Site icon Blog IJEP

Misoginia: resquícios da Caixa de Pandora

Misoginia: resquícios da Caixa de Pandora

Misoginia: resquícios da Caixa de Pandora

Estamos no ano de 2022, e o debate sobre questões de gênero, sexualidade e identidade estão em todas as pautas importantes para a tentativa de integração em um novo modelo de existir social global. Repensar a sociedade a partir de novas (ou não tão novas) demandas é importante para todo aquele que trabalha e se envolve com ser humano. Então, posso incluir a humanidade, sem qualquer medo de errar nessa afirmação. Mas o caminho que estamos tomando é o correto?Estamos fazendo a inclusão e a imersão de pensar a sociedade sobre a bandeira queer de maneira segura e confiável para que sejamos mais agregadores, inclusivos e pertencentes com as minorias? Minha resposta a essa pergunta é um grande não. Pois acredito que enquanto não olharmos a fêmea da espécie, a mulher e a feminilidade em si não teremos chances de ser uma sociedade que olhe seus tons de cinza e se desconstrua, se não trouxermos equidade para o polo que trabalha o Eros.

Dentro da Psicologia Analítica temos a ideia deturpada de inclusão quando vemos que as maiores partes de colaboradores de Carl Gustav Jung eram mulheres, todas brilhantes e foram extremamente importantes para o escalonamento da Psicologia Profunda ser reverenciada e introduzida aos poucos nos meios filosófico, psicológicos, sociológicos e antropológicos. Jung, foi sim, um grande pensador e o trabalho de valorizar as polaridades esteve sempre presente no centro de sua teoria. Feminino e Masculino são tomados quanto arquétipo e temos um modelo para nos orientar e guiar nas pontas que são opostas e complementares. Mas a mulher em si, a mulher como parte de uma construção de uma sociedade patriarcal foi pouco elaborada na psicologia de Jung pois ele teve o cuidado de se ver como homem ao falar sobre “A mulher na Europa” no livro Civilização em Transição Vol.10/3. Apesar de termos falas controversas aos dias atuais, ele fala no início da sua palestra: “Além disso, o que pode um homem dizer sobre a mulher, seu próprio contrário? Será que posso pensar em algo realmente autêntico, sem qualquer interferência da programática sexual, sem ressentimento, sem ilusão, que não seja pura teoria?” (JUNG, 2012, §236)

São homens pensando a humanidade desde sempre, homens pensando homens, homens pensando a mente humana, mas não se pensa o lugar da mulher e a redução de espaços ocupados pelas fêmeas da nossa espécie quando falamos em pluralidade e pertencimento. Apagamento de gênero pode ser mais um motivo para o apagamento da mulher em si. Apagar um lugar que nunca foi ocupado na sua importância e valor adequados. Somos uma sociedade patriarcal que ao lutar pela desconstrução de gênero e pela inclusão temos que primeiro excluir e reduzir a mulher as minorias. Lugar improprio para uma classe que ocupa mais 50% desse planeta.

A construção do patriarcado, segundo a hipótese da historiadora Gerda Lerner, a subordinação da mulher como classe se constrói sob bases obrigatórias de sobrevivência já que as mulheres geravam, os homens tinham que lutar pela subsistência da tribo, ou grupo. E isso desencadeia uma construção social que não se pensa o papel do homem ou da mulher, é quase como se o fator biológico determinasse onde as pessoas se encaixariam e viveriam. E ela completa que a escravidão é fruto da subjugação anterior dos homens sobre as mulheres. (LERNER, 2019) Essa resenha diminuta não consegue elaborar o tamanho do problema, mas posso sustentar que muitos dos nossos problemas com as questões de gênero provém da construção de modelo social de milênios ser feita por uma minoria de homens que detinham os poderes necessários em suas épocas para impor suas moralidades e questões para todo um grupo. Vivemos isso até hoje.

Na publicação “A mulher na Europa” de C.G. Jung do ano de 1927. Ele faz uma longa reflexão sobre o matrimonio e os lugares que a mulher e o homem ocupam na relação, além disso discorre como a instituição do casamento é importante para a sociedade como um todo. “Nada se pode ganhar com a destruição de um ideal e de um valor indiscutível, se não forem substituídos por algo melhor.” (JUNG, 2012) Aqui na reflexão de Jung vemos uma construção de mulher e homem ocupando posições sociais diferente, mas alerta que a mulher tendo animus “pode acontecer – e é a regra geral – que a mente de uma mulher que exerce uma função masculina seja influenciada pela masculinidade inconsciente, sem que ela o perceba, embora todos à sua volta o percebam claramente.” (JUNG, 2012)

Se observarmos que a mulher, já na segunda metade do século XIX, começou a assumir profissões masculinas, a tomar parte ativa na política, a fundar associações e dirigi-las etc., será fácil constatar que está pronta a romper com um padrão de sexualidade essencialmente feminino, de inconsciência e passividade aparentes, e fazer uma concessão à psicologia masculina, para erigir-se em membro visível da sociedade. A partir daí ela não precisa mais dissimular-se atrás da máscara de Sra. Fulana de Tal, para conseguir que o homem satisfaça todos os seus desejos, ou para fazê-lo sentir que as coisas não estão correndo como ela deseja. JUNG, 2012 §242

Lembrando que esse recorte foi de um texto de 1927, onde ainda os problemas eram de ordem de gênero e homossexualidade não era nem doença e sim, crime. A conquista do voto feminino começa na Inglaterra no ano de 1918, apenas 9 anos antes. Estamos 100 anos a frente da construção da Psicanálise e estudos mais focados nas questões psíquicas. Freud lança seu livro “Interpretação dos Sonhos” em 1901 e Jung vai além das questões de desenvolvimento de trauma e aprofunda a ideia de libido após o rompimento com o pai da Psicanálise em 1913. (BAIR, 2006) Era um período muito fecundo de teorias sobre a influência da psique e a ideia de individuo ser mente e corpo, trazendo assim questões subjetivas individuais para o cuidado do homem como um todo. 

