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Nas Bordas de Si Mesmo

Nas bordas de si mesmo...

Nas bordas de si mesmo...

Nas bordas de si mesmo. O que somos – e às vezes com tanto esforço…? Quanta batalha tentando ser o que nos parece ter algum sentido… Ao mesmo tempo, quanta batalha para não ser somente o que nos solicitam ser… Tendemos a nos perder de nós mesmos se somente ouvimos ao chamado do exterior…

E, assim mesmo, muitas vezes tentamos não perceber os conflitos interiores que nos acossam com questionamentos desconcertantes… Se tentamos servir aos padrões interiores, não servir somente aos exteriores…, quem ou o quê são esses, os que chamamos de “meus…”: meus padrões, meus desejos, meus sonhos…?

De onde vieram os estilos dominantes na consciência? Tentamos ser o que nos faz sentido ser, não somente o que esperam de nós, família, sociedade… E nós mesmos, o que esperamos de nós? De quem são essas expectativas em nós? Quanta força têm sobre nós os padrões ou imagens arquetípicas coletivas? Como pode nossa frágil consciência lidar com elas?

A consciência é um fator psíquico autônomo que emerge do inconsciente ao longo do desenvolvimento psíquico e acompanha o desenvolvimento biológico, prosseguindo seu desenvolvimento além daquele.

À consciência estão associados os valores emocionais que atribuímos às nossas ações – ou seja, nossa percepção desse valor, nossos juízos de valor. A consciência é um fenômeno complexo, ao qual está associado o que chamamos de “minha vontade”, ainda que muitas vezes nossas ações se deem por motivações das quais não temos consciência (conf. JUNG, 2013, p.184, §825).

Um arquétipo é um padrão de comportamento que para o tempo humano, “sempre existiu”, uma vez que sua origem pode retroceder ao início da humanidade como espécie, e mesmo, antecedê-la.

Os arquétipos influenciam profundamente o comportamento humano (conf. JUNG, 2013, p. 196, §846). Sua força é imensa e muitas vezes nos desconcerta especialmente em uma sociedade em transformação – e em uma transformação que não valoriza, não dá lugar aos conteúdos psíquicos. Mas esses existem e agem, e quando não reconhecidos e integrados à consciência, atuam em nós. 

Por exemplo, mulheres às quais se pode reconhecer como independentes e resolutas, realizadas em tantos aspectos de sua vida, muitas vezes se perguntam em meio aos seus caminhos e descaminhos: será que não quero de fato estar dentro de um relacionamento afetivo?

Talvez muitas de fato não queiram, porque se identificam muito com modelos, imagens arquetípicas de independência, liberdade e autonomia associadas aos papéis sociais que já realizam e às personas que desenvolveram para isso.

Talvez porque hesitem ante o risco de serem tragadas, drenadas pelos papéis sociais mais tradicionalmente valorizados, de esposa, mãe, como muitas vezes já viram acontecer com outras pessoas.

Em linguagem junguiana pode-se considerar que elas temem ser apartadas do fluir que experimentam em suas vidas sob a força de um arquétipo, cuja imagem venham a ativar ao exercer algum desses para elas, novos papéis sociais…

Pode haver algum fundamento nesse receio?

Possivelmente sim.

Jung refere-se a mulheres perfeitamente normais até então que deixaram de ser elas mesmas em face de um papel social ao qual são chamadas a desempenhar, como os fortes papéis de esposa e mãe (conf. JUNG, 2014b, p.122-3). Então, passam a ser tragadas pelo desempenho desse papel coletivo e a se distanciar do fluir de si mesmas como se conheciam até então. Desenvolviam uma cisão neurótica, decorrente de como uma imagem ancestral passou a afetar suas vidas, de como lidavam com tal imagem. Um complexo ancestral fora despertado.

Isso acontece ou pode acontecer quando uma atitude ancestral leva a uma maior adaptação em face da experiência vivida (JUNG, 2014b, p.122s) e sua força pode tragar a experiência individual, singular de uma pessoa. É como se a vitalidade e intensidade do elemento ancestral tomasse posse da pessoa e uma determinada imagem arquetípica, ou complexo de tonalidade emocional parecesse controlar seu viver.

A chegada de um novo papel social à vida de uma pessoa pode ou não ensejar um conflito interior.

O ego, como um gestor da personalidade consciente, pode recuar em face de sua dominação. Como reconciliar essas imagens com o eu? Como não se furtar a vivências enriquecedoras para não se perder de si, do que já viveu, do que já experimentou e gostou de ser? É preciso a coragem de se expor ao novo. Mesmo se o conflito incorrer em uma neurose, porque a pessoa ainda não consegue lidar com ele, até uma neurose tem um lado positivo.

