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Os impactos dos algoritmos no trabalho do psicoterapeuta junguiano

o ensaio tece reflexões acerca dos possíveis impactos da “infocracia”, temo usado por Byung-Chul Han para designar a dinâmica de controle e poder por meio das redes sociais, com pressões por exposição sobre os profissionais terapeutas, tendo em vista a atual perspectiva sobre o que seria “sucesso” pela população em geral, além da pressão por se adequarem aos algoritmos, que exigem, cada vez mais, conteúdos rasos, práticos, os mais genéricos possíveis, prezando pela quantidade em detrimento da qualidade, o que pode ir exatamente na contramão da individualidade necessária no processo de individuação apresentado por Carl Gustav Jung na psicologia analítica.

Resumo: O ensaio tece reflexões acerca dos possíveis impactos da “infocracia”, temo usado por Byung-Chul Han para designar a dinâmica de controle e poder por meio das redes sociais, com pressões por exposição sobre os profissionais terapeutas, tendo em vista a atual perspectiva sobre o que seria “sucesso” pela população em geral, além da pressão por se adequarem aos algoritmos, que exigem, cada vez mais, conteúdos rasos, práticos, os mais genéricos possíveis, prezando pela quantidade em detrimento da qualidade, o que pode ir exatamente na contramão da individualidade necessária no processo de individuação apresentado por Carl Gustav Jung na psicologia analítica.

O filósofo e ensaísta sul-coreano Byung-Chul Han usa o termo “infocracia” para definir o sistema de controle e poder ao qual estamos submetidos hoje, com o vasto uso das redes sociais em todas as áreas da sociedade contemporânea.

A informação, segundo ele, domina as esferas social, política e pessoal, e facilmente se torna ferramenta de controle e manipulação.

Como exemplo disso, podemos observar as forças atuais, dentro da esfera política, das chamadas Fake News nos jogos políticos durante as eleições por todo o globo terrestre. Mais precisamente, pode-se verificar, por exemplo, o papel do X (antigo Twitter) nas últimas eleições (2024) americanas, onde Trump foi eleito presidente dos EUA.

O dono do X, o bilionário Elon Musk, defensor da liberdade de expressão irrestrita, foi apoiador declarado do candidato republicano — o comitê criado por ele gastou mais de 200 milhões de dólares para ajudar a eleger Trump (G1, 2024) —, e sua rede social, segundo fontes jornalísticas, foi uma grande, senão a maior ferramenta de pulverização de Fake News que, de alguma maneira, tinham como objetivo ajudar aquele candidato a ganhar votos.

Alguns usuários do X (antigo Twitter) que passam os dias compartilhando conteúdo que inclui desinformação eleitoral, imagens geradas por inteligência artificial (IA) e teorias de conspiração infundadas dizem que estão ganhando “milhares de dólares” pela plataforma de rede social.

A BBC identificou redes de dezenas de contas que compartilham o conteúdo umas das outras várias vezes ao dia — incluindo uma mistura de material verdadeiro, infundado, falso e forjado — para aumentar seu alcance e, portanto, a receita na plataforma

(BBC, 2024).

 A “infocracia” substitui o poder tradicional, ainda segundo o mesmo autor, pela influência e direcionamento da atenção, muitas vezes sutis, porém de eficácia incontestável, e, como consequência, do comportamento dos indivíduos por meio de um fluxo massivo de dados.

O poder nas redes sociais é exercido por algoritmos sem alma, que, indo na contramão da autonomia individual de maneira nunca observada — muito mais forte do que, por exemplo, a televisão era capaz de fazer poucas décadas atrás —, “decidem” o que as pessoas consomem, leem e até mesmo o que pensam sobre determinados assuntos, sem, ao menos, notarem que estão sendo manipuladas.

E por que estou escrevendo sobre isso hoje? Porque é uma ilusão pensar que esse fenômeno não nos atinge, psicoterapeutas e analistas junguianos. Primeiramente porque, cada vez mais, para conseguir se lançar ou construir uma carreira minimamente segura — em termos de número de clientes e entrada financeira — nos atendimentos clínicos, os psicoterapeutas recém-formados, em sua grande maioria, acabam compreendendo que, hoje, muitas pessoas escolhem os profissionais da área pelo que veem nas redes sociais, que estão funcionando como substitutos modernos dos currículos de outrora. Na prática, isso significa quase uma imposição para que esses profissionais se adequem à dinâmica das redes sociais na esperança de captar clientes.