Nos dias atuais as demandas sociais são outras, as necessidades de conhecimento e integração da psicologia e psicanálise são outras, mas esbarramos em questões que ainda atravessam as mesmas, ou seja, gênero e sexualidade, que eram pano de fundo 100 anos atras. E uma reflexão essencial para pensarmos as demandas atuais e que podem nos trazer progressos sociais são trazidas em 2019 por Paul Preciado no livro “Eu sou o monstro que vos fala” em que ele sendo um homem trans é convidado para falar na Escola da Causa Freudiana em Paris para tratar o tema de “Mulheres na Psicanálise” e é vaiado e não consegue terminar seu texto e para se fazer compreendido lança o livro. (PRECIADO, 2020)

Faz mais de seis anos que abandonei o estatuto jurídico e político de mulher. Um tempo talvez curto para quem está instalado no conforto ensurdecedor da identidade normativa, mas infinitamente longo quando tudo que foi aprendido na infância deve ser desaprendido, quando novas barreiras administrativas e políticas – invisíveis, mas eficazes – se erguem e a vida cotidiana se torna uma corrida de obstáculos. PRECIADO, 2020, p.16

A importância de trazermos a reflexão é que psique e corpo são indivisíveis. Nascer mulher já traz uma série de fatores indissolúveis a construção social na sociedade patriarcal atualmente (nascer homem ou intersexo também, mas a discussão aqui é sobre a mulher e feminilidade). Papéis são indissociáveis a uma construção milenar e primordial do que é ser homem e mulher, e para haver pertencimento em todas as possibilidades de ser e existir precisamos dar lugar de fala e existência a mulher. E isso inclui a feminilidade em si. Pois depois da misoginia vieram todos os males do mundo. Ser afeminado é ser fraco, ser uma super fêmea que quer parir e ter um milhão de filhos é fora de propósito, a mulher TEM QUE conquistar seu espaço às custas de mansplaning, gagslighting, manterrupting e bropriating e com tudo isso existe a possibilidade de não inclusão, principalmente quando falamos de apagamento de gênero. Talvez esse movimento seja o maior para o silenciamento da mulher e do feminino como um todo. Como ouvir os diversos se não possibilitamos os modelos arquetípicos, e primordiais de referência se manifestarem de maneira plena?

Ainda nos apoiamos nas visões e considerações do patriarcado, infelizmente para mudar precisamos de depoimentos e rupturas sociais como Paul Preciado fez e faz, mas entendo, como mulher cis, que a coragem e a determinação dele para falar no tom que ele falou só foi suportado pela sua condição de homem trans, se fosse uma mulher cis teria muito menos tempo que ele teve. E isso mostra que de 1927 quando Jung foi chamado para falar sobre “As mulheres na Europa”, mudamos muito pouco quando Preciado é chamado pra falar sobre “As mulheres na Psicanálise”. E ele faz esse adendo:

As senhoras e os senhores organizaram um encontro para falar “as mulheres na psicanálise” em 2019 como se estivéssemos ainda em 1917, como se esse tipo particular de animal que se chamam de “mulheres”, de forma condescendente e naturalizada, ainda não tivesse adquirido pleno reconhecimento como sujeito político, como se as mulheres fossem apêndices ou notas de rodapé, criaturas estranhas e exóticas sobre as quais é imperativo refletir de tempos em tempos, em colóquios ou mesas redondas. (PRECIADO, 2020, p.14)

Logo, podemos, devemos e estamos nos construindo para criar uma sociedade nova, mas não existe inclusão enquanto as polaridades não são olhadas com igualdade. E para a mulher ter igualdade temos primeiro que ter equidade. Olhar para a construção patriarcal e dissolver da nossa história o apagamento da mulher é destruição social. Precisamos urgentemente rever e olhar para a sociedade contemporânea e nos perguntar onde estamos como classe. Pensar em classe é importante pois isso nos dá sentido de pertencimento. E a mulher como classe se pensa muito pouco, parece que estamos divididas em subclasses que disputam a atenção do protótipo masculino e pede ainda permissão para existir. E isso me parece um mal não só da mulher, mas das bandeiras de diversidade também. Queremos permissão para existir, sendo que já somos. Mas precisamos pensar isso como grupos e coletividade em busca de um mundo em que mulheres, homens, lgbtqia+ e todas as possibilidades de ser coexistam sem a gente ter que pensar o outro como oponente da nossa existência, mas acredito que a mulher fêmea da espécie seja a primeira direção a se olhar para conquistarmos isso.

Bárbara Pessanha Membro Analista em Formação

E. Simone Magaldi membro didata

Referências

JUNG, Carl Gustav. Civilização em Transição. ed. Petrópolis: Vozes, 2012b. (Obras Completas de C. G. Jung, v. 10/3)

BAIR, Deidre. Jung – uma Biografia Vol. 1. Ed. Globo, 2006.

LERNER, Gerda. A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens. São Paulo, Cultrix, 2019. 

PRECIADO, Paul B. Eu sou o monstro que vos fala – Relatório para uma academia de psicanalistas. Ed. Zahar, 2020.

https://www.cartacapital.com.br/blogs/sororidade-em-pauta/o-apagamento-das-mulheres-na-historia-e-o-direito-a-memoria/ Disponível em: 12.04.2019 Acesso: 22 nov.2022

https://annelisegripp.com.br/gaslighting-mansplaining-manterrupting-bropriating/ Disponível em: 06/12/2018Acesso: 22 nov.2022

Exit mobile version