Ela evidencia um aspecto não desenvolvido da personalidade, um lado que é fonte de fantasia criadora em oposição à esterilidade de um intelectualismo dissociado. É fato que no sintoma de uma doença está inscrito o esforço da totalidade para a cura, ou seja, para a fluidez da conexão entre consciente e inconsciente (conf. JUNG, 2013, p. 177-8, §355-6).

Um novo papel social muitas vezes nos coloca em contato com nossa sombra, algum aspecto nosso ainda não desenvolvido, o qual desconhecíamos ou conhecíamos e rejeitávamos. Toda nova experiência mais impactante pode mobilizar afetos.

Esses tendem a se tornar complexos autônomos.

Ou seja, tendem a se desconectar da consciência e podem mesmo tomar seu lugar (conf. JUNG, 1986, p.271-2, §628). O mais comum é preferirmos nos imaginar como “seres sem sombra”, preferindo acreditar sermos somente aquilo que gostaríamos de saber sobre nós mesmos.

No entanto, o confronto com os arquétipos, com as forças instintivas, com nossa sombra é um problema ético da maior importância. Sua urgência só é percebida por aqueles que se veem em face de um dilema decorrente de conteúdos que perceberam emergir do inconsciente: como assimilá-los e integrá-los à própria personalidade consciente?

Manter-se tentando ignorá-los é manter-se em estado de cisão neurótica. Sem tal percepção a pessoa avalia-se em muito bom estado psíquico. O mal, o demônio, estão no outro, vêm “de fora”. Poucos têm consciência de sua responsabilidade em face desses conteúdos, que integrá-los lhes permite melhor saúde e fluir na vida, e que assim agindo, eventualmente encontram um ponto de estabilidade além da identificação com um polo dos opostos.

Um referencial além dos opostos, de onde, entretanto, continuam a lidar com novos e sucessivos confrontos com o inconsciente, e os dilemas polarizados disso decorrentes (conf. JUNG, 1986, p.145-6, §409-10).

É muito grande a força de uma imagem arquetípica e tanto maior quanto maior for a nossa inconsciência delas. Essas mesmas ou outras mulheres, comentam com aversão sobre atitudes grosseiras que lhes são dirigidas, por exemplo, em decorrência de sua beleza.

Resulta-lhes, no limite, ser frequente a dificuldade de estabelecer um relacionamento no qual a pessoa parceira de fato as respeite e as valorize pelo que são em um sentido mais amplo e abrangente, como pessoas que são, não apenas ou quase que somente por sua beleza.

Protesto semelhante pode ser ouvido de pessoas que se destaquem por sua riqueza material, ou inteligência ou capacidade profissional, quando em um relacionamento pessoal. Todas buscam ser acolhidas de modo mais amplo, nas multiplicidades de seus seres, e encontram a referida dificuldade para realizar essa experiência a contento.

Entre outras possibilidades, pode ocorrer que quanto mais algum de seus atributos corresponda a um aspecto idealizado em nossa cultura, e na história humana, maior será a tendência das pessoas com quem se relacionam não as reconhecerem de modo singular e, por isso, também, de não desenvolver com elas uma parceria de modo singular e diferenciado.

Quanto mais corresponderem à idealização coletiva, maior será a tendência de expressão coletiva e não diferenciada da outra pessoa na relação. A pessoa colocará na relação o nível de interação que já conseguiu desenvolver em si, podendo agir de modo muito primitivo e não diferenciado, quando em face de uma idealização cultural, coletiva.

Se em nossos aspectos de desenvolvimento mais diferenciado temos algum grau de autonomia e singularidade, naqueles mais indiferenciados sentimos mais a força de um arquétipo, como que a vontade de nossa espécie erigida a partir das experiências do passado sobrepujando amplamente a nossa vontade individual, singular.

Eventualmente, quanto maior a indiferenciação, mais a força de um arquétipo pode parecer determinar nosso destino (conf. JUNG, 2013, p.138, §261)

Ideias essas, muito estranhas à mentalidade do “ego que tudo pode”, contemporânea. De qualquer modo, no caminho da individuação não é fácil cultivar a própria singularidade entre as forças da consciência coletiva e do inconsciente coletivo.

Nossas atitudes, ao contrário do que avaliamos, muitas vezes não decorrem de nossa vontade, de nossa disposição interior, mas do contágio, da influência do ambiente – na sugestão das massas está a maior evidência disso (conf. JUNG,1986, p.155, §423; p.272, §630).

