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Modernos Xamãs: o analista e os desafios do processo de cura

Xamã moderno

Este artigo teve como ponto de partida minha reflexão sobre o processo de formação como analista junguiana e as práticas iniciáticas existentes tanto no Xamanismo como nas religiões Afro-Brasileiras, em especial na Umbanda, onde me formei como sacerdote (Babá), realizando as iniciações que a formação exigia à época.  O objetivo desse artigo é propor um paralelo entre os dois caminhos de iniciação, a psicológica e a religiosa, e refletir sobre a forma como o inconsciente nos convida a viver essa jornada, de tornar-se analista, convocando-nos a participar junto de um outro, nosso cliente, de um processo de cura que tem mão dupla, pois nunca acontece numa direção exclusiva.

Os xamãs foram descritos por Mircea Eliade (2002, pg.19) como “os grandes especialistas da alma humana”. Von Franz (1997, pg.85) os aponta, inclusive, como precursores da moderna psicoterapia. O “chamado” para a jornada de cura começa com uma série de eventos estranhos, normalmente sonhos e doenças, as mais diversas. E os sintomas são revertidos à medida em que se iniciam suas atividades como xamã.  Estes relatos se parecem muito com o “chamado” para a mediunidade, vivido também por pessoas que se iniciam nas práticas religiosas mediúnicas. É bastante comum e usual que as pessoas procurem os Centros Espíritas ou Terreiros de Umbanda devido a doenças repentinas e inexplicáveis, apresentando dificuldades tanto na dimensão física quanto psicológica, financeira ou social. Normalmente, são orientados nos Centros ou Terreiros a dar início a sua preparação para a prática mediúnica e, na medida que o fazem, os sintomas também desaparecem. Os médiuns, como os xamãs, buscam auxiliar na cura de quem os procuram através do mundo espiritual, um “locus” onde os espíritos de pessoas mortas “vivem”, e, através de suas emanações, influenciam os vivos, seja auxiliando na cura ou atrapalhando suas vidas, fazendo com que fiquem doentes, por exemplo.

Von Franz (Idem, pg.85) descreve a doença que antecede ao chamado dos xamãs como “um rapto por um pássaro que leva o indivíduo para o chamado mundo inferior”. Lá, ele fica aprisionado, sendo desmembrado pelos espíritos ou sofrendo torturas. Como Osíris, o futuro Xamã renasce, volta ao mundo dos seres humanos, desperto, e passa a ter o poder de cura. A preparação de um médium, especialmente nas religiões afro-brasileiras, como a Umbanda, também passa por diversos rituais e iniciações, sendo que a última é a entrada no reino de Exu, Orixá mais próximo da esfera terrestre e, portanto, do ser humano, associado muitas vezes ao diabo. Como Hermes, Exu personifica o psicopompo, aquele que faz a intermediação entre vários reinos: o mundo humano, o mundo dos Orixás e o das entidades superiores e o charco, conhecido também como o inferno.

Mas o que xamãs e médiuns tem a ver com a psicoterapia? A relação se estabelece pelo fato de ambos lidarem com o desconhecido, com o mundo dos “espíritos”, dimensões que se aproximam, analogamente, ao inconsciente – termo do campo da psicoterapia, utilizando o acesso a esse espaço como instrumento de cura. A analogia entre o mundo dos “espíritos” e o inconsciente foi proposta por Jung em sua conferência “Os fundamentos psicológicos da crença nos espíritos” (JUNG, 2013, pg.254).

Von Franz (1997, pg. 89) coloca um “surpreendente paralelismo” nesta forma de contato com o “mundo dos espíritos”, o inconsciente, na vida de Jung, mas é claro que ela se atinha a questão dos xamãs ao fazer tal discussão. A autora nos conta que durante o período da meia-idade, Jung “teve sonhos cujo tema recorrente era o renascimento dos mortos do passado histórico ou de uma pomba, que se transformava em uma garotinha, vindo a ele como mensageira do mundo dos mortos”, algo que se assemelhava muito ao transe dos xamãs. Ampliando para a experiência mediúnica, especialmente na Umbanda, que me é conhecida, este paralelo se enquadra igualmente. Zélio de Moraes, médium que deu início à Umbanda no Brasil, foi acometido por uma doença que o deixou de cama, incapaz de andar, até dar início a sua jornada na criação desta nova religião (TRINDADE, 2014).

Von Franz (idem, pg. 17) conta que certa vez apontou para Jung que sua atitude para com o inconsciente parecia idêntica a dos indivíduos que praticavam religiões mais arcaicas, citando o xamanismo ou a religião dos índios Naskapi. Estes seguiam seus próprios sonhos, sem sacerdotes ou rituais, acreditando que os sonhos vinham de uma força superior, de um “grande homem imortal do coração”. Jung, ela diz, respondeu com um sorriso: “Bem, não há do que se envergonhar. É uma honra!”.

Não posso afirmar que todos os analistas tenham passado pela experiência do “chamado”, mas certamente algo despertou dentro de cada um de nós para iniciarmos o caminho da psicologia profunda. O processo de formação é uma forma de iniciação, o mergulho na própria sombra, que permite ampliar o potencial de cura. 

Há uma diferença, porém, nos processos de cura utilizados pelo Xamã e pelos médiuns: em ambos os casos a jornada ao inconsciente para a busca da cura é feita de forma indireta. O cliente, adoecido, é neste caso um elemento passivo do processo. Digo isso sem menosprezar, de forma alguma, a parte que lhe é devida, a fé necessária, a abertura e a confiança para que o processo ocorra. Porém, não é ele quem entra diretamente em contato com o “mundo dos espíritos”, o inconsciente. Na análise, a cura vem pelo mergulho também do cliente em seu mundo anímico, onde irá se encontrar com seu curador interno, e através dele reestabelecer a saúde, seja em qualquer um desses níveis: físico, financeiro, psicológico, social… É uma jornada conjunta vivida por analista e cliente, onde ambos estão em contato com o “mundo dos espíritos”, explorando o inconsciente, acionando o “poder do Exu”, do psicopompo, para transitar pelos diversos níveis da psique, a fim de que a cura possa ocorrer.

Leila Cristina Montanha

Economista, Sacerdote de Umbanda e Analista Junguiana em Formação pelo IJEP.

Referências:

ELÍADE, Mircea O Xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo:

Martins Fontes, 2002

JAFFÉ, Aniela. Ensaios sobre a Psicologia de C.G.Jung. 10ª ed. São Paulo: Cultrix, 1995

JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013

TRINDADE, Diamantino Fernandes. História da Umbanda no Brasil. Limeira: Ed. do Conhecimento, 2014

Leila Cristina Montanha 

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