No dia 9 de outubro o cantor Roger Waters, ex-integrante da banda Pink Floyd, causou grande polêmica quando exibiu no telão, durante seu show em São Paulo, a hashtag #elenão. O público se dividiu entre aqueles que o apoiaram e os que repudiaram a ação. Em entrevista posterior, Waters explica que o momento em que a hashtag aparece não foi o correto. Ela deveria ter aparecido um pouco mais tarde no show, durante a música “Mother” no momento em que a letra diz “mother, should I trust the government?” (mãe, devo confiar no governo?).
O que Roger Waters sabe sobre o cenário político brasileiro? Talvez ele saiba algo, talvez muito. Talvez ele não saiba absolutamente nada. Mas, se tem algo que ele sabe (e eu acho que a maioria das pessoas que conhece o mínimo de sua história irá concordar), é se expressar através da arte. E, através de sua arte, Waters procura deixar claro que é um ativista a favor dos direitos humanos (que não é uma organização secreta que tem como objetivo tirar todos os criminosos da cadeia e perdoar seus delitos). Waters acredita que todos os seres humanos devem ter os mesmos direitos, e se você está lendo esse texto agora, imagino que você também esteja entre esses seres. Porém, se você acredita que alguns humanos devem ter mais direitos do que outros… bom, aí acho que nem vale a pena continuar a leitura.
O #elenão, de Roger Waters, representa mais do que uma posição política, e é por isso que tanta gente se sentiu incomodada com o fato dele mostrar essa hashtag em seus shows no Brasil. Sua música contém muito mais do que melodias bem estruturadas, contém, como toda expressão artística, conteúdo arquetípico, expressão do inconsciente. E, quando nos defrontamos diretamente com esses conteúdos, nossos mecanismos de defesa irão se manifestar negando tudo aquilo que toca nossos complexos. Se somos indivíduos comprometidos com a busca pelo processo de individuação, iremos, no mínimo, tentar refletir antes de tomar atitudes bruscas e impulsivas que neguem a integração desses conteúdos trazidos para a consciência. Se, por outro lado, não estamos preparados para tal reflexão, negamos e projetamos esses conteúdos no outro e, tomados pelo complexo, nos comportamos de maneira infantil e absurda.
Mas, talvez o erro de Roger Waters tenha sido exatamente empurrar esses conteúdos goela abaixo de pessoas que não estão preparadas para ouvir ou ver aquilo que realmente são em suas sombras. Essa é só minha opinião. Waters, na verdade, ficou contente com o barulho que fez, disse em entrevista à Folha de São Paulo, após o show, que ficou satisfeito em mexer com as pessoas e provocar discussão sobre o tema. Porém, não podemos esquecer que suas ideias estão em suas músicas. E assim, de maneira mais amena, diluídos em versos artísticos, talvez fique mais fácil de engolir em doses homeopáticas os conteúdos que negamos sobre nós mesmos.
Mas de que complexo estamos falando aqui? Qual é esse complexo que Roger Waters toca quando mostra o #elenão no telão de seus shows? É claro que qualquer análise aqui é minha e pode ser somente minha. Mas, como sempre, meu intuito não é fechar uma interpretação e sim ampliar os significados possíveis dos símbolos que se apresentam.
Em “Another brick in the wall”, a parte mais conhecida da música mostra uma letra que diz sobre crianças sendo reprimidas e machucadas fisicamente e psiquicamente por seus professores, que também são produto de um sistema sem sentido de vida que promove a robotização e a massificação do pensamento. Mas, o que chamou minha atenção da última vez que ouvi a música, antes de escrever esse texto, foi a primeira parte da letra:
“Papai voou pelo oceano
Deixando apenas uma lembrança
Um instantâneo no álbum da família
Papai, o que mais você deixou para mim?
Papai, o que você deixaria para mim?
No final, era só um tijolo no muro.
No final, tudo era apenas tijolos no muro.
(Daddys flown across the ocean
Leaving just a memory
Snapshot in the family album
Daddy what else did you leave for me?
Daddy, whatdja leave behind for me?!?
All in all it was just a brick in the wall.
All in all it was all just bricks in the wall.)