É preciso a coragem de assumir a contra idealização de que nossa psique não é uma unidade, mas sim, constituída por muitas forças, como “uma mistura borbulhante de impulsos, bloqueios e afetos contraditórios” (JUNG, 2014a, p.109. §190).

Mesmo a continuidade e unidade de nossa consciência psicológica é ainda recente e possivelmente é justificado o receio de que se possa perdê-las (conf. JUNG, 2013, p.191, §836). De fato bastante frágil e mutável, “a consciência só pode existir através do permanente reconhecimento e respeito do inconsciente: toda vida tem que passar por muitas mortes” (JUNG, 2014a p.102, §178).

É importante mantermos sempre nossa disposição para a transformação e mudança – inclusive e principalmente, mudança daquilo que reconhecemos como sendo nós mesmos. É importante permitirmos a morte de nossas sucessivas idealizações de nós mesmos e dos outros. 

Ao longo de nossas vidas, partes independentes de nossa psique apresentam-se como personalidades parciais; são correntemente mobilizadas e eventualmente projetadas sobre outra pessoa (conf. JUNG, 2013, p. 78, §137).

Sem buscar conhecer cada qual a si mesmo, não podemos conhecer nem ao outro externo, nem ao desconhecido outro que em nós habita. Esse outro que nunca deveria ser esquecido, nosso oposto interno é aquela parte que nos coloca em conflitos sempre a serem novamente resolvidos, em um processo que gera vida.

Não devemos fugir de nossos conflitos, mas aprender a conviver com eles, a mergulhar neles e assim gerar energia de vida (conf. JUNG, 2013, p. 179, §359-60). O código moral vigente em nosso meio externo delimita fronteiras dentro das quais, quando em conflito, obedecemos à nossa consciência. E, geralmente, é dentro desse código que respondemos aos conflitos de deveres. Mais raramente entramos na dimensão ética, na qual lidamos com os conflitos por meio de um ato individual de julgamento (conf. JUNG, 2013, p. 190, §835).

É premente a urgência do desenvolvimento integral do ser humano. Felizmente cresce a aversão pela parcialidade, unilateralidade e ação movida pelo inconsciente. É preciso integrar à consciência o fato de que aquilo que percebemos como fraco e imperfeito tem uma natureza dual, dupla no sentido de nos conduzir a um nível humano mais profundo, até o inconsciente se perdermos nossa distinção pessoal, nossa singularidade.

Ter a coragem de se distinguir do coletivo, experimentando em sua singularidade o que é universal e ao mesmo tempo, reconhecendo em si a indiferenciação humana poderá nos permitir experimentar o que de fato somos.

Reconhecer nossa indiferenciação, que ela nos habita em tão vasta extensão em relação ao alcance de nossa consciência, nos retira da solidão de nossa singularidade, nos permite o reconhecimento de que somos todos igualmente humanos (conf. JUNG, 2013, p.142, §269-70).

Mas, não nos exime de nosso trabalho interior de diferenciação, de sair do conhecido em nós. Do esperado em nós. A adaptação ao mundo interior inclui a adaptação às forças da psique, muito mais poderosas do que as forças do chamado mundo externo.

Por sermos tão individualistas no mundo contemporâneo, mobilizamos o humano coletivo inconsciente, de modo compensatório, o qual se expressa na autoridade da massa anônima que por nada se sente responsável.

Esse humano coletivo ameaça sufocar o humano singular capaz de realizar uma reflexão responsável sobre si mesmo, sobre seu papel como humano. Quanto mais inconscientes estivermos, mais produziremos uma cultura de morte, de destruição catastrófica.

É preciso contrapor a isso o conhecimento da intimidade psíquica do humano, e a coragem de experimentar nossa singularidade e nossa coletividade. Quanto maior a inconsciência, maior a influência sobre a consciência, dos conteúdos indiferenciados da psique que por isso, em geral são tão destrutivos, e esses podem mesmo, comandar nosso destino.

É preciso colocar nossas duas esferas psíquicas para dialogar (conf. JUNG, 2013, p.164-5, §325-9; p.166-7, §331-3s). 

Jung nos diz que o maior trabalho, a maior oferta que podemos oferecer a uma coletividade é nossa diferenciação, que começa em nosso confronto com a nossa sombra e consequente retirada de projeções.

Cegos aos nossos próprios conflitos interiores, se permitimos que nossa consciência se identifique com a consciência coletiva (por exemplo aderindo fanaticamente a algum “ismo”), nós nos tornamos massificados, sujeitos à psique de massa e por nossa inconsciência, destrutivos – os conteúdos inconscientes atuam em nós, sem elaboração, sem o discernimento e a discriminação de nossa consciência.

