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Raiva: moralmente contida, mentalmente não reconhecida, emocionalmente ferida

Falar sobre a raiva, tentar entender o mecanismo dela é um tema que gera muita curiosidade. Diferente da culpa, a raiva é uma emoção que conseguimos identificar com mais facilidade, tanto em nós quanto no outro. Podemos facilmente falar sobre este sentimento, mas nos sentimos extremamente incomodados quando temos que lidar com ela. A verdade é que todos nós sentimos raiva, mas como conviver com ela de forma não destrutiva ou prejudicial para as relações?

Mesmo sendo uma emoção como qualquer outra, relutamos toda vez que temos que assumi-la. Talvez seja porque associamos a raiva com uma manifestação negativa e desta forma, seguimos tentando domá-la, contendo a sua manifestação, mesmo que no íntimo se sinta e muito!

Como definição, os dicionários trazem como sinônimos da raiva os sentimentos de fúria, ira, cólera, irritação e ódio. Já numa associação mais informal, é comum encontrar diferentes temas relacionados ao sentimento, como privação de raciocínio lógico, falta de calma, até um distúrbio do equilíbrio emocional. Jung, ao falar sobre a raiva, ressalta que usualmente as emoções e os afetos que nos tomam são personificados frequentemente sobre a forma de demônio. “Dizer que o indivíduo ‘teve um acesso de raiva’ significa que algo caiu sobre ele e o subjugou; que o demônio está montado nele; que está possesso e que alguma coisa penetrou no seu íntimo”. (JUNG, 2013, §627)

Quando olhamos para essas definições ficamos até apreensivos de pensar que nós podemos sentir isto, da forma como eles colocam, mas sentimos. E aprender a lidar com esta emoção é a nossa tarefa.

No campo mitológico, encontramos a representação da raiva no Cão Louco de 3 cabeças – conhecido como Cérbero, o guardião do submundo. Ele é conhecido como aquele cuja personalidade é mais colérica, que traz uma disposição para se zangar e para sentir ira.

E porque usam um cão com 3 cabeças para representar a raiva? Talvez porque a raiva tenha 3 origens, segundo a proposta feita por James Hollis no livro Os Pantanais da Alma (2013). Segundo o autor, podemos identificar 3 (três) tipos de raiva, que ele chama de ‘raiva causada pela ferida do excesso’, a ‘raiva causada pela ferida da insuficiência’ e a ‘raiva causada por ódio a nós mesmos’

No cenário da raiva causada pela ferida do excesso, percebemos que em algum momento da vida, a criança sentiu um esmagamento do seus próprios limites vindas do mundo exterior, como por exemplo, crianças que cresceram em ambientes pesados, com pais e/ou responsáveis extremamente opressores, diversos tipos de abusos nas relações interfamiliares, sofrendo por ter relações familiares disfuncionais, entre outros. Nesses casos, a criança passa a se sentir culpada ou apreensiva em expressar seus sentimentos contrários, com medo de retaliação, preocupação em tornar o ambiente ainda mais prejudicial e acaba abafando seus sentimentos.

Já no cenário oposto, aquele que Hollis (2013) chamou de raiva causada pela ferida da insuficiência, percebemos uma série de eventos em que as respostas foram insuficientes em relação as necessidades da criança. Muito comum em casos de negligências, situações de abandono ou mesmo falta de amparo nas necessidades primárias da criança. Nessa condição, temos um ambiente árido, com pouca ou quase nada assistência e amparo e, usualmente, pais ou responsáveis que pareciam não enxergar as reais necessidades da criança. 

Como resultado desses dois cenários acima, Hollis (2013) pontua que o indivíduo começa a interpretar de forma errada ou distorcida a natureza do mundo, mudando a própria personalidade para tentar se encaixar no ambiente em que vive, tentando quase que constantemente administrar o nível de ansiedade originária desta situação. A raiva que no momento foi reprimida, fica sendo alimentada de forma inconsciente na psique, podendo vir a ser extravasada em situações corriqueiras.

Já no último cenário que ele propõe, temos a raiva causada pelo ódio de nós mesmos. Apesar do nome indicar uma revolta muito grande direcionada à nós mesmos, o autor pontua que este é um tipo de raiva que sentimos toda vez que nós pensamos ou chegamos a conclusão – consciente ou inconscientemente – de que somos, de algum modo, co-autores ou participantes deste auto ferimento. Sofremos por algo que fizemos e que não concordávamos, ou mesmo que fizemos por não saber o quanto aquilo podia nos ferir. E além da ferida do próprio assunto, sentimos um sofrimento ainda maior ao descobrirmos que contribuímos para esta ferida. Nestes casos, a raiva que sentimos é direcionada não somente ao que causou mas também a nós mesmos. 

