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Redescobrindo a corporalidade

O livro infantil “Em busca da feição real”, escrito por Ko Moon-Young, autora ficcional do drama Tudo bem não ser normal, narra a história de três personagens e entre eles há a princesa de lata barulhenta e oca. Ela sai em viagem junto com os dois amigos em busca de sua identidade. No caminho, ela encontra um palhaço nu dançando em um campo florido cheio de espinhos. E a princesa de lata pergunta para o palhaço: 

– “Porque você está dançando com tanto afinco, mesmo sendo machucado pelos espinhos das flores? E o palhaço respondeu: – “Achei que era o único jeito de as pessoas prestarem atenção em mim. Mas está doendo muito, e ninguém me olha”. Então, ela começa a dançar com o palhaço, pois não sentiria nada por seu corpo ser de lata. Ao final, após serem raptados por uma bruxa e ter ficado presa em um buraco, seu resgate foi feito por um dos amigos, o homem caixa, que para tirá-los de lá, teve que ter coragem de tirar aquela caixa da cabeça e encarar o mundo. Após o resgate, ao ver o amigo livre da caixa, começou a rir e o corpo de metal que a envolvia caiu no chão. Assim, ela e os amigos encontraram sua feição real, ou seja, eles passaram por um processo de maior conscientização sobre si mesmos.

Um outro conto muito simbólico, que remete uma ideia similar é o Mágico de Oz, onde Doroth e seus amigos precisam chegar ao mágico de Oz para encontrar as capacidades perdidas, como a de sentir, pensar ou ser corajoso. Isso é relatado no conto do Cavaleiro preso na armadura que precisa aprender a tirá-la, e assim vai, a mesma ideia perpassa diversos contos, ou seja, o uso de uma roupa metálica ou de outro material, que impede essa relação com as pessoas e o meio circundante. 

O que a roupa de metal fazia por essa princesa era dar uma falsa ilusão de proteção ou barreira, e consequentemente, tirava sua capacidade de sentir, seja fisicamente ou emocionalmente, presa a um complexo que a limitava. A roupa a mantinha presa nas questões inconscientes e sua relação com o mundo era artificial. Jung, nos relata que o indivíduo que depende de modo preponderante do inconsciente, e é menos propenso à escolha consciente, tem a tendência para um acentuado conservadorismo psíquico, criando uma roupa metálica ou uma inflexibilidade e dificultando as relações. Considerando a integralidade do ser humano, quando temos uma paralisia da energia psíquica, o todo sofre, a alma e o corpo, criando dificuldades nas diferentes dimensões (trabalho, família, sexualidade/relação amorosa, amizades/social, etc). 

Jung nos apresenta a relação oposta entre corpo e a alma, mas que na verdade, essa separação é apenas para que a razão consiga compreender os dois lados da mesma realidade, uma separação conceitual, quando de fato, o corpo e a alma constituem a mesma coisa (2013-a,§619). A corporalidade e a sexualidade são aspectos da vida humana e é importante para o terapeuta ter em mente essa vivência. Isso mostra muito da relação que a pessoa consegue estabelecer com os outros e com seu próprio corpo, as influências culturais e sociais, além dos conteúdos inconscientes coletivos e individual. 

No período pré-patriarcal no ocidente, onde as culturas matrísticas predominavam na Europa, a relação das pessoas com seu corpo, sua sensualidade e sua sexualidade era algo natural, parte da vida vivida. Com a dominação desses povos pelos indoeuropeus, uma nova cultura se estabeleceu, e as relações entre homens e mulheres foi se alterando, gerando a escravização e submissão das mulheres e o sexo era visto para fins de procriação, e não pelo prazer natural da relação físico afetiva. Essas mudanças foram reforçadas com o domínio da Igreja Católica, que afastou o homem e a mulher ainda mais de seus corpos, e imbuindo uma conotação pecaminosa e suja para o sexo e sacralizou o corpo. 

O iluminismo e a modernidade não ajudaram nessa dissociação com o corpo, pois ressaltou a ciência e a razão como fontes de verdade, ou seja, a mente é o que importa. O corpo e a natureza podem ser dominados e subjugados por ela. Contudo, isso não se reflete na vida das pessoas. Hoje mais do que nunca percebemos o mal que estamos fazendo ao meio ambiente, aos outros animais e para a própria humanidade. As doenças de caráter imunológico ganharam muita força, e como Jung nos apresenta, não existe essa tal dissociação entre corpo, mente e espírito. Somos uma única entidade, que sofre quando uma parte de nós tenta dominar ou enfraquecer as outras. 

