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Ética na vida e morte da natureza

Ética na vida e morte da Natureza

Já parou para pensar o quanto de natureza existe de você e o quanto de você está na natureza. Nesse artigo fazemos uma reflexão sobre o atual estado de desconexão da humanidade com a natureza interna e externa, por meio da sempre presente urgência e desrespeitos aos ritmos, ciclos e processos.

No presente artigo buscamos aprofundar a reflexão sobre nossa relação ética com a natureza, exploração dos recursos e falta de respeito para com a vida em geral.

A relação entre o humano e o meio ambiente se deteriorou ainda mais com o advento da indústria e do poderio tecnológico, ao mesmo tempo que o aumento da população urbana distanciou grande parte da população da proximidade e observação do meio ambiente.

*Este artigo foi inspirado na palestra que apresentamos no VIII Congresso Junguiano do IJEP. Conheça nossos Congressos Junguianos: https://ijep.pages.net.br/congressos-carl-jung-ijep

Os homens primitivos viam na natureza a morada de seus deuses.

Os homens primitivos viam na natureza a morada de seus deuses. Os indígenas tratam a floresta e o local de onde tiram seu alimento, como espaço sagrado. As primeiras divindades foram fruto da observação e temor das forças da natureza. A falta de compreensão racional dos humanos a respeito do funcionamento da natureza fez com que projetassem nela seus primeiros conteúdos inconscientes e, a partir daí, criassem-se os deuses e mitos. Obviamente essa é uma redução drástica de uma linha do tempo que data de milênios atrás.

Essa reverência à natureza e aos deuses manifestados por seus fenômenos resultava em uma relação de cautela e precaução em relação à superexploração, poluição e degradação. Ao serem muito mais dependentes do seu ambiente próximo, nossos ancestrais aprenderam, provavelmente ao custo de vidas e sofrimento de algumas gerações, que certas práticas poderiam colocar em risco os alimentos e a saúde de todo um povo.

A vida na Terra é fruto de inúmeras transformações e condições muito peculiares

A vida na Terra é fruto de inúmeras transformações e condições muito peculiares, desde a localização do planeta no sistema solar, até a temperatura e composição da atmosfera – perfeitas para possibilitar a existência e evolução da vida ao ponto de gerar seres autoconscientes como nós.

A consciência e a racionalidade humanas tornaram possível que a nossa espécie fosse uma das poucas capazes de se adaptar, por meio de tecnologias, a todos os ambientes do planeta, desde as florestas quentes e úmidas dos trópicos até o inverno congelante do Ártico.

Tal capacidade criativa também fez com que a humanidade fosse capaz de entender o funcionamento de boa parte da natureza e passar então a usá-la a seu favor. Isso não é, de maneira alguma, um demérito, pelo contrário, é um ponto de inflexão na nossa capacidade de se adaptar, pois, a partir de então fomos capazes de produzir alimentos e alimentar um número cada vez maior de pessoas, um tanto menos dependentes da caça e coleta.

Curiosamente, quanto mais conhecimento e controle o homem foi tendo da natureza, menor foi sua conexão com seus ciclos, sua reverência e temor das consequências. Jung baseou boa parte de seus achados teóricos na observação da natureza e era um grande crítico da desconexão entre homem e natureza alegando inclusive que a natureza é o alimento da alma (Duarte, 2017).

O advento da indústria e sua capacidade de processamento, transformou a natureza em uma simples fonte de insumos e tirou dela o lugar sagrado.

A desconexão do humano com a natureza fez com que nos esquecêssemos de que dela dependemos. O que observamos, então, é uma formação societária de valorização da conquista, do poder e do domínio. Ao longo de toda uma diversa formação cultural e histórica, o meio natural foi visto como terra a ser conquistada, oportunidade de negócios, gerador insumos, fonte de riqueza. O local sagrado da natureza, e a troca harmônica com este meio, foram colocados em segundo plano.

