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Narciso: os ecos do mito em tempos de redes sociais

O mito de Narciso e Eco expressa um traço atemporal da psique humana que, no mundo contemporâneo, parece potencializado pelas relações que temos estabelecido com e por meio das redes sociais. Essa relação, entre mito e “tecnologia”, não é novidade e a ideia deste artigo não é inventar a roda, mas mergulhar nesta narrativa mitológica e em sua simbologia, trazendo personagens muitas vezes esquecidos e mais elementos que, espero, nos ajudarão a transcender o senso comum e a ampliar o significado dessa milenar história. Tudo isso sob o prisma da psicologia analítica.

É que Narciso acha feio o que não é espelho…” O verso de Caetano Veloso, na célebre canção “Sampa”, ao sintetizar o mito numa metáfora, é capaz de preservar, em grande medida, a sua amplitude. O que significa dizer que deixa, dessa forma, bastante espaço para uma análise psicologicamente mais profunda dessa milenar história.

Mais que uma boa, embora incompleta síntese do mito, o verso reflete um traço atemporal do ser humano que, no mundo contemporâneo, parece potencializado pelas relações que temos estabelecido com e por meio das redes sociais. Essa relação não é novidade e a ideia deste artigo não é inventar a roda, mas mergulhar nesta narrativa mitológica e em sua simbologia, trazendo personagens muitas vezes esquecidos e outros elementos que, espero, nos ajudarão a transcender o senso comum.

Por isso, antes de me debruçar na relação entre Narciso e as redes sociais, vale recontar essa história, que narra a trajetória do mais belo dos mortais da Grécia Antiga, cuja beleza provocava paixões desmedidas e a inveja não apenas dos outros mortais, mas também dos deuses do Olimpo. Filho de uma ninfa náiade, dos rios e riachos, chamada Liríope e do violento rio Céfiso, Narciso foi concebido quando sua mãe, ao atravessar o caudaloso curso d’água, foi violentada por sua furiosa torrente.

Fluido, impermanente, violento e autocentrado, Céfiso, em grande medida, representa o pai indiferente e ausente. Liríope, como as ninfas, em geral, traz uma boa dose de inconsciência e ingenuidade. Vive e protege os rios e os riachos, mas, apesar do desejo, comum a toda mãe, de proteger seu filho, logo saberá que, no fim das contas, cabe a Narciso, e mais ninguém, proteger-se a si mesmo.

Beleza como maldição

Na história de Narciso, é especialmente importante observar que, entre os gregos antigos, a beleza era vista como uma maldição: um ingrediente a mais para a natural tendência ao autoengano e à vaidade entre os humanos, o que poderia acarretar, aos olhos de Liríope, na morte precoce do filho (Cf. BRANDÃO, p. 175). Por isso, ela procurou o velho cego e sábio Tirésias, dono do dom da adivinhação (no grego, manteia), e perguntou:

— Meu filho viverá bastante?

Ao que o velho respondeu:

— Se ele não se vir.

O jovem Narciso se “veria” de uma maneira que Tirésias, por ter sido cego pela deusa Hera, jamais poderia ver-se. O castigo divino que se abateu sobre Tirésias e lhe trouxe uma deficiência física contribuiu, porém, para transformá-lo em alguém capaz de enxergar, de sua mais profunda escuridão, o que realmente importava. Tirésias antevia com todos os demais sentidos, com a experiência e, sobretudo, com a imaginação. Tinha os olhos da sabedoria.

Eco

Já Narciso, no esplendor de sua beleza e juventude, com os olhos intactos para enxergar o que quisesse, mas imaturo para poder valorizar o que não o refletisse, desprezando a oportunidade de aprender sobre si e transformar-se por meio do contato com o outro, encontrou na floresta a bela e jovem ninfa oréade (das montanhas) Eco.

A exemplo de Tirésias, Eco também fora castigada por Hera, depois de se valer de sua eloquência para distrair a esposa de Zeus enquanto este descia ao mundo dos homens para desfrutar de sua vida adúltera. O castigo imposto a Eco consistiu em tirar-lhe a autonomia da fala, fazendo-a apenas repetir as últimas palavras pronunciadas por seu interlocutor.

Apaixonada por Narciso, mas impossibilitada de dizer a ele tudo o que queria, Eco o encontrou na floresta e não se conteve: foi na direção dele. Ao avistá-la, Narciso se surpreendeu, disse-lhe algo — talvez, “quem é você?” — e, ao escutar a pergunta ecoar de volta, fugiu da ninfa e de seu amor, deixando-a literalmente petrificada de desamparo e desapontamento. A pedra em que Eco se transformou até hoje ecoa as últimas palavras dos que passam por ela… Isso mesmo: o substantivo eco e o verbo ecoar têm história.