A criança e a sociedade descritos na história da música, e do filme, tem uma ferida paterna aberta. O pai os abandonou, deixa apenas uma lembrança e nada mais. Pink, o personagem principal de The Wall, se torna um ditador em sua fantasia. Anestesiado da realidade pelo uso de drogas, assume de forma simbólica, o papel do pai sumido, ausente, numa tentativa fútil de completar o vazio dessa ausência paterna. Faz isso ao mesmo tempo em que se anestesia da realidade através do uso dos entorpecentes. Vive a mercê dessa ferida. Age tomado pelo complexo paterno que diz que ele nunca é bom o suficiente, que sua vida não tem sentido real e que ele não passa de um simples tijolo num muro que separa, não só os outros, por representar internamente a cisão psíquica individual que vivemos.
Estamos vivendo algo parecido em nossa sociedade. Vamos lembrar que as expressões culturais refletem os sentimentos e ações do indivíduo. A maioria da massa projeta o preenchimento desse vazio, a cura dessa angústia na figura de um homem que diz claramente ser a favor da ditadura e do cerceamento de direitos humanos básicos. Alguém que diz que o Estatuto da Criança e do Adolescente deve ser rasgado e jogado na latrina, provavelmente deve ser porque sua infância também foi marcada por falta de amor paterno verdadeiro. Esse indivíduo oferece a falsa promessa de segurança e, acima de tudo, de controle. Nossa sociedade, de pessoas perdidas que vivem sem contato com o pai interno e sem a direção (sentido de vida), que deveria ser apontada por esse pai, projeta sua fantasia de controle nesse ser falso, montado por uma mídia mentirosa, que serve de depositário de uma promessa de libertação quando na verdade não passa de outro ser que nega sua sombra e a lança no outro, negando assim, também, a possibilidade do exercício da alteridade.
É preciso refletir e entender que esse pai perfeito não existe fora de nós mesmos. Mas, não podemos esperar muito de uma sociedade que não está preocupada em promover a reflexão e, num movimento contrário inclusive, compartilha notícias falsas numa atitude maquiavélica, onde os meios não importam, o que importa é o resultado alcançado.
Acho que além de apontar diretamente para essa ferida, Waters mostra acima de tudo, através de sua atitude, a contradição que existe na psique humana. Imagino que para o público, que ouviu as músicas de Waters e do Pink Floyd por anos, e que projetava nesses ídolos a salvação da alma por não conseguir, por si mesmo, alguma expressão artística, ver esse ídolo esfregar em sua cara sua sombra, aberta e escancarada de maneira pública, não seja nada fácil. No fim, acho que Waters tem alguma razão. Provocou a discussão, rompeu pensamentos, fez com que alguns indivíduos olhassem para dentro. Porém, acredito que isso não seja suficiente, porque não acredito que a maioria tenha prontidão para, realmente, entrar em contato com esses conteúdos internos.
Retomando ao fato da hashtag ter aparecido no momento “errado” do show, aproveito para apontar que é assim mesmo que um complexo se comporta! Aparece e toma conta da situação sem anunciar sua vinda. Sem que percebamos já estamos tomados e destituídos das decisões racionais do ego. O #elenão constelou durante o show, mostrando que o complexo está presente no inconsciente da massa; corroborando que a divisão psíquica do indivíduo reflete e é refletida pela cisão da sociedade.
Eu sei que no geral, essa é uma visão relativamente pessimista dos acontecimentos. Mas, não posso fingir que sinto ou enxergo algo diferente daquilo que está gritando dentro de mim. Me preocupo. Talvez, como disse Waldemar Magaldi Filho, coordenador do IJEP, sejam só as defesas desesperadas do patriarcado tentando evitar que essa fase passe, que as ideias de Jesus sobre liberdade, igualdade e fraternidade, tomem o lugar do capitalismo predatório e da busca pelo ter (em detrimento do ser). Talvez, isso tudo seja mesmo parte da evolução da consciência – habilidade tão nova no desenvolvimento das espécies – que irá evoluir após a crise. Mas, que é duro olhar e viver esse e nesse momento… ah, isso é!
Peço desculpas a Waters por pichar seu muro, embora acredite que ele não vá se importar.
*Jose Luiz Balestrini Junior, ser humano, psicólogo, especialista em psicologia junguiana pelo IJEP, analista junguiano em formação pelo IJEP e Sifu (mestre) de Kung Fu, e-mail: balestrini@lungfu.com.br
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