Em segundo lugar, podemos pensar que esse fenômeno do controle exercido em massa pelos algoritmos, de certa maneira, como o próprio Byung-Chul Han afirma, enfraquece o espírito crítico e a reflexão dos indivíduos.

As pessoas deixam de ser ativas dentro de sua própria jornada, construindo opiniões baseadas em críticas e valores internos, e passam a ser apenas consumidores passivos de informações selecionadas e filtradas por inteligências artificiais que trabalham de acordo com os interesses de empresas de tecnologia e de publicidade.

A meu ver, a infocracia, tal qual como definida por Byung-Chul Han, pode interferir profundamente no trabalho dos psicoterapeutas quando a relevância profissional passa a ser medida pela popularidade do profissional nas redes, forçando uma dinâmica de “obrigação” de exposição em redes sociais que, em sua maioria, senão todas, são ambientes que priorizam a visibilidade e o afeto acima do conteúdo em si.

Em outras palavras, os conteúdos que têm o poder de causar afetos nos usuários, independentemente de serem verdadeiros ou realmente úteis, são entregues para cada vez mais usuários, enquanto conteúdos profundos, verdadeiros, que poderiam ser úteis, mas que não possuem esse apelo emocional como foco, são abandonados e não são entregues nem para os próprios seguidores dos perfis que os produzem, fazendo pressão para que esses mesmos profissionais acabem por se adaptar e se alinhar a essa estrutura que favorece o engajamento emocional ao invés de um conteúdo devidamente embasado e teoricamente válido, sob risco de não conseguirem alcançar clientes em potencial.

Ao tentarem se tornar ou se manter atrativos para o algoritmo, os profissionais da psicoterapia muitas vezes se veem obrigados a produzir cada vez mais materiais rasos, mas que afetem o público de maneira rápida, priorizando posts que gerem engajamento afetivo, como compartilhamentos, comentários e curtidas, em vez de reflexões profundas. Consequentemente, cada vez mais pautando o espírito da época, ao invés do espírito das profundezas.

A infocracia, portanto, nos traz um grande desafio, no sentido de os terapeutas imersos no mundo online precisarem encontrar algum ponto de equilíbrio entre a necessária presença nas redes sociais e a necessidade de seguir um caminho ético e substancial, que realmente esteja em consonância com os desejos do Self e do processo de individuação.

Vale ressaltar, ainda, que Carl Gustav Jung nos diz, em sua obra indispensável para o analista junguiano, A prática da psicoterapia, que “o individual não importa perante o genérico, e o genérico não importa perante o individual” (JUNG, 2013, p. 15).

Essa é uma tensão fundamental que deve ser analisada dentro desse contexto das redes sociais, já que a referida pressão para produzir conteúdos que gerem engajamento afetivo em muitas pessoas também significa a produção de conteúdos rasos e genéricos, padronizados e de fácil consumo.

Esse tipo de conteúdo normalmente se afasta das necessidades únicas do individual que o consome e, ao mesmo tempo, cria uma ilusão de fórmula única que vá servir como resposta aos questionamentos internos existentes. Produzindo um distanciamento e uma desconexão entre o que deveria ser a prática da psicoterapia junguiana e o que é consumido pelos seguidores nas redes.

Em outras palavras, os conteúdos genéricos, produzidos com intuito de gerarem engajamento emocional, que garantem reações rápidas, não capturam a profundidade necessária para se trabalhar a individualidade de quem os consome, afinal:

O sapato que serve num pé aperta no outro, e não existe uma receita de vida válida para todo mundo. Cada qual tem sua forma de vida dentro de si, sua forma irracional, que não pode ser suplantada por outra qualquer.”

(JUNG, 2013, p. 53)

Assim, por exemplo, o psicoterapeuta ou analista, que publica conselhos amplos e acessíveis, pode atrair uma massa de seguidores, mas corre o risco de, ao ver as pessoas de maneira homogênea em vez de indivíduos com jornadas específicas, trair e negligenciar a dimensão profunda e singular dessas pessoas, tão defendida por Jung e tão necessária para o processo de individuação.