Quando a nossa alma sofre alguma limitação, quando ela é comprimida, tirando da gente a espontaneidade; podemos reagir com raiva, com ansiedade ou até mesmo com dores no corpo. Todas essas reações são naturais a este estado de limitação. Porém, como desde muito cedo somos ensinados que sentir raiva é algo feio, ruim, que não devemos sentir muito menos colocá-la para fora, essa alternativa passa a ser canalizada de outras formas. Mas é interessante recordar que mesmo usando outras emoções para reagir a um fato não significa que não estamos sentindo raiva.

Logo, podemos pensar que a raiva – com todo o seu potencial, mas também com todo o seu julgamento negativo – é uma das portas que nos leva ao encontro com a sombra, “pois são vivenciadas pelo mundo do ego, e pelo coletivo, como anárquicas, perturbadoras da ordem social, fora de controle”. (HOLLIS, 2013, p.128). Logo, faz sentido ter como representante da raiva o guardião do submundo. 

Temos muita raiva vagando na nossa psique. E como fomos ensinados a retê-la, ela segue sendo carregada pelo inconsciente. E é desta forma que vamos adoecendo, por guardar tanto sentimentos legítimos que nos mostram quais são nossos limites, nossas contrariedades, nossas fraquezas e nossos desejos.

Assim como outras emoções, a raiva quando não é elaborada piora o sistema imunológico. Se não olhamos para a totalidade dos nossos sentimentos, buscando mascarar partes importantes da gente, distanciando o corpo da mente, avançaremos na produção de sintomas.

Ainda seguindo a proposta do autor James Hollis (2013), nós devemos, como primeiro passo, reconhecer a presença da raiva no momento em que ela aparece. Reconhecer que algo nos incomodou profundamente nos ajuda a entender o por que este sentimento apareceu. E é neste momento que devemos também nos atentar para as razões que despertaram a raiva em nós. Em qual momento, quais foram os gatilhos que nos levaram a sentir um desconforto tão grande a ponto de crescer e tomar conta das emoções. Na sequência, ele propõem que devemos também tentar recordar quais os motivos saudáveis existentes por trás da raiva. Sim, é importante também para o reconhecimento da raiva entender o que ela traz de positivo. Não temos o hábito de associar algo positivo a raiva, mas possivelmente também existem boas justificativas para o sentimento ter aparecido. Criar este hábito nos ajuda a perceber a o que estávamos tentando reagir legitimamente. Se algo feriu ou incomodou, o que tudo isso diz sobre nós mesmos? E por fim, neste exame de trazer para a consciência o que a raiva denuncia, devemos nos questionar sobre como lidar com o conteúdo que a raiva traz como forma de crescermos no mundo e amadurecermos nossas emoções. 

Claro que a vida não respeita muito o passo a passo. Mas é interessante pensar o quanto não criamos intimidade com os sentimentos que aparecem em nós. Muitas vezes não nos preocupamos em nos perceber, em buscar um diálogo com o próprio sentimento e assim caminhar no processo de autoconhecimento. Ao nos permitir uma aproximação com a raiva vamos nos surpreender com o fato dela também carregar bons ensinamentos para nós.

Se fizermos uma análise honesta e sem julgamentos veremos que muitas vezes a raiva só estava tentando nos mostrar que algo não estava legal; que aquele jeito que a pessoa nos tratou não condiz com o que esperávamos; mostra que algo não está de acordo com os nossos valores ou crenças; ela nos indica que o nosso limite foi ultrapassado e por nos sentirmos violados, manifestamos este sentimento de forma intensa.

A raiva por si só não é boa nem ruim. Ela apenas denuncia algo. Como reagimos a ela é que pode transformá-la em positiva ou negativa.

A agressividade que normalmente associamos ao sentimento da raiva também respeita esta dualidade – quando ela é um impulso canalizado, ela pode ser um agente transformador de alguma situação; já quando a consequência da raiva é uma agressividade violenta, direcionando a ataques, ela se torna apenas destrutiva, tanto para a pessoa que sente quanto para o alvo do ataque.

Quando entramos em uma dinâmica autopunitiva ao lidar com a raiva, desenvolvemos um mecanismo de agressividade violenta em nós mesmos. Como Willian Blake  (apud HOLLIS, 2013, p.134) escreveu em seu poema “A árvore envenenada” (1974)

“Eu estava zangado com meu amigo:

Eu falei da minha ira, minha ira terminou.

Eu estava zangado com meu inimigo:

Eu nada disse, minha ira cresceu.”

