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Mnemósine e a doença de Alzheimer – uma perspectiva analítica

alzheimer mitologia e psicologia

No poema “Silenciosas Lembranças”, Cecilia Meireles questiona:

De que são feitos os dias?

De pequenos desejos

Vagarosas saudades

Silenciosas lembranças….

Lembrança é um substantivo feminino que, segundo o dicionário Michaelis, significa recordação, aquilo que está guardado na memória. Segundo Rosário (ROSARIO, 2002, pg.1) Memória provém do grego Mnemósine, “palavra grega que se prende ao verbo mimnéskein, que significa lembrar-se de”. A Memória era personificada pela titânide Mnemósine, filha de Gaia e Urano. Brandão (BRANDÃO, 2015, pg. 203) nos conta que ela foi amada por Zeus durante nove noites, e deu à luz as nove musas das artes. O objetivo de Zeus era atender ao clamor dos deuses, que pediam a ele que criasse divindades capazes de cantar condignamente a vitória dos Olímpicos após a derrota dos Titãs, ou seja, que fossem capazes de passar adiante as memórias deste feito.

A memória teve uma importância crucial na evolução da humanidade, pois as tradições, eventos e feitos históricos eram transmitidos oralmente. A memória, além de nos permitir guardar e recordar a experiência passada, nos permite acessar nossa história e identidade pessoal. É através da memória que podemos transmitir nosso aprendizado de vida, ela nos permite apreender, compreender e buscar o novo. E como coloca Rosário (idem, pg.5), no instante seguinte em que o novo é percebido, ele passa a pertencer ao passado “e ao domínio da Memória”. Passa a fazer parte, então, da esfera das “silenciosas lembranças” as quais Cecília Meireles se referia.

Rosário (ROSARIO,2002, pg.3) coloca a recordação, ou seja, o ato de trazer à memória, em um contexto mítico. Entende o recordar como um resgate ao momento originário tornando-o eterno “em contraposição à nossa experiência ordinária do tempo como algo que passa”. Ela entende que “a recordação, como resgate do tempo, confere desta forma imortalidade àquilo que ordinariamente estaria perdido de modo irrecuperável sem esta reatualização”. Por outro lado, nem tudo é lembrado, apenas o que tem significado, sentido e importância. A memória, tanto pessoal quanto coletiva, é seletiva.

Segundo artigo publicado na “Revista da USP” em 2009, no processo de envelhecimento nossa capacidade de evocação da memória parece sofrer uma alteração tanto pela redução da velocidade do fluxo sanguíneo regional cerebral quanto pela redução relativa do número de neurônios (PRADO, CARAMELLI, FERREIRA, CAMMAROTA, IZQUIERDO, 2009, pg. 44). Os autores colocam, porém, que essa dificuldade na evocação da memória não deve ser confundida com as demências, que são patologias que comprometem “de forma significativa a memória e outras funções cognitivas, com intensidade suficiente para produzir perda funcional” (idem, idem, pg.44). Ainda segundo os autores, podemos considerar que as demências:

(…) envolvem perda neuronal e perda de sinapses, seu início é insidioso, e se traduz por uma perda da cognição, principalmente da memória, até níveis incapacitantes. (…) A Doença de Alzheimer é uma das demências mais conhecidas. (ibidem, ibidem, pg.48)

A Associação de Parentes e Amigos de Pessoas com Alzheimer (APAZ), em seu site, coloca que a doença de Alzheimer (DA) é um tipo específico de demência. É um distúrbio que acarreta a perda progressiva das funções intelectuais como por exemplo a memória, além das funções físicas. Ela foi descrita em 1907 pelo médico alemão Dr. Alois Alzheimer. 

Segundo a Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAZ), quando o Dr. Alois Alzheimer descreveu a doença, sua paciente mais importante em seus estudos tinha 51 anos e faleceu com 55 anos. Na época a expectativa de vida era de 45 anos, ou seja, as pessoas não envelheciam em termos neurológicos justamente por ter um tempo de vida mais curto. Ainda segundo a ABRAZ, a descrição da doença ficou esquecida até por volta dos anos 1980, quando a expectativa de vida aumentou e mais casos foram diagnosticados com mais frequência. A população começou a envelhecer e a doença passou a ser mais comum.

