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O mundo moderno e a falta de tempo

O mundo moderno e a falta de tempo

O mundo moderno e a falta de tempo

Há não muito tempo atrás – para ser mais preciso há trinta anos – quando a minha maior preocupação era apenas a escola, as férias de julho e a chegada do mês de dezembro, porque além dos presentes de natal eu teria muito tempo para brincar, esses intervalos entre um período de férias e o final do ano pareciam levar uma eternidade para acontecer. As férias de julho nunca chegavam, mas quando eram anunciados os vinte e poucos dias duravam quase dois meses, a chegada do final de ano e o fim do ano letivo pareciam ter muito mais que dois meses para acabar. Essa percepção que eu tinha do mundo quando criança foi gradativamente diminuindo e hoje eu tenho a mesma sensação que muitas pessoas dizem ter – o tempo está passando muito mais rápido. 

A cada dia parece que o ser humano tem uma percepção mais nítida da escassez do tempo. Quem nunca brincou pedindo um tempo além das 24 horas normais de um dia? O mundo moderno e as condições a que nos submetemos parecem piorar mais ainda essa relação. Estamos sempre em busca de conseguir mais tempo, aplicativos que nos ajudam a diminuir o tempo no trânsito, cursos que prometem melhorar nossa administração e organização do tempo, busca por soluções mágicas que resolvam nossos problemas emocionais de forma rápida e sem muito esforço. Não é raro alguém chegar no consultório fazendo as seguintes perguntas: 

Quanto tempo leva a terapia?

Quantas sessões precisam para resolver o meu problema?

Mas, por que estamos vivenciando esse fenômeno? Por que parece que as vinte e quatro horas do dia não são mais suficientes e por que antigamente a nossa relação com o tempo parecia acontecer de outra forma? Essas são as perguntas que me provocaram e me fizeram refletir sobre a nossa relação com o tempo na contemporaneidade.

Uma das coisas mais brilhantes que a psicologia junguiana nos ofereceu é a possibilidade de usar as nossas experiências como meio de observações e pesquisa. Por isso, tudo que nos acontece também pode ser um caminho para o estudo junguiano. Pode parecer estranho o caminho que vou tomar para tentar explicar essa falta de tempo, porém ele pode ser uma possibilidade de investigação. 

Por volta dos meus 13 anos, quando eu teria que deixar de morar com meus avós, porque haviam decidido que seria melhor deixar a cidade grande, fiz uma promessa para mim mesmo – Um dia voltaria a morar naquele mesmo lugar. Depois de 17 anos a promessa foi cumprida e eu voltei a morar naquele lugar tão importante para minha infância. Hoje, quando me recordo deste momento, algo chama a minha atenção, sempre que estava caminhando pelo bairro os vizinhos pareciam ter a mesma cara do tempo da promessa, eu tinha a nítida impressão de que eles não tinham envelhecido nada, parecia que ali o tempo não havia passado. Isso ficou apenas como uma impressão equivocada e nada mais, porém Jung parece fazer a mesma observação no livro memórias, sonhos, reflexões.

Refletindo sobre a vida depois da morte Jung associou a nossa relação de espaço/tempo de um lado com a relação consciência/inconsciente de outro.  Para ele não havia como contestar que a existência psíquica se caracterizava por sua relatividade com o espaço e o tempo, contudo, quando nos “afastamos da consciência, esta relatividade parece se elevar até ao não espacial e a uma intemporalidade absoluta” (Jung, 2015a, p.302) e fez a seguinte observação:

As figuras do inconsciente são também “ininformadas” e têm necessidade do homem ou do contato com a consciência para adquirir o saber. Quando comecei a me ocupar com o inconsciente, as “figuras imaginárias” de Salomé e de Elias desempenharam um grande papel.
Em seguida passaram a um segundo plano para reaparecer cerca de dois anos mais tarde. Para meu grande espanto elas não tinham sofrido a menor mudança; falavam e se comportavam como se nesse ínterim absolutamente nada tivesse ocorrido. Entretanto, os acontecimentos mais inauditos tinham-se desenrolado em minha vida. Foi-me necessário, por assim dizer, recomeçar desde o início para lhes explicar e narrar tudo o que se passara. De início fiquei bastante espantado. Só mais tarde compreendia o que tinha acontecido: As figuras de Salomé e Elias haviam nesse meio-tempo soçobrado no inconsciente e em si próprias – poder-se ai também dizer, fora do tempo. Elas ficaram sem contato com o eu e suas circunstâncias variáveis e “ignoravam” por essa razão o que se passará no mundo da consciência. (Jung, 2015, p.303s)

O analista junguiano Donald kalsched (2013) em seu trabalho que analisa as defesas que se levantam diante de um episódio traumático, nos oferece um entendimento interessante a respeito destes acontecimentos psíquicos. Kalsched explica que essa parte da psique que sofreu o trauma é separada do restante da psique que continua seu desenvolvimento enquanto a parte dissociada é paralisada no tempo. É justamente por esse mecanismo de defesa da psique, que na tentativa de proteger a integridade do eu consciente, faz com que os episódios do passado sejam vivenciados equivocadamente através de projeções e transferências de sentimentos no momento presente, apesar das defesas, o inconsciente anseia por se tornar conhecido.