Outro ponto que acho importante mencionar para reflexão é o fato de os algoritmos acabarem forçando uma identificação do terapeuta com uma persona válida para o engajamento buscado — o terapeuta engraçado, o provocativo, o que fala sobre só determinado tema, o que age de determinada maneira, etc. — em detrimento da personalidade desse terapeuta, com todas as nuances e instabilidades inerentes ao humano, que, na prática clínica, se faz necessário no processo dialético proposto por Jung.

Assim, nesse contexto, o terapeuta acaba por se desconectar de sua própria profundidade única e autêntica para performar uma identidade aprovada pelo algoritmo e, com isso, manter o alcance de sua exposição, e corre o risco, caso não esteja atento e confronte continuamente essa possibilidade, de levar essa identificação com a “persona de sucesso na perspectiva do algoritmo” para o atendimento analítico.

Ao conversar com colegas sobre esse assunto, não é incomum receber como resposta ricas críticas a essa dinâmica de adaptação às redes sociais, mas que, de alguma maneira, parecerem falar sempre sobre o outro, somente sobre o outro, fazendo de nós mesmos estandartes de nobreza analítica, impecáveis e preenchidos apenas com a mais pura luz de cura, que jamais caímos ou cairíamos nas armadilhas do mundo moderno.

Neste ponto, acho interessante trazer a provocadora perspectiva do analista junguiano Adolf Guggenbühl-Craig, em seu livro O Abuso do Poder na Psicoterapia, sobre as sombras que todo analista — assim como o médico, o sacerdote, dentre outros — carrega: a do charlatão e a do falso profeta (p, 27). Segundo ele, essas sombras nos acompanham permanentemente, e que ignorar isso nos faz vítimas fáceis delas.

Fazendo uma analogia entre a figura do analista e a figura do sacerdote (pp. 29-30), Guggenbühl-Craig nos provoca afirmando que o analista, de certa maneira, é reconhecido por seus clientes como uma espécie de sacerdote, que, de alguma maneira, possui um acesso privilegiado a “Deus” — inconsciente, Self — e, por isso, possui certezas salvadoras sobre os caminhos a serem seguidos por todos. Porém, ainda segundo ele, “O lado sombrio dessa nobre imagem do homem Deus é o hipócrita, aquele que prega não porque acredita, mas para ter influência e poder” (p. 29).

Podemos carregar essa provocação para o nosso trabalho, e que as redes sociais fazem um papel de igreja, onde as pessoas não mais se ajoelham, mas permanecem por horas de cabeça baixa, rolando barras de rolagem infinitas, buscando e absorvendo passivamente respostas que ajudem em seus caminhos, e oferecendo, para aqueles que apresentam essas respostas — mesmo sem acreditar verdadeiramente nelas — influência e poder.

Assim como no caso do médico e seus pacientes, com o clérigo também ocorre serem os membros de sua congregação os responsáveis involuntários pela ativação do irmão obscuro, pois exercem considerável pressão para que ele desempenhe o papel de hipócrita. A dúvida é companheira da fé. Mas ninguém  quer ouvi-la da boca de um sacerdote [analista] — as nossas já bastam. Assim, este acaba não tendo alternativa a não ser tornar-se hipócrita de quando em vez, escondendo suas próprias dúvidas e mascarando um momentâneo vazio interior com palavras eloquentes. Se seu caráter for fraco este poderá tornar-se um traço habitual.

(Guggenbühl-Craig, 2004, p. 29)

E, ainda:

Da mesma forma que o sacerdote, trabalhamos com nossa alma, nosso ser; os métodos, as técnicas e o aparato utilizados são secundários. Nós, nossa honestidade e autenticidade, nosso contato pessoal com o inconsciente e o irracional — são esses os nossos instrumentos. É grande a pressão que sofremos para apresentá-los melhores do que são; mas, nesse caso, tornamo-nos vítima da sombra do psicoterapeuta.