É preciso reconhecer em nós os conteúdos arquetípicos e dedicar a eles cuidadosa consideração (o religere).

A mudança de consciência de uma coletividade e da humanidade, depende do trabalho interior de cada um (JUNG, 1986, p.156-9§426-8). A dimensão ética do ser humano implica em reflexão e entendimento conscientes de uma situação, mesmo que a decisão final em face de um conflito leve-nos a nos distanciar do estabelecido e esperado pela moral coletiva vigente.

O agir ético envolve um processo criativo que abarca a pessoa integralmente, tanto sua consciência psicológica racional como seu inconsciente irracional. Ou seja, a atitude ética envolve a função transcendente.

Nesta há um diálogo e entendimento entre as dimensões consciente e inconsciente da psique, sendo criado um terceiro critério pelo qual será abordado o conflito em questão (conf. JUNG, 2013, p.201-2, §855-7).

Em face de um dilema ético, emergem nossa luz e nossa sombra, o que nos permite perceber uma terceira opção de ação, a qual caracteriza uma atitude de serviço ao Si-mesmo, à totalidade maior que nossa consciência (conf. JUNG, 2013, p.210-11, §872-5).

Nesse contexto, o bem e o mal podem ser vistos como princípios de nosso julgamento ético. Também podem ser vistos como aspectos ou nomes de Deus. Caso a intensidade emocional envolvida seja maior do que “eu”, não podemos dominar o tremendo e fascinante, o numinoso. Somente podemos nos manter disponíveis, permitindo essa dominação, permitindo a transformação, confiantes no seu significado (conf. JUNG, 2013, p.205-6, §864).  A vida e a psique envolvem, como vimos, mais do que nossa mente consciente.

É interessante que para o Yoga, ao contrário do proposto por Descartes, enquanto penso não existo.

Enquanto penso, repito, com frequência automaticamente, histórias já contadas, já vividas. Quando silencio, sou. O que pode emergir de nosso silenciar? Há mais em nós querendo espaço na consciência.

Novos valores ou novos meios de expressão de antigos valores querem se achegar a nossa consciência. Como permitir e renovar a vida? Que vida virá? Diante desses acolhimentos, reclamam talvez antigos hábitos e valores que não querem perder sua hegemonia. Há mais deuses querendo expressão em nossa vida… Individuação: maximizar em cada um de nós humanos, a expressão singular dos universais…

M-a-x-i-m-i-z-a-r…, o que pode significar?

Atravessados por deuses, vivendo em nós a intensidade de suas expressões, cabe-nos a nós humanos delimitar o tempo de culto a cada um deles, como também, em alguma medida, estar atentos aos seus chamados diversos. À consciência cabe ouvir o inconsciente e interagir com aquilo que vem sendo ativado, que ganha energia a partir do viver da pessoa e se manifesta então.

À consciência cabe integrar os novos conteúdos que emergem do inconsciente e se expandir… Cabe acompanhar simultaneamente, atentamente ao movimento dos mundos de fora e de dentro, realizando o universal no singular… Até quando? Até onde…?

Tão eficazes em buscar o que nos parece ser mais importante, em viver o que nos é mais relevante, em não desperdiçar tempo com o que não tem sentido…

Como se expor e ir além de si mesmo sem cair em enantiodromias gritantes e destrutivas? Não há vida psíquica sem a tensão dos opostos… Não há vida sem o incômodo conflito entre o que é e tudo o mais que não é… O que há além das possiblidades de si mesmo já experimentadas e aperfeiçoadas ao longo dos anos de vida, dos dias vividos?

Como ir, cada um de nós, além da destreza e eficácia de ser a si mesmo; ir além daquilo a que chamamos de eu, meu, mim…?

Quanto daquele silêncio de pensamento acima mencionado é preciso para ouvir os ecos desses outros espaços e possibilidades? 

Há um Hexagrama no I Ching que se chama Limitação, e se refere às Bordas do Lago: sem os limites das bordas não se tem um lago; a ausência de limites não é própria à vida humana (conf. Hexagrama no 60, trad. WILHELM, 1997, p.182-4; 501-3).

Às bordas do presente, olhando as ainda invisíveis manifestações do que é hoje o futuro, pergunto-me sobre o pessoal e coletivo futuro… Certamente emerge do já vivido. Certamente emerge das novas escolhas… Que possam ser realmente renovadoras.

Às bordas de si mesmo, cada humano pode constatar outras possibilidades de si mesmo. Como prosseguir além de nossas identidades já tão conhecidas? Abandonar as cercas… Talvez começando por aceitar o não-belo da vida… Posso começar por acolhê-lo.

