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O lugar da fantasia e dos desejos pessoais diante dos papéis e convenções num relacionamento íntimo

fantasias sexuais e psicologia

O que difere um relacionamento de amizade de um relacionamento íntimo como o casamento é o sexo. Muito se fala sobre sexo, algumas vezes de forma extremamente mecânica e cheio de regras, quase que um protocolo a se seguir, porém, resultando em julgamentos e ações de pouca intimidade de fato. 

E antes de desenvolver minha ideia sobre o tema, gostaria de fazer algumas pontuações importantes, para que os recortes dados neste artigo possam ser compreendidos por todos: ao usar a palavra ‘casamento’ também considerarei qualquer tipo de relacionamento íntimo estável. Como as referências citadas usam como ilustração de casal um homem e uma mulher, manterei pela norma, mas peço para que considerem também outras possibilidades de união, afinal, a dinâmica psíquica no relacionamento que abordarei neste texto é do ser humano, logo, respeita toda forma de amor.

Entre inúmeros fatores que podem atrapalhar a questão sexual num casamento como estresse, cobranças, autoestima, etc., pouco se fala sobre o papel da fantasia e dos desejos diante da dinâmica de um casal. E é este o ponto que eu quero trazer para reflexão neste artigo. Qual é o lugar da fantasia e dos desejos mais íntimos diante dos papéis e convenções que o casamento pode aflorar?

Segundo Jung, em um casamento encontramos a experiência individual de duas pessoas atuando concomitantemente com a parte que cabe a cada um no próprio relacionamento. Desta forma, devemos considerar e analisar a “psicologia do relacionamento e não apenas psicologia de um indivíduo isolado. É até difícil separar o que são partes individuais das partes que pertencem ao relacionamento”. (JUNG, 1991, 602s) Ou seja, além de olhar para os conteúdos que cada pessoa vivencia na relação, precisamos também notar como o próprio casamento vai se desenhando, qual forma ele toma, com quais características, necessidades e sombras. Pois, tomando o lugar de um ‘terceiro elemento’ atuando, o casamento em si também precisa ser contemplado na dinâmica da intimidade. 

E talvez seja este ponto que nos impacta tanto. O casamento até então como relacionamento ou união de pessoas que se amam e desejam compartilhar uma história em comum se torna uma instituição casamento, carregado de tradições, regras, exigências, carregado de conteúdos simbólicos que se sobrepõem a própria experiência compartilhada do casal. Podemos então considerar que o casamento em si vem acompanhado de um conteúdo arquetípico que acaba influenciando a psique individual. Jung cita que:

(…) todos nós somos casados assim, de acordo com antiquíssimas regras, ideias consagradas, tabus, etc. O casamento é um sacramento com leis irrevogáveis; devemos criticar os costumes, não as pessoas individualmente. (JUNG, 1991, 91)  

Por mais que o casamento tenha uma influência arquetípica, “em períodos históricos diferentes, casamento e família também tiveram significados diferentes. Todas as instituições sociais, inclusive casamento e família, estão continuamente se modificando”. (GUGGENBUHL-CRAIG, 1980, p.21) Agora, é curioso como mesmo tendo muitas possibilidades de reescrever a história desta vivência, continuamos olhando para o casamento como um grande sacrifício que exige dos parceiros dedicação e confronto constante diante dos anseios pessoais e também coletivos do casal. E de fato, é algo inerente ao casamento a constante reavaliação, entrega e ponderação entre os parceiros que desejam usar esta experiência como uma oportunidade de autoconhecimento e ampliação da consciência. Como tudo na nossa vida, a experiência do casamento também é um grande paradoxo. 

Para que se tenha uma troca saudável entre os parceiros é preciso que duas pessoas inteiras – e não perfeitas, vale lembrar – estejam disponíveis para a relação. Quando o casamento como uma instituição se torna maior ou mais importante do que a vivência em si, perdemos a qualidade do relacionamento e, consequentemente, a qualidade da sexualidade entre o casal. 

