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Mommy Burnout: o adoecimento materno na perspectiva Junguiana

Mommy Burnout: o adoecimento materno na perspectiva Junguiana

Mommy Burnout: o adoecimento materno na perspectiva Junguiana

O espírito de uma época reflete muito sobre como uma sociedade experimenta a vida, integrando ou sublimando seus complexos e sombras coletivas. Jung aponta em sua obra que o espírito da época é um caso especial, que representa o princípio e o motivo de certas concepções, julgamentos e ações de natureza coletiva (cf. JUNG, 2021, p. 209).

Diante dessa perspectiva, faz sentido pensar que o espírito da contemporaneidade reflete uma maternagem adoecida, desconectada de seus instintos e carregada de culpa e sofrimento. Vivemos hoje numa sociedade patriarcal que, de forma direta e indireta, leva muitas mães a viverem em sofrimento, com baixa autoestima, esgotamento físico e mental.

Mommy Burnout

E, mais recentemente, com a síndrome Mommy Burnout – sensação de exaustão, tensão emocional e estresse crônico gerados pela rotina materna (burnout é uma doença listada no Grupo V da CID-10 – Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde).

De acordo com um estudo desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Ohio, nos Estados Unidos, 68% das mães que trabalham enfrentam sintomas de burnout. E, segundo a pesquisa, o burnout parental é caracterizado pela exaustão física, emocional e mental devido às demandas contínuas de cuidar dos filhos. Em muitos casos, os sintomas aparecem como sentimento de raiva ou ressentimento por ter que cuidar das crianças.

Diante dos relatos apresentados por muitas mulheres, percebemos algo em comum a muitas delas: o sentimento de tristeza por não conseguirem vivenciar a felicidade de serem mães no seu dia a dia.

Ampliando esse sofrimento para algo além da emoção, proponho pensar essa não felicidade como uma ausência de saber interior que leva as mães a desconhecerem a sua própria cria, desconhecerem a si mesma enquanto mães. 

A configuração histórica da sociedade patriarcal foi o primeiro passo na inibição dos aspectos femininos primordiais, tratando como inferior elementos tão fundamentais para o desenvolvimento emocional e psíquico da humanidade, tais como o ato de intuir, cuidar, nutrir e acolher. Podemos dizer que essas características não ganharam espaço no mercado de trabalho e, consciente ou inconscientemente, a adaptação das mulheres ao mundo exterior exigiu delas uma sublimação histórica do feminino arcaico, que constitui o que Jung nos apresenta como arquétipo da Grande Mãe. E, como todo arquétipo, é um aspecto psíquico, eficiente auxiliar das adaptações instintivas e com características duais/antinômicas. 

[…] as circunstâncias forçaram a mulher a adquirir alguns traços masculinos, para não permanecer atrelada a uma feminilidade arcaica e puramente instintiva, estranha e perdida no mundo dos homens, como uma espécie de ‘boneca’ imaterial.

(JUNG, 2017, p. 136-7)

Tal constituição histórica-comportamental levou as mulheres que ousaram entrar no mercado de trabalho, mantendo vivo dentro de si o desejo da maternidade, a viverem o conflito da maternidade idealizada versus maternidade possível. Porém, em muitos casos, a desconexão com seus instintos femininos primários as conduz a uma maternagem perdida, com a energia psíquica dirigida para o rendimento no trabalho, ao invés de estarem dirigidas para o afeto, os instintos, a maternidade.

Nesse sentido, a desconexão com os instintos femininos distanciou e modificou a relação da mulher com o arquétipo primordial da Grande Mãe, interferindo na forma como percebemos o mundo e vivemos a vida. Levamos para dentro de casa os aspectos psicológicos do masculino em detrimento do feminino, quando, na verdade, deveríamos experimentar a vida reconhecendo em si ambos os aspectos.

Levamos o mundo patriarcal do trabalho para dentro de nossas casas, e assim, “adequamos” a maternidade, assumindo metas de performance, buscando cumprir um papel de mãe perfeita e ideal.

Trocamos o maternar pelo organizar, abrindo mão do intuitivo e instintivo pelo racionalismo intelectual.

Uma unilateralização que trouxe um desequilíbrio psíquico-social, pois quando nos identificamos em demasia com um lado corremos o risco de sermos “tomados” pelo outro. Podemos aqui referenciar a sábia expressão popular que diz: “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”. Porém, de geração em geração fomos aprendendo que o feminino é algo desqualificável, enquanto o masculino é algo que deve ser super valorizado. Ou seja, uma sociedade que só sabe viver na polaridade: ou no mar ou na terra.

A psicologia profunda nos mostra que todo comportamento humano tem um arquétipo correspondente. Portanto, se de um lado temos os instintos enquanto potência e de natureza biológica. Do outro, temos os arquétipos que são potências a serem vividas por toda a humanidade, ao qual damos “forma” de acordo com as experiências individuais de cada um. Neste caso, podemos entender que a maternidade é um instinto e que, portanto, pode ser psiquificado, e a maternagem é um arquétipo presente no inconsciente coletivo, universal, transgeracional e acessível a todos os seres humanos. 