Segundo Martinelli (2021) a classificação da Doença de Alzheimer (DA) é estabelecida de acordo com a idade do paciente. A DA de início precoce tem início em pessoas com menos de 65 anos e DA de início tardio depois dos 65 anos. A DA de início precoce, normalmente, tem evolução mais rápida do que a de início tardio. Mas não existe uma regra matemática nessa ordem. Uma hipótese colocada para a evolução mais acelerada em faixas etárias menores se baseia no fato de que pessoas mais velhas teriam uma reserva cognitiva maior enquanto as que tem a sua doença abaixo dos 65 anos tem uma reserva cognitiva menor. Reserva cognitiva são todos os conhecimentos e capacidades acumuladas no decorrer da vida, ou seja, todo o aprendizado, vivência e experiência de vida que estão, de forma metafórica, sob o domínio de Mnemósine. Segundo Boer e Fontes (BOER e FONTES, 2009) uma vida vivida de forma intensa e desafiadora cria uma série de conexões entre os neurônios e essa estimulação neuronal desenvolve, ao longo do tempo, uma boa reserva cognitiva.

De acordo com o Instituto Alzheimer Brasil (IAB) estima-se que atualmente há mais de 50 milhões de pessoas com demência no mundo. Segundo as estimativas publicadas em seu site, este número praticamente irá dobrar a cada 20 anos, chegando a 74,7 milhões em 2030 e a 152 milhões em 2050 segundo relatórios da Associação Internacional de Alzheimer (ADI, 2015; ADI, 2019).

Em minha história familiar o Alzheimer é uma doença que está presente e assombra a todos da família. Começando por meu bisavô, o primeiro da família a ser diagnosticado com a doença, passando pelos meus avós maternos e minha mãe. O desenvolvimento da doença traz um enorme sofrimento para o doente, enquanto restam ainda momentos de lucidez e para os familiares que acompanham toda a evolução da doença.

É uma angústia enorme para o doente, que vai pouco a pouco deixando de reconhecer aos outros e a si mesmo, perdendo sua identidade. Acompanhando a progressão da doença de minha mãe, percebi como ela paulatinamente vem parando de se referir a ela mesma como EU e passando a se referir a si mesma em terceira pessoa, pelo seu nome, como se uma outra pessoa estivesse presente que não ela mesma. Esta estranheza em relação a sua identidade também passou a se apresentar em alguns dias em que está mais lúcida e me pergunta, angustiada, quem é ela e onde ela está.

Se para o doente a situação é angustiante, há agruras também para os familiares e amigos próximos, pois estes vivenciam o luto pela morte de um ente querido que ainda está fisicamente vivo. Trata-se de um processo de luto por alguém que ainda não se foi, mas que psiquicamente não está mais presente. À medida que a DA avança e ocorre a desconexão completa com sua identidade, o doente deixa de falar, torna-se completamente apático, como se o sopro divino que dá a vida fosse se esvaindo lentamente.

O cinema tem mostrado em obras sensíveis o impacto do diagnóstico da doença bem como suas implicações na vida do doente e de seus familiares. A personagem Alice, interpretada por Julianne Moore no filme “Para sempre Alice” (2014) tem uma frase que diz muito sobre o sentimento de perda que acompanha o processo de adoecimento. O filme retrata uma mulher de 50 anos, Alice, professora universitária, que é diagnosticada com Alzheimer precoce. Ela diz em uma das passagens do filme: “estou aprendendo a arte de perder todos os dias. Perdendo meus modos, perdendo meus objetos, perdendo sono e, acima de tudo, perdendo memórias.” 

Um outro filme, “Viver Duas Vezes” (2019) mostra com extrema delicadeza o processo de evolução inexorável da doença em um homem de 70 anos, professor universitário e matemático, que tem na lógica e na racionalidade seus pontos fortes. Antes de perder totalmente a memória, ele sai à procura do amor de sua adolescência, que foi deixado de lado em função da sua busca pelo conhecimento e o amor pela matemática. De forma muito sensível e até engraçada, o filme mostra que, quando a racionalidade sai de cena, o sentimento pode encontrar seu lugar. 