Da mesma forma, quando os conteúdos individuais são deixados de lado para vivenciar apenas os protocolos da relação, o casal acaba priorizando os papéis e as funções e, como Jung explica, “(…) A vontade própria que mantém o “eu” é rompida, a mulher torna-se mãe, o homem torna-se pai e assim ambos são privados da liberdade e transformados em instrumentos da vida que continua. (JUNG, 2013, §330). Quando isto acontece, a sexualidade é fortemente prejudicada e consequentemente, a espontaneidade dos parceiros em compartilhar todos os desejos íntimos se enfraquece, isso quando não se perde totalmente no contexto das funções. 

Importante também diferenciar sexualidade do sexo. Tecnicamente falando, sexualidade e genitalidade devem ser olhados como algo distinto. Nem sempre o casal que tem uma prática sexual ativa tem uma sexualidade saudável, que garante conexão, prazer, intimidade e troca entre os parceiros. Quando os papéis se tornam maiores do que as individualidades num casamento, percebemos primeiramente o enfraquecimento da sexualidade com consequente perda na qualidade e prazer no ato sexual. 

Neste sentido, como podemos então entender a sexualidade? Sua atuação dentro de um relacionamento íntimo é muito mais ampla, “implica necessariamente o envolvimento de quatro dimensões: afetividade, emoção, comunicação e prazer” (NORONHA, LOPES e MONTGOMERY, 1993, p.48)

O sexo enquanto experiência natural e cultural se transformou ao longo dos anos em sexualidade, ou seja, foi capaz de assumir qualidades e significados além do ato sexual e da penetração, como também na parte emocional, afetiva, social, erótica, e se resgatou seu caráter espiritual. 

(…) o sexual não é redutível ao genital. Assim, sexualidade não designa apenas as atividades e o prazer que dependem do funcionamento do aparelho genital, mas envolve toda série de excitações e de atividades presentes desde a infância, que proporcionam prazer irredutível à satisfação de uma necessidade fisiológica fundamental (como respiração, fome) e que estão, a título de componentes, na chamada forma normal do amor sexual (TEDESCO e CURY, 2007, p.28)

É no âmbito da sexualidade que o desejo e admiração entre o casal se tornam evidentes pois fazem parte da manutenção da libido sexual, do autoconhecimento e do jogo erótico de sedução dos parceiros. Quando o casal se perde nos papéis e convenções, as funções acabam tomando o lugar do erótico, tão vital para a exploração e cumplicidade no relacionamento. É comum vermos queixas que ao longo dos anos o casal perde o toque, o beijo, o olhar para o outro e também para si próprio. A sexualidade afetiva acaba se tornando também uma função, até mesmo no ato sexual; em muitos casos com mais obrigações do que prazer. 

A fusão sexual expressa a ponte que une, em nós, todas as incompatibilidades e oposições predominantes. Até certo ponto, o homem e a mulher completam um ao outro, e até certo ponto não estão, de forma alguma, sincronizados um ao outro. No ato de amor, toda polaridade e fragmentação do ser é superada. Aí está seu fascínio (…) O ato de amor é, acima de tudo, muito mais que uma expressão de relacionamento pessoal entre um certo homem e uma certa mulher. É um símbolo que vai além do relacionamento pessoal. (GUGGENBUHL-CRAIG, 1980, p.103)

Se pensarmos que o sexo é algo natural e ligado aos nossos instintos, o que nos desperta prazer e desejo é também algo ligado a individualidade de cada um. A variedade das fantasias e vivências sexuais são tão múltiplas quanto a variedade psíquica. No universo das fantasias podemos olhar para nós como um outro, podemos nos experimentar em diferentes peles e situações, podemos, inclusive, nos aproximar de possibilidades que não necessariamente bancaríamos (ou precisaríamos) viver no mundo concreto.