(Guggenbühl-Craig, 2004, pp. 32-33)

Talvez fosse mais fácil ter consciência e capacidade de confrontar essa pressão se ela viesse apenas dos indivíduos – já que as formações sérias tentam preparar os estudantes para isso -, mas a pressão dos algoritmos sobre todos, e em especial sobre aqueles profissionais que chegam às redes com suas carreiras ainda incipientes, buscando clientela para cumprir compromissos básicos de sobrevivência, é cruel, desalmada e ameaçadora.

Por isso, a meu ver, o algoritmo cria o paraíso perfeito para que o analista se identifique cegamente com a sombra do falso profeta e do charlatão — e, até onde sei, essa temática não faz parte de nenhuma formação de analistas.

Não é meu objetivo aqui levantar uma bandeira contra as redes sociais. Eu mesmo fui agraciado, no começo de minha carreira como terapeuta, pelos benefícios de uma ferramenta onde eu pude me expor e me apresentar para pessoas do mundo inteiro. Além disso, sei de inúmeros e incontáveis casos em que o genérico foi apenas uma porta de entrada para que o indivíduo buscasse uma jornada individual de psicoterapia. Porém, uma reflexão, a meu ver, se faz necessária no sentido de acompanhar e não perder o senso crítico em relação às mudanças que estão ocorrendo ao longo dos anos em relação aos algoritmos das redes sociais.

Barras de rolagem infinitas, conteúdos curtos e fáceis de compreender, que não estimulam avaliação crítica alguma sobre o que é mostrado, e manipulam a atenção dos indivíduos, estão cada vez mais presentes e, aparentemente, ainda não chegamos ao fundo do poço nessa questão.

E, pelos motivos explicados — mas sem exaurir o tema — acredito que se Carl Gustav Jung vivo fosse, provavelmente veria a pressão dos algoritmos, com seu poder de manipulação eficaz e sutil, como um obstáculo à jornada de individuação. Já que, no ambiente digital, muitas vezes a individualidade do terapeuta e de cada seguidor é substituída facilmente por um conteúdo padronizado que não promove o autoconhecimento real e, muitas vezes, apenas reforça padrões e complexos que deveriam ser confrontados.

E, se essa mesma dinâmica, de alguma maneira inconsciente, “contaminar” a clínica do terapeuta identificado com a persona de “sucesso” no online, ele tratará o individual como genérico, anulando a força do processo analítico.

Se, na qualidade de psicoterapeuta, eu me sentir como autoridade diante do paciente […] e tiver pretensão de saber algo sobre sua individualidade e fazer afirmações válidas a seu respeito, estarei demonstrando falta de espírito crítico, pois não estarei reconhecendo que não tenho condições de julgar a totalidade da personalidade que está lá à minha frente. Posso fazer declarações legítimas apenas a respeito do ser humano genérico, ou pelo menos relativamente genérico. Mas como tudo o que vive só é encontrado na forma individual, e visto que só posso afirmar sobre a individualidade de outrem o que encontro em minha própria individualidade, corro o risco ou de violentar o outro, ou de sucumbir por minha vez ao seu poder de persuasão. […] Tenho que optar necessariamente por um método dialético, que consiste em confrontar as averiguações mútuas. Mas isto só se torna possível se eu deixar ao outro a oportunidade de apresentar seu material o mais completamente possível, sem limitá-lo com meus pressupostos. […].

(JUNG, 2013, pp.15-16).

Membro Analista em formação: Leandro Scapellato

Analista didata: Dr. Waldemar Magaldi

Referências:

BBC. Como usuários do X ganham milhares de dólares espalhando fake News sobre eleição dos EUA. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/articles/c937q4p7g09o. Acesso em 12 nov. 2024.

G1. Comitê de Elon Musk gastou cerca de US$ 200 milhões de dólares para ajudar a eleger Trump, diz agência. Disponível em https://g1.globo.com/mundo/eleicoes-nos-eua/2024/noticia/2024/11/12/comite-de-elon-musk-gastou-cerca-de-us-200-milhoes-para-ajudar-a-eleger-trump-diz-agencia.ghtml. Acesso em 13 nov. 2024.

GUGGENBÜHL-CRAIG, Adolf. O abuso do poder na psicoterapia: e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2004.

HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. ed. Petrópolis: Vozes, 2022.

JUNG, Carl Gustav. A prática da psicoterapia. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

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