Um belíssimo filme lançado recentemente, “Meu Pai” (2020), nos coloca no ponto de vista do doente, um senhor de aproximadamente 80 anos interpretado por Anthony Hopkins e nos faz sentir toda a angústia e confusão mental causada pela doença. 

Jung, em sua obra “Estudos Alquímicos”, colocou que “os deuses se tornaram doenças” (2003, ¶ 54) porém, no caso do Alzheimer, podemos pensar que o afastamento do domínio de um deus, neste caso Mnemósine, traz a doença através da desconexão da psique com o aspecto que confere a sua individualidade.

Mnemósine, no entanto, foi a mãe das Musas e talvez reconectar-se às artes seja um caminho de reencontro com a memória. Brandão (2015, pg.203) nos diz que:

MUSA, em grego Moàsa (Mûsa), talvez derive de men-dh, “fixar o espírito sobre uma ideia, uma arte”, e, neste caso, estaria o vocábulo relacionado com o verbo manθ£nein (manthánein), aprender. À mesma família etimológica de Musa pertencem música (o que concerne às Musas) e museu (templo das Musas, local onde elas residem ou onde alguém se adestra nas artes)

Brandão continua dizendo que as Musas “são apenas as Cantoras divinas, cujos coros e hinos alegram o coração de Zeus e a todos os Imortais”. (BRANDÃO, 2015, pg. 203).

Diante disso, seria possível pensar que o encontro com as Musas pode ser uma possibilidade de reconectar-se com Mnemósine. Não é por acaso que doentes de Alzheimer costumam se acalmar com música e até é possível que acompanhem a música com emissão de sons e que se lembrem de letras e músicas de sua infância e juventude. No filme “Viva – A vida é uma festa” (2017), a personagem Coco ilustra, de forma metafórica, como esta conexão pode ser restabelecida no encontro com as Musas. No filme, seu bisneto Miguel canta para ela a música composta por seu pai quando ela ainda era uma criança, que não por acaso se chamava “Recuérdame”, trazendo de volta à sua memória lembranças da sua infância e, por um breve momento, o brilho da vida em seus olhos.

Leila Cristina Montanha – analista em formação/IJEP.

Santina Rodrigues – analista didata/IJEP.

Referências

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega, 26ª Vol I. Petrópolis: Vozes, 2015.

JUNG, Carl G. Estudos Alquímicos, Petrópolis: Vozes, 2016.

MARTINELLI, José Eduardo. A Doença de Alzheimer (DA) e a idade do portador, Demências e Alzheimer. publicada em 11/05/2021 em hppts://idosos.com.br/idade-de-início-do-Alzheimer/

MEU Pai, Direção de Florian Zeller, Reino Unido/França, California Filmes, 2020. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/busca?id=RQqAo.

BOER, Selma e FONTES, Maria Alice. O que é reserva cognitiva. 2009. Disponível em: http://www.plenamente.com.br/artigo.php?FhIdArtigo=972009

PRADO, Marco A., CARAMELLI, Paulo, FERREIRA, Sérgio T., CAMMAROTA, Martín, IZQUIERDO, Iván. Envelhecimento e Memória, foco na Doença de Alzheimer, REVISTA USP, São Paulo, n.75, p. 42-49, setembro/novembro 2007.

ROSARIO, Claudia Cerqueira. O Lugar Mítico da Memória, Morpheus Revista Eletrônica em Ciências Humanas – Ano 1, número 1, 2002.

PARA Sempre Alice. Direção de Richard Glatzer e Wash Westmoreland: Estados Unidos e França, 2014. Disponível em:

https://guia.folha.uol.com.br/cinema/2015/03/1601586-ganhador-do-oscar-drama-tem-julianne-moore-como-professora-com-alzheimer.shtml

VIVA, a Vida é uma Festa. Direção de Lee Unkrich. Estados Unidos: Disney/Pixar, 2017.

VIVER Duas Vezes. Direção: Maria Ripoll.  Espanha: Netflix, 2019.

Para mais informações sobre a Doença de Alzheimer:

http://www.apaz.org.br/alzheimer/

https://www.abraz-associacao-brasileira-alzheimer/
https://www.institutoalzheimerbrasil.org.br/epidemiologia/

Leila Cristina Montanha

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