A sexualidade entendida como uma forma de relacionamento interpessoal entre um homem e uma mulher também não abrange a totalidade do fenômeno. A maioria das fantasias sexuais são vividas independentemente do relacionamento humano; estão ligadas às pessoas com as quais dificilmente se pode ter qualquer relacionamento ou com quem um relacionamento seria impossível (GUGGENBUHL-CRAIG, 1980, p.91)

Se olharmos para as fantasias como algo vivo e dinâmico da nossa intimidade, conseguimos compreender tantos outros elementos simbólicos que nos afetam e também influenciam nossas relações. Ao invés de vivenciarmos esses desejos como algo sombrio, poderíamos viver ou ao menos olhar para esses aspectos como parte da nossa totalidade psíquica. No livro “O casamento está morto. Viva o casamento!” Guggenbuhl-Craig propõe o exercício de olharmos para a sexualidade e fantasias como parte do processo de individuação, pois, sendo também essencial para o relacionamento íntimo, ajudaria os próprios parceiros a lidar com as questões não olhadas na psique. Se uma das tarefas do processo de individuação é trazer para a consciência parte dos conteúdos da sombra – tanto pessoal quanto coletiva e também arquetípica -, as fantasias seriam também porta de acesso a esses conteúdos, e talvez por isto, as pessoas tenham tanto temor em entrar em contato com seus desejos íntimos.

A individuação necessita de símbolos vivos. Mas onde, hoje em dia, encontramos símbolos vivos atuantes? Símbolos que sejam tão vivos e efetivos como os Deuses da antiga Grécia ou do processo alquímico? Exatamente neste ponto um novo entendimento da sexualidade se nos revela. Ela não é idêntica à reprodução e seu significado não é exaurido nas relações humanas ou na experiência do prazer. A sexualidade, com todas as suas variações, pode ser entendida como uma fantasia de individuação, uma fantasia cujos símbolos são tão vivos e tão efetivos que podem até mesmo influenciar nossa psicologia. E, desta forma, os símbolos não são propriedade exclusiva de uma elite acadêmica, mas de todas as pessoas. (GUGGENBUHL-CRAIG, 1980, p.94) 

Ainda explorando esta ideia, o autor destaca sobre a sexualidade dentro de um relacionamento íntimo “(…) este poderoso acontecimento no qual o homem e a mulher se tornam um, física e psicologicamente, deve ser entendido como um símbolo vivo do mysterium coniunctionis, a meta do caminho da individuação”. (p. 103) E, sendo um símbolo vivo, nos convida periodicamente a confrontar com nossos conteúdos inconscientes, inclusive nos dando oportunidades de entrarmos em contato com a nossa ânima/ânimus: 

 Quais são as possibilidades para um homem de chegar a um acordo com o feminino? Uma possibilidade pode estar no relacionamento com uma mulher, como por exemplo, num casamento; outra pode consistir em fantasias sexuais, incluindo as homossexuais, – onde o feminino pode ser experimentado com outro homem cuja meta não é reprodução, relacionamento humano ou prazer, mas a confrontação com a anima, com o feminino. Outra possibilidade existe num relacionamento para um ajustamento para a mulher. (GUGGENBUHL-CRAIG, 1980, p.94) 

Quando nos permitimos ampliar o olhar para os nossos desejos e encontrar no casamento um campo seguro, livre e protegido para compartilhar nossas conteúdos psíquicos, perdemos o receio de mostrar todas as nossas fantasias, até porque será um acordo entre o casal colocá-las em prática ou então apenas poder olhar e imaginá-las. Caberá ao casal delimitar a atuação desses desejos na prática sexual, reforçando a cumplicidade na exposição desses conteúdos. Quando o casal atinge este estágio de intimidade, sofre menos pressão do coletivo refletido nas condutas da sociedade e também nos questionamentos sobre a moralidade.  

