“…[Entre os gregos] médicos ilustres dizem a um paciente que chega com os olhos enfermos que não podem curar apenas seus olhos, mas que se desejam curar seus olhos, a cabeça deve ser tratada; e então, dizem novamente que pensar em se curar apenas a cabeça, sem curar também o resto do corpo, é o cúmulo da insensatez. E, assim, utilizam esses métodos no corpo inteiro e tentam tratar e curar, simultaneamente, o todo e suas partes
[Entretanto, os médicos da Trácia criticam esse procedimento dizendo que, até onde sabem, eles estão corretos, mas] que você não deve tentar curar os olhos sem curar a cabeça, ou curar a cabeça sem curar o corpo, nem deve tentar curar o corpo sem curar a alma, e esta… é a razão porque a cura de tantas doenças é desconhecida para os médicos de Hélade, porque eles ignoram o todo, que também deve ser estudado, pois as partes não podem ficar bem a não ser que o todo esteja bem”. – Platão, Chamides (Trad. de Jowett)
A cada semestre, ao iniciarmos as aulas dos cursos realizados IJEP- Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, costumamos apresentar a figura do Santuário de Epidauro, erguido em homenagem ao deus Asclépios, em grego ou Esculápio, em latim. Podemos afirmar o Epidauro e os cultos a Asclépios como precursores da medicina holística e das abordagens psicossomáticas, pois os tratamentos visavam cura não apenas física, mas também psíquica, social e espiritual. Desta forma, o ser humano era atendido em sua multidimensionalidade. E isto tem tudo a ver com a Psicologia Integrativa Transpessoal. Sigamos a evolução histórica.
As versões sobre o mito apontam Asclépios (Esculápio) como sendo filho do deus Apolo com a mortal Corônis. Teria nascido de cesariana após a morte de sua mãe, e sido criado pelo centauro Kyron, com quem prendeu o poder curativo das ervas e da cirurgia. Seu mito conta que adquiriu tão grande habilidade que podia trazer os mortos de volta à vida. Entre seus filhos encontra-se Higeia e Panaceia.
Nas áreas dos santuários erigidos em sua homenagem costuma ser encontrado um templo, uma fonte para purificação, locais para hospedagem dos doentes, termas, jardins cultivados, teatro, ginásio e biblioteca, pois se considerava que a cura representava um processo de transformação do corpo e do espírito.. Ao chegar no santuário de Esculápio o doente apresentava-se ao sacerdote, jejuava 3 dias, tomava banhos purificadores medicinais na fonte do santuário e oferecia um sacrifício, composto pela oferenda de mel, queijo ou figos. Preces, meditação, o canto de hinos sacros, exposição à luz do sol, caminhadas de pés descalços, uma dieta especial, abstinência de sexo e exercícios físicos também eram muitas vezes parte do ritual e do tratamento. Os sonhos também eram muito valorizados. Por isto, antes de dormir o doente se preparava para a enkoimesis, ou “incubação”, ou seja, a revelação do deus em sonhos. O sonho era então relatado aos sacerdotes, que interpretavam, complementavam as instruções de tratamento e indicavam o remédio e também as oferendas de agradecimento ao deus.
Os registros históricos referem curas surpreendentes, endireitando aleijados e restituindo a visão a cegos, a audição a surdos e a fala aos mudos, o que fez com que o número de santuários em varias cidades gregas e romanas chegasse a cerca de 200, incluindo Argos, Atenas, Cós, Pergamo, Roma, Tiberina, Corinto, etc. O culto ao deus sobreviveu durante a era helenística e imperial romana, convivendo com outras religiões e cultos, até cerca de 426AC, finalizando com a destruição da cidade sagrada da Argólida, onde ficava o Santuário de Epidauro, causada por terremotos.
Para Hipócrates (460AC- 370AC), considerado o pai da medicina, o estado de saúde seria a evidência de estado de equilíbrio entre as instâncias internas e o meio ambiente. Seu objetivo era o doente e não a doença. O homem estaria doente em sua totalidade.
