando, ele viverá sempre na sombra materna, acolhido e protegido pelo dragão. 

Leonardo Torres – Membro Analista em Formação no IJEP

REFERÊNCIAS

CERVENY, C. M. O; BERTHOUD, C. M. E. Ciclo vital da família brasileira. In: OSORIO, L.C.; VALLE, M.E. Manual de Terapia Familiar. Porto Alegre: Artmed, 2009, p.25-37.

CERVENY, C.M.O; BERTHOUD, C.M.E et al. Família e ciclo vital: nossa realidade em pesquisa. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.

Der Percevalroman (Li contes del Graal) / von Christian von Troyes ; unter benutzung des van Gottfried Baist nachgelassenen Handschriftlichen Materials hrsg. von Alfons Hilka. – Halle : Max Niemeyer, 1932. – LIV, 808 p. . Frontespizio. Disponível em: https://ijep.com.br/artigos/show/maternidade-escolha-ou-obrigacao

ESCHENBACH, Wolfram von e Richard Wagner. Parsifal. Editora Nova Acrópole. Lisboa. 1997.

Geração Canguru: Algumas Tendências que Orientam o Consumo Jovem e Modificam o Ciclo de Vida Familiar Patrícia Aparecida Ferreira, Daniel Carvalho de Rezende y Cléria Donizete da Silva Lourenço http://www.revistaespacios.com/a11v32n01/11320143.html Espacios. Vol. 32 (1) 2011.

JUNG. C. G. Desenvolvimento da Personalidade. Petrópolis: Vozes, 2013. 

JUNG. C. G. Mysteruim Coniunctionis 14/2. Petrópolis: Vozes, 2011. 

JUNG. C. G. Símbolos da Transformação. Petrópolis: Vozes, 1995. 

NÍCHILE, T. Maternidade: Escolha ou Obrigação? Disponível em: https://ijep.com.br/artigos/show/maternidade-escolha-ou-obrigacao

Paternidade responsável: mais de 5,5 milhões de crianças brasileiras não têm o nome do pai na certidão de nascimento disponível: em: https://ibdfam.org.br/noticias/7024/Paternidade+respons%C3%A1vel:+mais+de+5,5+milh%C3%B5es+de+crian%C3%A7as+brasileiras+n%C3%A3o+t%C3%AAm+o+nome+do+pai+na+certid%C3%A3o+de+nascimento

LOOMIS, R. S. The Grail : from Celtic myth to Christian symbol. Mythos, 1963.

Leonardo Torres

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