(…) Ainda assim, existem casais cuja sexualidade é constringida por certas pressões para a normalidade. Cada parceiro permite-se revelar ao outro apenas dentro de certos limites, e cada um se contém naquilo que acredita não ser permitido. Por conseguinte, raramente um marido e uma mulher satisfazem completamente um ao outro. Ao invés de cada um encorajar o outro a expressar e relatar suas fantasias sexuais mais secretas e peculiares, um certo medo de anormalidade domina a cena, até mesmo uma tendência à condenação moralista de qualquer coisa que não pertença, incondicionalmente, a um dos parceiros. (GUGGENBUHL-CRAIG, 1980, p.112)

Evoluímos tanto como sociedade, mas ainda somos impactados por preceitos impostos ao longo das gerações. Ainda temos medo de olhar para o nosso universo interior e descobrir nossos segredos. Receamos sermos julgados pelos outros, tendo nossos valores roubados por meros preconceitos. Aceitamos os papéis, mas esquecemos de quem dá vida a esses papéis. Nos distanciamos dos nossos parceiros justamente quando eles seriam os melhores companheiros para a troca das nossas verdades. Aqui, não importa o quão conservador ou não cada pessoa é. O que importa é o quanto nos sentimos livres para nos olharmos como uma totalidade e, com isso, nos conhecermos cada vez mais dentro dos universos pessoais e coletivos. O quanto permitimos que o nosso relacionamento se aprofunde, evitando relações rasas e falsas. 

Fica claro que o casamento como oportunidade de autoconhecimento não é fácil. A confrontação com a sombra no casamento nunca termina, é preciso encarar nossos céus e infernos juntamente com os do parceiro; tanto psicologicamente quanto no mundo das fantasias. Mas é somente cuidando da forma como esta dinâmica é vivenciada que se torna possível o fortalecimento dos parceiros como casal e também o amadurecimento psíquico individual. 

Assim como não é possível esgotar os conteúdos inconscientes da psique, também não podemos nos enganar que todas, extremamente todas as fantasias e todos os desejos serão compartilhados com o parceiro. Por mais que a troca seja essencial para um relacionamento, é preciso também sempre cuidar para que uma parte da individualidade seja preservada. Isso é extremamente saudável, afinal, só conseguimos evoluir em uma relação se a nossa condição individual for mantida, com seus conteúdos positivos e negativos. 

Quando as individualidades se abrem para o relacionamento, transformam a experiência do casamento em um agente ativo e atuante do processo de individuação, com energia suficiente para a transformação individual e do próprio relacionamento em si. 

Que saibamos dar voz ao nosso inconsciente também através da vida dos desejos e fantasias, proporcionando um relacionamento maduro e uma sexualidade saudável. Que saibamos usufruir deste processo com leveza, alegria e diversão, já que o mundo dos desejos e fantasias nos permite uma boa dose de humor. Olhar para essas questões com naturalidade é extremamente sadio. Isso é respeitar nossos limites e também respeitar nosso parceiro também em sua intimidade. Isso nos liberta e nos protege. Isso nos transforma. 

Marcella Helena Ferreira

Analista Junguiana em formação, com especialização em Psicossomática e Terapeuta Ayurveda

marcellahlferreira@gmail.com

Maria Cristina Guarnieri

Analista Didata responsável

Referências Bibliográficas

GUGGENBUHL-CRAIG Adolf, O casamento está morto. Viva o casamento!,2d. São Paulo, SP: Símbolo, 1980.

JUNG Carl Gustav; O desenvolvimento da personalidade, 14 ed. Vol.17. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013a

____________ TRAUMANALYSE. Segundo anotações dos seminários de 1928-1930. Editado por William McGuire; traduzido do inglês por Brigitte Stein. Olten/Freiburg i. Br. 1991.

NORONHA, Decio Teixeira, Gerson Pereira LOPES, e Malcom MONTGOMERY. Tocoginecologia Psicossomática. São Paulo, SP: Almed, 1993

TEDESCO, J. Julio A., e Alexandre Faisal CURY. Ginecologia Psicossomática. São Paulo: Atheneu, 2007

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