Assim como aqueles vizinhos que pareciam congelados no tempo, as percepções do próprio Jung a respeito dos conteúdos, que não estavam em contato com a consciência e não tinham conhecimento dos acontecimentos atuais, foram percebidos congelados no passado. Com isso, com o trabalho de Kalsched sobre o trauma, talvez possamos tomar como possibilidade que a falta de tempo que estamos vivenciando hoje seria um excesso de consciência em detrimento da falta de contato com o inconsciente, e consequentemente consigo mesmo. Porém isto nos levanta outro problema. 

Assim como o crescimento e o amadurecimento precisam de tempo para acontecer, o processo de cura também precisa, mas este só pode acontecer no tempo presente diante do confronto consigo mesmo. E este estar presente é um problema antigo que Blaise Pascal já refletia em outra época:

Não ficamos nunca no tempo presente. Antecipamos o futuro como demasiado lento para vir, como para apressar o seu curso; recordamos o passado, para pará-lo, como demasiado pronto: tão imprudentes que erramos nos tempos que não são nossos e não pensamos só no que nos pertence; e tão vãos que sonhamos com os que não são mais nada e evitamos sem reflexão o único que subsiste. É que o presente de ordinário nos fere. Ocultamo-lo à nossa vista, porque nos aflige; e, se nos é agradável, arrependemo-nos de vê-lo escapar. Tratamos de sustentá-lo pelo futuro, e pensamos em dispor as coisas que não estão em nosso poder para um tempo que não temos nenhuma certeza de alcançar. (Pascal, p. 88)

Talvez a falta de tempo tão presente no mundo contemporâneo tenha se tornado a nossa melhor desculpa para evitar a relação entre aquilo que se encontra fora no mundo exterior e aquilo que se encontra em nosso interior. 

Acredito que a relação que a humanidade tinha com o tempo em um passado não muito distante tem uma relação com a vida simbólica muito mais rica, nossa consciência não era estimulada o tempo inteiro. Jung quando construiu a torre de Bollingen estava atrás de uma vida mais primitiva, propositalmente ele se colocou ausente de luz elétrica e qualquer facilidade que o mundo moderno pudesse lhe oferecer a fim de possibilitar mais contato com o inconsciente. Jung em suas viagens fora da Europa, visitando povos primitivos, percebeu que não havia muita diferença entre o mundo interno e externo, a vida tinha total relação com a natureza, cada época do ano tinha um significado próprio, cada estação do ano era vivenciada intimamente através de ritualísticas que marcavam cada passagem em direção ao novo. 

Não podemos esquecer que é no inconsciente, neste mundo interior que as novas possibilidades podem surgir, que a criatividade tem seu ponto de partida, assim como as potencialidades de autorrealização. 

De nada adianta uma consciência que se volta apenas para fora, para um autodesenvolvimento que tenta resolver todos os problemas da alma de maneira rápida e sem muito esforço. A pergunta a respeito do tempo de terapia hoje pode ter uma resposta diferente, porque ele está relacionado com a capacidade do indivíduo de lidar consigo mesmo e com o confronto com o inconsciente. E conforme Verena diz:

Podemos até ter as nossas agendas, e nossos compromissos parecem aumentar em número com o passar do tempo e determinar cada vez mais a estrutura do nosso dia a dia; mas existem muitas coisas que não se importam com a nossa agenda. Não posso dizer à minha árvore o quanto ela deve crescer neste ano. Posso apenas desejá-la. (Kast, 2016, p.12)

Talvez o que esteja faltando neste mundo moderno não seja necessariamente o tempo, mas sim a disposição para lidar com nós mesmos. Todas as facilidades que o mundo moderno nos oferece tem nos transformado em máquinas sem nenhum tipo de experiência profunda onde não temos nem mesmo consciência da própria consciência como diz o Prof. Waldemar Magaldi.

Daniel Gomes – Analista em formação pelo IJEP

Waldemar Magaldi – Analista Didata

Bibliografia

Jung, C. G. (2015). Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Kalsched, Donald (2013). O mundo interior do Trauma – Defesas arquetípicas do espírito pessoal. São Paulo: Ed. Paulus.

Pascal, Blaise. Pensamentos – Edição eletrônica: Ed Ridendo Castigat Mores.

Kast, Verena (2016). A alma precisa de tempo. Petrópolis: Ed Vozes.

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