Estar com o estridente e desarmônico outro – em mim, no outro, no coletivo, no mundo… Assim, podemos ir além do humano que já conhecemos… Como fazer um silêncio de tal monta que nos permita acolher, estar com o desarmônico e feio que nos visita e nos conta que está em tudo no mundo?

Tudo que vejo e sinto é filtrado pela lente de meus valores. E se desconsiderássemos a verdade que baliza nossos julgamentos como a única possível? Isso nos permitiria ir além de nós mesmos? Cada humano, sentado às margens de si mesmo pode decidir saltar do conhecido para acolher o desconhecido em si; talvez para descobrir que existem canyons, descontinuidades profundas, com rios lá embaixo, ou não… E está tudo bem.

A paisagem é assim mesmo. E é profundamente linda… Por vezes, assustadora… Com ajuda da arte, da poesia, de meditação, de psicoterapia, e acolhendo a profunda angústia pulsando no peito, podemos encontrar nosso modo de saltar para o(s) desconhecido(s) que se apresentam.

Suportar espaços vazios e sua incrível atração para ali levar o ser…

Suportar avançar no desconhecido, ficar com ele por tempo suficiente… Não-conter. Não-rotular. Não-colonizar. Não-ocupar, assim de pronto.

Deixar que vazio de predefinições, o que vai se tornando presente presenteie-se, se achegue, por vezes manso, por vezes, terrível, de repente. E ir tecendo um novo quadro, uma nova tela, fiando um novo fio, descobrindo uma nova fibra, uma nova floresta, onde ela cresce. Assim nos expandimos em nossa consciência.

A casa do viver humano cresce, se desloca. O centro de interesse é outro. Héstia acende seu fogo em novo ponto, em outro lugar nessa casa. Um novo e desconhecido presente se faz do futuro para o qual saltamos.

As bordas de si mesmo já não estão mais no mesmo lugar. Há que se viver e se descobrir e integrar às histórias o que foi presentificado. Novos outros no outro. Novos outros além de nós mesmos… Novas bordas a serem saltadas quando essa nova casa de novo ficar pequena… Um dia, certamente ela estará pequena.

Um dia, será hora de saltar de novo, de morrer de novo, de viver de novo. E o silêncio no centro da angústia, se fará muito presente de novo. Entendemos o que está dito: “… de mim depende eu vir livremente a ser o que fatalmente sou” (LISPECTOR, 2020, p.101).

Suspiro. Passa a consciência a seu próximo movimento.

De mangas arregaçadas volta à sua faina de acolher Hefesto, de acolher Vênus, e Marte, e Saturno… E assim a todos os deuses que ativados visitam, disputam, coabitam espaços na psique… A punição pelo monoteísmo é a servidão ao deus único cultuado. Ouvir o Silêncio por trás do ruidoso ir e vir dos deuses é possível a um humano? Podemos ao menos tentar compor sinfonias de seus ruídos…?

“A vida estava tendo a força de uma indiferença titânica. Uma titânica indiferença que está interessada em caminhar.”

LISPECTOR, 2020, pg. 103

Suspiro. Mortais e passageiros, incorreremos em todos os riscos, erraremos erros que serão as fontes refrescantes de novos, inusitados desacertos e descaminhos. Ou, não viveremos de fato. Um dia, findaremos para uma vida de consciência e ego. Daremos um salto mortal no desconhecido Inconsciente. Daí e então, nada mais sabe(re)mos.

O Silêncio, dissolvendo bordas, dissolvendo o que sou, a mim mesma, a cada um de nós. Poderemos então entender: “tudo estará em mim, se eu não for; pois ‘eu’ é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo” (LISPECTOR, 2020, p.145). Expiro.

À memória de A.M.A. (17/10/1961 – 20/10/22).

Bibliografia

I CHING – o livro das mutações, WILHELM, Richard (trad.), C.G. JUNG (prefácio). São Paulo: Pensamento, 1997, 527p.

JUNG, C.G. Civilização em Mudança – civilização em transição. Petrópolis, RJ: Vozes 2013. 213p. (OC, v.10/3), 269p.

JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014a, 454p (OC 9/1).

JUNG, C.G. Seminários sobre psicologia analítica (1925). ed. Original William McGuire; ed. Revista, introdução e notas adicionais Sonu Shamdasani; tradução Gentil Avelino Titton. Petrópolis, RJ: Vozes 2014b. 213p.

LISPECTOR, Clarice A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2020. recurso digital 154p.

Analista em Formação: Silvia Maria Guerra Molina

Analista Didata: Maria Cristina Mariante Guarnieri

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