Já na Idade Média, com o domínio da igreja, houve a sacralização da divisão mente e corpo. Os sacerdotes cuidavam das funções mentais e os médicos limitavam-se apenas tratar o corpo.
Seguindo o desenvolvimento, depois do movimento renascentista e posterior descoberta da Microbiologia e do progresso da Anatomia Patológica, cada vez mais a medicina passou a dar valor ao que podia ser manipulado, tocado, enxergado… relegando mais e mais a um segundo plano a parte psíquica do adoecer. Até que em 1818 Heinroth introduz o termo “psicossomático” na medicina com o sentido, naquela época, de designar as doenças somáticas que surgiam tendo como fator etiológico os aspectos mentais. Já as mais recentes pesquisas no campo da psiconeuroimunologia buscam explicar como os pensamentos e emoções se traduzem em moléculas de informações que atuam em todo o organismo.
Historicamente, a Psicologia ocidental remonta à Grécia, em torno de 500 AC. com as reflexões dos principais filósofos, notadamente Sócrates enfatizando a racionalidade do homem; Platão, postulando a imortalidade da alma e Aristóteles falando sobre a mortalidade e a pertinência da alma em relação ao corpo No entanto, a Psicologia tentando se afirmar como ciência tendo como seu objeto de estudo o comportamento, deixou de dar valor à introspecção, à criatividade e imaginação. Apenas o comportamento poderia ser validado cientificamente. Sua visão favoreceu uma grande expansão da Psicologia, principalmente na área da aprendizagem, e a aceitação pelos meios acadêmicos. Mas a evolução do conhecimento é dinâmica. E na Psicologia surgiram grandes nomes como Freud, Jung, Moreno, Vitor Frankl e outros que trouxeram grandes avanços.
Como uma nova abordagem, a PsicologiaTranspessoal foi anunciada no ano de 1968 por Abraham Maslow. Para Macieira (2012) a Psicologia, esquecendo-se de ser “o estudo da alma” sofreu um distanciamento em relação a tudo o que dizia respeito à dimensão espiritual, como se não fosse esta algo inerente à pessoa humana. O ser humano tem necessidade de reconhecer-se dentro do Universo, reencontrar a sua própria essência, uma explicação para sua existência e um sentido e valor espiritual para a sua vida, pois é por essência um ser biopsicossocio e espiritual.
A Psicologia Integrativa Transpessoal vem preencher esta lacuna, mostrando que a dimensão espiritual não deve ser tratada apenas em termos teosóficos, filosóficos ou religiosos, mas que faz parte da psique humana, diz respeito aos valores que a transcendem. De acordo a abordagem integrativa transpessoal, não há uma teoria capaz de explicar o espectro total de fenômenos psicológicos. Portanto, tal como os físicos, os psicólogos terão que se contentar com uma rede de modelos interligados, usando diferentes linguagens para descrever distintos aspectos e níveis de realidade.
Desta forma, a Psicologia Integrativa Transpessoal representa um avanço, um progresso inevitável no desenvolvimento do campo da Psicologia. Mas é, ao mesmo tempo, um retro-acesso (não um retrocesso) ao buscar recuperar a visão holística presente desde os antigos templos de cura gregos e o conhecimento das filosofias perenes.
Autora: Mestre Rita de Cassia Macieira
Referências:
HART, Gerald David. Asclepius: the god of medicine. History of Medicine Series. London: Royal Society of Medicine Press, 2000. p. 165
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1989.
MACIEIRA, Rita de Cassia (org). Despertando a cura: do brincar ao sonhar. São Paulo: Ed. Livro Pleno, 2004.
MACIEIRA, Rita de Cassia. O Sentido da Vida na Experiência de Morte. 3ª. Ed. SP: Ed. Casa do Psicólogo, 2012.