Indignadas com a atitude do belo jovem, as ninfas, amigas de Eco, se unem para pedir a Nêmesis — a deusa da vingança, que pune a arrogância dos mortais — que Narciso pague por sua incapacidade de se relacionar e respeitar os sentimentos alheios. Nêmesis, então, pede a Eros, o deus dos relacionamentos, que fleche Narciso, fazendo-o apaixonar-se pela primeira pessoa que visse.

Assim, ele aprenderia o que é sofrer de paixão.

Desavisado, depois de ser flechado, Narciso se encaminha para a límpida fonte de Téspias e, ao debruçar-se e se avistar no espelho d’água, apaixona-se pelo próprio reflexo. Narciso tenta tocar o rosto que admira, mas ao mais suave toque, ele se deforma, se desfaz, desaparece.

A angústia por amar o que se desvanece ao mais sensível toque, sendo assim, intangível, leva-o a ferir seu próprio peito e sangrar. Narciso, então, descobre que é o próprio reflexo o que vê. Incapaz de deixar a beira da fonte de Téspias, para de se alimentar, enfraquece-se, desmaia e morre afogado na própria superficialidade. Alguns relatos do mito dizem que, no Hades (mundo dos mortos), Narciso teria continuado a buscar, no Estige, rio da Invulnerabilidade, seu reflexo. Seu esforço, em virtude da escuridão do submundo, é em vão.

A história de Narciso é popular há cerca de três mil anos porque expressa um aspecto fundamental da natureza humana, ou seja, é, sob o prisma da psicologia analítica, a representação mitológica de um arquétipo; por isso, existe em cada um de nós. Ampliar essa história é entregar-se a uma miríade de possíveis compreensões e talvez todas sejam, em algum aspecto, válidas.

Certa vez ouvi de um professor que o mal psíquico da contemporaneidade é o narcisismo. Quando analisamos o mito, é inevitável pensar que o mal de Narciso está em sua incapacidade de se relacionar. Não é por acaso que Nêmesis incumbe Eros da missão de castigá-lo por sua húbris (Cf. BRANDÃO, p. 180). A questão de Narciso é com Eros e esse fato torna o narcisismo contemporâneo especialmente irônico, porque, em tese, as redes sociais teriam a finalidade de facilitar e estimular os relacionamentos.

Será que as redes sociais, de fato, estimulam as pessoas a se relacionarem genuinamente?

O que é relacionar-se genuinamente? Para Jung (2013c, §324-325), “Não existe nenhum relacionamento psíquico entre dois seres humanos, se ambos se encontrarem em estado inconsciente”. Mas, ainda nas palavras do fundador da psicologia analítica, “existe a inconsciência parcial em amplitude nada desprezível. Na medida em que existirem tais inconsciências, também se reduz o relacionamento psíquico.”

Sendo assim, é possível dizer que se relacionar genuinamente é estar o mais consciente possível de si e do outro. Mais do que isso, é possível supor que o encanto que o outro nos inspira e a atração que exerce sobre nós, num primeiro momento, é um convite para ampliar a consciência de si mesmo.

Não é sem motivo que se faz análise de forma relacional.

É se entregando ao outro que se descobre mais sobre si mesmo e, ao fazer tais descobertas, vê-se aspectos da própria personalidade que, até dado momento, não se desejaria enxergar, mas cuja visão, compreensão e acolhimento são indispensáveis para o amadurecimento do indivíduo, para que se reinvente e se redescubra.

Eco, a cara-metade desprezada de Narciso, entregou-se ao relacionamento de forma inconsciente e foi incapaz de lidar com a frustração da rejeição, do relacionamento que não se realizou, foi incapaz de aprender com a experiência e, assim, foi incapaz de tomar consciência do quão assustadora, por mais bela que fosse, poderia se tornar ao refletir, em palavras, o que o outro não gostaria de descobrir em si mesmo.

Narciso, por sua vez, negou o relacionamento e, com isso, abriu mão completamente da possibilidade de tomar consciência — se Eco foi frágil demais, Narciso foi covarde. Em termos junguianos, o ego de Narciso não era flexível o suficiente para compreender e acolher o que fosse distinto do que idealizava de si mesmo. Fechou-se, assim, em sua beleza superficial, inebriou-se da própria imagem e afogou-se na inconsciência, temendo e, até por isso, sendo incapaz de jogar luz na própria sombra.

Na era das redes sociais, nossos Narcisos e Ecos se expressam na busca pelos tais indicadores de vaidade.