Quanto mais nós isolarmos o sentimento da raiva da nossa consciência, mais tóxica será sua manifestação. Quando não elaboramos o sentimento, a raiva natural sinalizadora se transforma em raiva destrutiva agressiva.

“É extremamente difícil superar a raiva quando reconhecemos que nós é que somos o problema, que vivemos nossa vida em má-fé. Sem dúvida uma das mais chocantes descobertas, feitas por aqueles que procuram se tornar conscientes e responsáveis, é a realização da conivência inconsciente. (…) Mas o mais difícil de tudo é enfrentar o fato que perpetuamos nossa ferida”. (HOLLIS,2013, p.135)

Muito do nosso sofrimento vem como consequência de sucessivas violações ao nossos sentimentos. Se fomos educados desta forma ou se pela própria sobrevivência entendemos que é nosso dever suprir as dores e desconfortos ao invés de olharmos para ela, o fato é que perpetuamos nossas feridas toda vez que negligenciamos nossas emoções. Aprender a lidar com elas, ponderar suas manifestações é diferente do que simplesmente sufocá-las em seu interior. Reconhecer o que se sente e buscar suas motivações é o jeito que temos de evitar futuras repetições e associações que fortalecem os complexos. 

Mesmo que a nossa espontaneidade em relação aos sentimentos tenha sido abalada ao longo da vida, sempre poderemos retomá-la. É uma tarefa que está sempre à disposição para a retomada do nosso eu natural:

“Quem já não acordou às quatro da manhã para um encontro com a terrível verdade que, história à parte, somos culpados pelo que fizemos da nossa vida, pelo que nos tornamos, pelo que fizemos aos outros? Podemos vivenciar esse reconhecimento com vergonha, tristeza ou depressão, mas ele também encerra certo grau de raiva autodirigida”.(HOLLIS, 2013, p. 135)

É sempre trabalhoso reconhecer o quanto de raiva lançamos para nós mesmos quando não podemos direciona-la à situação provocadora. Muito dos sentimentos que nos fazem sofrer, como vergonha, tristeza, ansiedade, depressão tem como base uma raiva a nós mesmos, uma culpabilização por algo que julgamos que não deveríamos ter feito, ou que deveríamos ter feito e fomos omissos. Muito dos nossos sintomas que nos levam a adoecer, ou nos geram sofrimento, são potencializados pelo tanto de raiva que lutamos para não reconhecer – e esta resistência só faz aumentar as emoções não elaboradas dentro de nós. 

Desta forma, podemos entender que a raiva é também uma legítima reação da alma diante de uma ferida. Quando nós nos permitimos olhar e assumir para nós mesmos o que sentimos ou como nos sentimos, nós podemos curar a nossa alma.

“Quando somos capazes de reconhecer que nosso caminho pode estar bloqueado pelo Cérbero de três cabeças, o cão furioso do excesso, da insuficiência e do ódio por nós mesmos, torna-se possível escaparmos ao seu rosnado e ao seu domínio”. (HOLLIS, 2013, p. 136)

Será sempre melhor sinalizar que não gostamos de algo, no momento em que acontece, podendo ter o cuidado de escolher as melhores palavras do que deixar a raiva crescer, e transbordá-la escolhendo as piores e mais dolorosas palavras quando já não suportamos mais.

“Quando somos capazes de reconhecer a raiva, detectar suas origens, perceber seus efeitos sobre nosso eu imaginal, finalmente podemos nos libertar dos limites do passado”. (HOLLIS, 2013, p. 137)

A raiva sempre fez parte da nossa vida, agora é hora de legitimá-la como um sentimento também positivo, trazendo oportunidades de validar o que estamos sentindo e nos preservar. Reconhecer a raiva é dar uma oportunidade de reconhecer o que extravasa dentro de nós sem quem isto seja vivenciado de forma destrutiva. Quando vamos, pouco a pouco, tomando consciência sobre quem somos e como tudo o que acontece no mundo nos atinge, vamos reescrevendo nossa história e nos libertando de complexos que nos aprisionaram até então. Vamos acolhendo nossa sombra, transformando o que é possível e aprendendo a suportar tantos outros fatos que não podemos apagar da nossa história, mas que enfim podem tomar outro rumo e não mais nos atingir da mesma forma. A raiva nos liberta das prisões dos nossos sentimentos.

Marcella Helena Ferreira – Analista em Formação IJEP

Didata  responsável : Maria Cristina Mariante Guarnieri

REFERÊNCIAS

HOLLIS, James. Os Pantanais da Alma: nova vida em lugares sombrios. São Paulo, Ed. Paulus, 2013

JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. O.C – 8/2.  Petrópolis, Ed. Vozes, 2013

Marcella Helena Ferreira

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