Desta maneira, fomos nos distanciando dos saberes primordiais, trazendo um discurso “evolutivo” e mais “moderno”. No entanto, o adoecimento materno mostra o quanto ficamos unilateralizadas, desconectadas dos nossos instintos.

Nos adaptamos à vida contemporânea e modificamos certos padrões de comportamento, inclusive no que se refere aos aspectos ligados à maternagem.

De acordo com a autora Laura Gutman, nós mulheres, nos tornamos prisioneiras com medo e compensações desesperadas:

Podemos trabalhar e ganhar dinheiro. Podemos chegar a postos de poder político e econômico. Mas se nós, mulheres, continuarmos caminhando pelo nicho cego da repressão […] se não reconhecermos a repressão e a dureza que paralisa nosso corpo, se não estivermos dispostas a ouvir nossas batidas uterinas, se não oferecemos o peito e os braços para refúgio da cria, então estamos nos tornando artífices indispensáveis da violência do mundo. E o resultado é que sem amor próprio não há liberdade […]. Ou seja, seremos todos prisioneiros de nossa ira de nosso terror.

(GUTMAN, 2019, p. 130)

Para entrar em contato com a dor dessas mães aturdidas e perdidas é fundamental, antes de tudo, nos despirmos dos conceitos pré-concebidos e enraizados na nossa cultura patriarcal contemporânea. Se faz urgente e necessário acolher essas mães na clínica empaticamente para que elas possam reconhecer seus aspectos sombrios, individuais e coletivos, que causam tanto sofrimento e as impedem de exercer uma maternagem menos carregada de culpa.

Nesse sentido, é preciso apoiar, psíquica e emocionalmente, essas mulheres na reconexão com os saberes da maternagem para que elas possam se sentir seguras e potentes, assumindo integralmente o papel de mãe que lhes é possível. Compreender que, assim como os arquétipos, nós humanos também somos duais e temos em nosso interior aspectos de luz e sombra, a mãe boa e a mãe má, a autoconfiança e a insegurança, a coragem e o medo.

Reconhecer essas dicotomias nos permite assumir nossa face humana perante a vida.

A partir dessa reconexão, seguimos no caminho contrário ao vivido pela contemporaneidade perdida. Um padrão que conduz as mulheres a acreditarem que nada sabem sobre a maternagem e a buscarem fora de si ensinamentos, dogmas e modus operandi. Não podemos esquecer que, pelo fato de vivermos sob as leis do patriarcado, nos adaptando às regras e aos códigos de conduta “esperados” e “desejados” ao longo dos anos. Acreditamos que “temos objetividade para pensar, mas na realidade estamos todos dentro do mesmo nicho, que é o nicho do patriarcado” (GUTMAN, 2019, p. 130). 

O que buscamos nessa condução clínica é “convidar” as mães a terem uma ampliação de consciência sobre si-mesmas e seus saberes internos e transgeracionais. Uma vez que a desconexão com os instintos primordiais é a fonte primária da nova síndrome contemporânea Mommy Burnout, que tanto cresce no Brasil e no mundo.

Essa integração do consciente com o inconsciente busca provocar um equilíbrio, posterior à tensão entre os polos, trazendo uma saída criativa.

Nesse contexto, busca-se um novo lugar para essa maternagem, onde a mulher pode e deve buscar ser uma mãe única, singular e possível. E não mais aprisionada, vulnerável e identificada com a mãe idealizada

Essa ampliação de consciência é uma retomada do protagonismo feminino diante da maternidade. Uma experiência que só pode ser vivida plenamente se conectada aos instintos femininos. Precisamos compreender que a tomada de consciência dos nossos mecanismos, requer observação e compreensão e demanda tempo. Um tempo que não é cronológico, mas um tempo individual e silencioso

Clarisse Grand Court – Analista em Formação pelo IJEP

Maria Cristina Mariante Guarnieri – Analista didata IJEP

Referências:

ANDRADE, Jéssica. Mommy Burnout: conheça a síndrome do esgotamento mental materno. Correio Brasiliense. 2022. https://www.correiobraziliense.com.br/ciencia-e-saude/2022/04/4999262-mommy-burnout-conheca-a-sindrome-do-esgotamento-mental-materno.html. Acesso em: 18 agosto de 2022.

ARMENDRO, Nathália. Burnout Materno. Crescer, São Paulo, 2020. https://revistacrescer.globo.com/Saude/noticia/2020/09/burnout-materno-choro-por-nao-conseguir-vivenciar-felicidade-de-ser-mae-no-meu-dia-dia-diz-mae.html. Acesso em: 22 maio de 2022. 

GUTMAN, Laura O poder do discurso materno. 5.ed. São Paulo: Ágora, 2019.

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11.ed. Petrópolis: Vozes, 2021.

______ Civilização em transição. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 2017.

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