Voltando o nosso olhar de cinco a seis mil anos no passado, encontraremos o começo da estrutura patriarcal vivida hoje. Nesse ponto da história, grandes transformações ocorreram nos mais diversos níveis. Nas movimentações entre as dimensões internas e coletivas, a progressiva instalação do patriarcado influenciou a preponderância do poder e do controle sobre a natureza interna do feminino.

Paralelamente, a dominação se estende à natureza.

Paralelamente, a dominação se estende à natureza. Quando o homem percebe que pode controlar o ciclo reprodutivo dos animais e das plantas inicia-se o controle mais ostensivo, juntamente com a imposição de sua vontade sobre os ciclos naturais. Inicia-se o rompimento da ordem natural de vida-morte.

A natureza foi, pouco a pouco, colocada como externa ao homem. Algo que pode ser controlado, medido, aproveitado e modificado. Passou a ser algo a parte de nós. Está distante, fora. Restrita a parques, reservas ambientais e paisagens. O ser humano já não se vê como parte da natureza e a natureza como ele próprio. O meio natural está agora longe, fora e separado de nós.

Essa perda de percepção do meio ambiente como algo do qual fazemos parte – e não apartado de nós – gerou um distanciamento do nosso próprio corpo e de tudo que se refere aos instintos naturais que nos cabem. Desde o processo natural de envelhecimento, até a autopercepção corporal de cansaço, fome e adoecimento. Estamos desconectados com o natural mais próximo a nós, que é o nosso corpo.

Jung (O.C 8/2, p.363) afirma que “a vida natural é o solo em que se nutre a alma”.

Nesta citação, Jung refere-se ao curso da vida, que se compõe de etapas de ascensão e crescimento, envelhecimento e preparação para a morte. Mesmo sendo evidente as fases naturais da nossa vida, que nos encaminham para o envelhecimento e a morte, o entorno cultural direciona as vontades para a juventude e a preservação de uma beleza padronizada insustentável.

Na esfera psíquica, em alguns casos, fica-se atrelado a um passado infantil e pueril, que, nas palavras de Jung geram “verdadeiras monstruosidades psicológicas”. Utilizando-se das imagens do meio natural, como frequentemente o faz, ele afirma que “um velho que não sabe escutar os segredos dos riachos que descem dos cumes das montanhas para os vales não tem sentido, é uma múmia espiritual e não passa de uma relíquia petrificada do passado” (JUNG, O.C 8/2, p.364).

É notável, ainda, que o tempo natural tem sido rompido por uma urgência controladora.

Desde o momento mais elementar do nascimento, a imposição do tempo urgente se faz. Muitas vezes o parto cirúrgico é escolhido pela possibilidade da intervenção médica para se acelerar o processo de nascimento. Projetando os valores de produtividade até mesmo no ato de nascer, em que o ritmo natural do parto é quebrado. Marca-se um horário conveniente e confortável para todos. Em uma sala estéril, asséptica e gelada, um corte é feito e o pequeno ser humano é puxado para o começo de sua vida. O primeiro contato com o mundo externo, muitas vezes não respeita o tempo, a pausa, o ritmo, a cadência das demandas instintivas e intrínsecas à nossa natureza mais elementar e visceral.

Vê-se uma paulatina deterioração da integração do homem com a natureza, o que conflui a um distanciamento do homem com seu mundo interno e uma falta de autopercepção mais profunda.

Esta sensação de impotência e de alienação, a ausência de significado pessoal e de uma ligação viva com um campo orgânico – seja ele um grupo social, a natureza ou o cosmo -, é, sem dúvida, a característica psicológica peculiar de nosso tempo. Característica essa fomentada pela religião predominante nos últimos duzentos anos, mais conhecida como ciência.

Somado a isso, a impotência e a alienação são acentuadas pelos efeitos da cultura urbana, da coletivização abarrotante e da tecnologia. Todos estes fatores levaram a sociedade a um estado de entorpecimento e reduziram-na a uma manada. (WHITMONT, 1991, p. 262)

O retorno da Deusa

Neste recorte do livro “Retorno da Deusa”, Whitmont evidencia o adoecimento compartilhado, que permeia várias esferas da nossa vida. Nessa dinâmica ocorre igualmente uma via de mão dupla.  Ao mesmo tempo em que o homem em desconexão com sua natureza mais elementar agride e destrói, a natureza adoecida corrobora para uma saúde mental e física deteriorada.

