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O caso Brumadinho: reflexões junguianas a partir do mito de Eros e Tânatos

Escrevo este artigo a partir das minhas reflexões sobre o recente caso de Brumadinho, em Minas Gerais. O colapso da barragem do Córrego do Feijão, que pertencia a Cia Vale do Rio Doce e a invasão de lama nas áreas abaixo da barragem  que a seguiu matou mais de 300 pessoas e trouxe à tona diversos sentimentos e emoções, sendo a tristeza a maior delas, mas também a raiva pelo descaso com que a vida humana e a natureza foram tratadas, não apenas neste episódio, mas durante todo o período que o antecedeu, à medida que haviam informações suficientes para que um plano de ação fosse implementado e impedisse que a avalanche avassaladora de lama destruísse tantas vidas. A falta de ética e de qualquer comprometimento com a sociedade e o planeta são mais do que apenas uma questão econômica, são uma total falta de consciência sobre as consequências que uma ação – ou, como neste caso, a falta de ação -, pode ter sobre a vida humana, algo perverso, pois todas as evidências mostravam o rompimento iminente, como já havia ocorrido anteriormente em novembro de 2015 no caso Mariana.

Então, foi a partir da tristeza pela perda de tantas vidas, pela morte que se fez presente de uma forma tão contumaz nas últimas semanas, que inicio minha reflexão. Mas toda esta tristeza trouxe algo a mais para ser considerado: a solidariedade que foi constelada a partir deste evento, os inúmeros homens e mulheres que se dispuseram a ajudar no resgate de vidas humanas e animais, saindo de suas casas para ir para o meio da lama prestar socorro de todas as maneiras, seja nas buscas por sobreviventes ou corpos, no cuidado com os animais, ou ainda, lavando a roupa dos bombeiros dia e noite para que o trabalho pudesse continuar. O pulsar a favor da vida em meio a toda a devastação ocorrida deve ser levado em conta. A polaridade que se apresentou a partir do rompimento da barragem parece ter deflagrado um movimento incansável a favor da vida, demostrando um amor profundo pelo próximo, que se fez notar com a chegada de bombeiros e voluntários, o que me remeteu ao mito de Eros e Tânatos.

O mito de Eros e Tânatos foi utilizado por Freud em sua obra “Além do princípio do prazer” para falar sobre as pulsões de vida e morte. A minha leitura do mito, no entanto, é baseada na psicologia analítica de Jung, a partir do comportamento compensatório ou complementar do inconsciente em relação a consciência.

Conta o mito que Eros, certo dia, adormeceu numa caverna, embriagado por Hipno (deus do sono, irmão de Tânatos). Ao sonhar e relaxar suas flechas se espalharam pela caverna, misturando-se às flechas da morte. Ao acordar, Eros sabia quantas flechas possuía. Recolheu-as, e sem querer levou algumas que pertenciam a Tânatos. Sendo assim, Eros passou a portar flechas de amor e morte (RODRIGUES, 2013).

Segundo Junito Brandão, Tânatos, a morte, não possui um mito apenas seu, e está presente em diferentes mitos (BRANDÃO, 1987, pg. 225). Segundo a Cosmogonia, Tânatos é filho de Nix, a Noite e, do ponto de vista simbólico, Tânatos é o aspecto perecível e destruidor da vida.  Brandão diz ainda que “… a Morte não é um fim em si; ela pode nos abrir as portas para o reino do espírito, para a vida verdadeira: mors ianua uitae, a morte é a porta da vida” (idem, pg. 226).

Jung (2013) discorre sobre a morte, assunto que sempre lhe era perguntado em suas palestras, sob o ponto de vista do envelhecimento, ou seja, da morte natural dizendo que:

 “… para o interessado a areia escoou-se na ampulheta; a pedra que rolava chegou ao estado de repouso. Em confronto com a morte, a vida nos parece sempre como um fluir constante, como a marcha de um relógio a que se deu corda e cuja parada final é automaticamente esperada” (JUNG, 2013 pg. 361)

E, ao se referir aos efeitos da morte sobre a consciência de quem testemunha a partida de outrem, explica:

“Nunca estamos tão convencidos desta marcha inexorável do que quando vemos uma vida humana chegar ao fim, e nunca a questão do sentido e do valor da vida se torna mais premente e mais dolorosa do que quando vemos o último alento abandonar um corpo que ainda há pouco vivia” (Idem, pg. 361).  