Se meu post não engaja, refletindo curtidas, comentários e compartilhamentos, não tenho valor, porque sou incapaz de me valorizar sem a valorização alheia. Assim, “petrifico-me”. Agora, se “viralizo”, reduzo-me ao conteúdo do meu post, tentando repeti-lo, em forma e beleza, nos “novos conteúdos”; afinal, encontrei o padrão que me define e me empodera; não posso me alienar dele, mesmo que ele me aliene do mistério infinito que eu sou de verdade.

Assim como a fonte de Téspias não é a culpada nem a responsável pelo infortúnio suicida de Narciso, as redes sociais tampouco são a causa do nosso narcisismo midiático; apenas o reflete. O mito de Narciso é uma narrativa sobre a (auto)alienação. Reflete o medo humano, ao mergulhar na vida e na relação com os outros, de descobrir-se “menos” do que se idealiza. Reflete a falta de prontidão para compreender, por exemplo, que trazemos, metaforicamente falando, a feiura na mesma medida e proporção que a beleza.

Para Jung (Cf. 2013a, §241), o ser humano é constituído por cinco instintos: O da autoconservação, da sexualidade, da ação, da reflexão e da criatividade.

Interessa-nos, aqui, em especial, o da reflexão, que faz menos alusão a pensamentos do que à atitude reflexiva. A palavra se origina do latim reflexion e, no contexto analítico, quer dizer “voltar-se para dentro”. Esse instinto humano explica, por exemplo, a cultura e todos os seus produtos. Assim como os demais instintos, a reflexão é vital. Mas há uma condição para a sua vitalidade, não apagar os demais instintos.

Junito Brandão (Cf. 1987, p. 184), a partir de uma palestra de Murray Stein, considera, na perspectiva junguiana, que o mito de Narciso possa versar justamente sobre um homem possuído pelo instinto da reflexão. Todos os demais instintos, por prejudicarem o ideal que Narciso fazia de si mesmo, foram negligenciados. Assim, tornaram-se sombras e, diante da incapacidade de Narciso em confrontá-las, provaram, ao mais belo dos mortais, que é impossível viver só do próprio reflexo, é preciso entregar-se à experiência material, é preciso realizar.   

É interessante observar, ainda, que, na raíz da palavra Narciso, está nárke, que quer dizer entorpecimento (Cf. BRANDÃO, 1987, p.173).

Ou seja, Narciso tem a mesma raiz que a palavra narcótico. A flor chamada narciso é narcoléptica, causa torpor. E o entorpecimento, muitas vezes, é uma maneira de fugir da consciência e se refugiar na inconsciência. É uma maneira de alienar-se e negar a vida, justamente o que fazemos, algumas vezes, olhando para a tela do celular.

Vale observar ainda que, na linha do entorpecimento, o mito de Narciso e Eco também pode ser visto como alegoria da dependência e da codependência. Nesse sentido, ao nos tornarmos reféns dos indicadores de vaidade nas redes sociais, estamos em busca de encontrar, nas timelines, a “beleza” que idealizamos de nós mesmos. Por outro lado, muitos dos “nossos” seguidores, como Eco, alimentam nossa ilusão com a própria desilusão. Embora desejem alcançar a suposta perfeição que queremos compartilhar, no fundo, não se sentem capazes nem merecedores dela.

De novo, o problema não são as redes sociais nem as telas, mas o olhar que lançamos para elas. De alguma forma, esse “ver” para não enxergar nos torna reféns da própria covardia, impede-nos de realizar a vida para além das nossas idealizações e de experimentá-la com a humildade que Narciso jamais foi capaz de ter.

Como escreveu o poeta português, Fernando Pessoa: “Toda a ação é incompleta e imperfeita. O poema que eu sonho não tem falhas, senão quando tento realizá-lo.” Não há fonte nem tela capaz de refletir a inteireza imperfeita, instintiva e arquetípica que é cada indivíduo. Tal inteireza também não cabe em nenhuma reflexão. A maneira mais apropriada de se aproximar dela é aceitar a própria escuridão, como fez Tirésias, o velho sábio cego que via além do próprio reflexo.

Wagner Borges – Membro Analista em Formação pelo IJEP

Dra. E. Simone Magaldi – Membro Analista Didata do IJEP

Referências:

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega Volume II. Petrópolis: Vozes, 1987.

JUNG, C. G. A natureza da psique. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013a.

_________. A prática da psicoterapia. 16ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013b.

_________. O desenvolvimento da personalidade. 14ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013c.

_________. Os fundamentos da psicologia analítica. Petrópolis: Vozes, 2017.

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