Por mais que joguemos fora a natureza por meio da força, ela sempre retorna (JUNG, 10/1, §514)

Nos encontramos de diante de um planeta em urgente necessidade de regeneração e avançado estado de degradação. Acreditamos saber os riscos aos quais estamos nos expondo, como espécie, às mudanças climáticas, esse evento abstrato que simbolicamente pode representar a transformação da atmosfera do planeta em algo mais hostil e agressivo. Não sabemos ao certo quanto a atividade humana tem afetado o delicado e profundo equilíbrio que foi construído durante milênios e que possibilitou nossa existência.

Há esperança, pois a natureza é um contínuo, e muito provavelmente a nossa psique também o é (JUNG, 18/1, §181)

Em outras linhas, a criatividade que nos colocou nesse lugar pode justamente nos tirar dele. Ao compreender a natureza, mas sem desejar controlá-la, a humanidade atua em cooperação com seus ciclos e processos. Essa é uma bela metáfora ao processo de individuação, que pode estar se desenrolando na consciência coletiva. Jung também diz que a natureza não é um guia por si, pois ela não foi feita para o ser, mas que com a consciência e a inteligência aprendemos a colaborar com ela.

Nossa relação com o meio ambiente talvez reflita parte da nossa relação com a nossa natureza interior. O quanto estamos dando ouvidos às nossas necessidades, à fome da alma? O quanto essa deterioração não tem afetado nosso inconsciente? Quantas doenças não surgiram como resultado da destruição ambiental e do contato com a natureza degradada? O quanto não estamos desrespeitando nossos ciclos, estações e sacralidades interiores?

Se tivermos a natureza como guia, nunca trilharemos caminhos errados (JUNG, 10/3, § 34)

Não se faz necessário um retorno aos tempos primitivos, porém, podemos aprender muito com esse tempo em que a natureza era local do divino e sagrado – merecendo, pois, a devida reverência. As atitudes de cada um contam na construção de uma consciência mais ecologicamente amigável.

A natureza externa e interna estão ligadas e se retroalimentam

O alimento que nos alimenta volta para a natureza, da mesma forma que a degradação do meio ambiente é a degradação da nossa natureza interna. A cada ano, o dia de sobrecarga da Terra[1], uma data simbólica instituída pela Global Footprint Network com base em cálculos do uso dos recursos naturais pelos humanos, acontece mais cedo no ano.

Cada vez mais cedo o ser humano é acometido de doenças relacionadas ao meio ambiente (problemas respiratórios, obesidade, intoxicações) e/ou à superexploração da sua natureza interna (esgotamento, ansiedade, depressão).

A reconexão com os ritmos da vida e da morte se faz urgente e são o desafio do presente, para a garantia do futuro.

Autoria:

Lorena de S. Oliveira – Membro Analista em Formação pelo IJEP

MsC. Mauro Angelo Soave Junior – Membro Analista em Formação pelo IJEP

Dra. E. Simone Magaldi – Fundadora e Membro Didata do IJEP

Referências:

JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique, 10ª edição, Petrópolis: Vozes, 2013.

JUNG, Carl Gustav. O. C 10/1 Presente e futuro – Petrópolis, RJ ; Vozes, 2013

JUNG, Carl Gustav. O. C 10/3 Civilização em transição – Petrópolis, RJ ; Vozes, 2013

JUNG, Carl Gustav. O.C 18/1 A vida simbólica: escritos diversos –Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

DUARTE, Alisson J. O. Ecologia da alma: a natureza na obra científica de Carl Gustav Jung. Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, v. 35, p. 5-19, 2017

WHITHMONT, Edward. Retorno da deusa, 2ª ed., São Paulo: Summus, 1991.


[1] O dia de sobrecarga da Terra aponta a data em que teoricamente os recursos naturais que deveriam durar 365 dias se esgotam, e dessa forma, estamos consumindo recursos futuros do planeta no presente.

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