Jung diz ainda que “a vida é um processo energético, como qualquer outro, mas, em princípio, todo processo energético é irreversível e, por isto, é orientado univocamente para um objetivo. E este objetivo é o estado de repouso” (Idem, p.364).

Jung propõe uma analogia da vida com um projétil, cuja trajetória termina quando se atinge o alvo, ou seja, a morte.

Em minhas reflexões sobre o simbolismo da tragédia de Brumadinho, e tomando como ponto de partida o modo como ocorreu, ou seja, a partir do rompimento de uma barragem e o vazamento de toneladas de lama, encontrei em Chevalier (CHEVALIER, 2015) uma possibilidade de compreensão dos aspectos simbólicos da lama. Segundo esse autor, a “Lama é o símbolo da matéria primordial, da qual o homem foi tirado, segundo a tradição bíblica.” (CHEVALIER, 2015, pg.553).  Mistura de terra e água, e “se tomarmos a terra como ponto de partida, a lama pode remeter ao nascimento de uma evolução, a terra que se agita, que fermenta, que se torna plástica”. (idem, pg.554). Mas, por outro lado, Chevalier diz que “se considerarmos a água como a pureza original, a lama se apresenta como processo involutivo, um início de degradação” (idem, pg.554). A água passa a ser uma água contaminada, corrompida pela terra. De forma simbólica, todo o potencial de evolução e de degradação, contidos pela barragem, foram liberados violentamente, levando à morte centenas de pessoas, além de incontáveis animais, partes da floresta e dos rios. Entretanto, ocorreu, também e simultaneamente à essa devastação, o aparecimento de incontáveis seres humanos anônimos, buscando a vida incansavelmente e lutando por ela em meio ao caos, em uma demonstração de profunda solidariedade, uma das faces mais delicadas de Eros.

Apesar da nossa humanidade ser, de certa forma, definida pela nossa mortalidade, a morte é um tabu, algo que assombra. O filósofo Jean Yves Leloup observa que antropólogos e etnólogos, quando estudam a origem e evolução do cosmos, percebem a presença do ser humano em sítios arqueológicos a partir de seus rituais funerários. É interessante notar que a vida humana seja reconhecida a partir da morte, como se “ocupar do ser [humano] como mortal fosse o sinal da presença e do nascimento da humanidade” (LELOUP, 2011, pg.13). Então, se a morte é algo inerente à nossa humanidade, por que ainda é tão chocante especialmente na civilização ocidental? Por que não encaramos esse evento de forma mais natural ou menos traumática?

Uma resposta possível para esta pergunta pode ser dada ao analisarmos o espírito do nosso tempo, onde impera o narcisismo e a negação da finitude da vida. Ariès define bem esta questão, quando coloca que “Tecnicamente, admitimos que podemos morrer, fazemos seguros de vida para preservar os nossos da miséria. Mas, realmente no fundo de nós mesmos, sentimo-nos não mortais” (ARIÈS, Phillip, 2012, pg. 100).

A morte em massa, como a que ocorreu em Brumadinho – algo que só se vê em guerras, desastres aéreos ou catástrofes -, é ainda mais impactante, pois nos remete a algo não natural.

O advento da morte, mesmo que seguindo o curso do envelhecimento, geralmente causa desconforto e grande sofrimento. Existe um dito popular que diz que para morrer basta estar vivo, e embora haja aí grande sabedoria, o fato de as pessoas saberem dessa verdade fatal que a todos aguarda em algum momento da existência, não significa que estejam preparadas para lidar com o fim da vida.

Portanto, a morte do outro tende a suscitar angústias e medo, por trazer a lembrança da própria mortalidade de cada um, ao confrontar o indivíduo com o ponto final inexorável de sua existência, causando grande assombro!

Leila Cristina Montanha

Membro Analista Junguiana em Formação pelo IJEP.

Referências

ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente. ed. Nova Fronteira, 2012 (Saraiva de Bolso)

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega vol. 1. Ed. Vozes, 1987

CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 27ª ed. José Olympio, 2015

JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013

LELOUP, Jean Yves.  Além da Luz e da Sombra, ed. Vozes, 2011

RODRIGUES, Samara Megume. Eros e Tânatos: nossas porções de vida e morte. Roda de Psicanálise, 2013. Disponível em: <http://www.rodadepsicanalise.com.br/2013/11/eros-e-tanatos-nossas-porcoes-de-vida-e.html> Acesso em 06/03/19.

Leila Cristina Montanha

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