Hillman nos fala sobre o arquétipo puer-senex, a energia e impulsividade da juventude e a estabilidade e normatividade da velhice. Apesar de parecerem opostas, essas duas características são, na verdade, complementares, pois a unilateralidade de uma ou de outra nos leva nada mais, nada menos que à paralisia. Para que a energia psíquica circule, sem ficar demasiado tempo em um único aspecto, a multiplicidade é a chave. 

O aspecto puer, quando ferido, sangra sem conseguir coagular, se expondo e para se proteger, a pessoa se desvincula de tudo e todos, seguindo seu caminho sem rumo e objetivo. O aspecto senex já apresenta uma ferida cicatrizada, fibrosada, ou seja, um tecido que não se regenera, mais enrijecido, e dessa forma, mostra-se mais experiente pelas vivências, contudo, preso a elas quando não consegue mais se conectar com seu oposto puer. 

A sexualidade para a personalidade fixada no aspecto puer segue o mesmo caminho, compulsividade e dificuldade de estabelecer vínculos afetivos (Don juanismo), tanto para homens quanto para mulheres, ou seja, uma sexualidade sem alma. A compulsividade sexual e o pensamento mágico, inerente as mentes mais jovens, podem levar a pessoa a comportamentos de risco na busca pelo prazer, colocando-se vulnerável a abusos, violência e até mesmo à morte. 

Essa característica da sexualidade sem vínculos afetivos do puer se assemelha muito a um comportamento narcisista sedutor, que apresenta uma insensibilidade para com o parceiro(a) sexual transformando-o em objeto sexual (ref. LOWEN, 1983). É uma sexualidade vivida sem alma e sem corpo. Como estabelecer uma relação afetiva ou sexual quando estamos presos em uma roupa metálica?

Da mesma forma, hoje notamos academias cheias de pessoas buscando um corpo perfeito ou imagem perfeita de si. Essa busca pelo corpo bonito e apresentável não significa que esse indivíduo está conectado a seu corpo. Quantas lesões não ocorrem pelos excessos?! Igual ao palhaço nu do conto, que se machuca no espinheiro para chamar a atenção e receber afeto. O vincular-se ao seu corpo também faz parte do vincular-se a sua própria alma, ou seja, estar inteiro. Jung nos fala que a separação entre corpo e alma é uma operação artificial, uma discriminação que se baseia menos na natureza das coisas do que na peculiaridade da razão que conhece. Existe uma intercomunicação entre as características corporais e psíquicas (2013-c). 

Jung transcorre sobre o indivíduo que é infantil e ainda está ligado a imago parental ou ao ambiente da infância, reagindo perante o mundo como uma criança diante os pais, sempre exigindo amor e recompensa afetiva imediata. Esse indivíduo ainda não é capaz de viver sua própria vida e encontrar sua própria personalidade (2013-b, §431). 

O aspecto puer pode ser relacionado ao complexo materno, seja pela ausência ou pelo excesso de cuidados da mãe, gerando uma eterna busca por ela ou uma dependência excessiva. Segundo Maturana & Verden-Zoller, “a criança deve viver na dignidade de ser respeitada e respeitar o outro para que chegue a ser um adulto com o mesmo comportamento, vivendo como um ser com responsabilidade social, qualquer que seja o tipo de vida que lhe caiba”. E para isso acontecer, precisamos respeitar a relação materno-infantil, ou seja, a criança precisa crescer em um ambiente cercada de amor e cuidado, e não da exigência e da obediência (pág. 20). 

A paralisação do indivíduo pode se revestir de mau humor, sensibilidades ridículas, desconfiança e ressentimentos, com os quais pretende justificar sua petrificação. A paralisia da energia psíquica apresenta aspectos desagradáveis. Em geral, a personalidade consciente se revolta contra a manifestação do inconsciente e combate suas reivindicações (JUNG, 2013-b, §458-459). Nesse combate, sintomas físicos podem surgir, distúrbios de comportamento, neuroses, etc. 

Conger faz uma reflexão interessante sobre a sombra, ela está no corpo de nossa família, que inconscientemente nos determina de certa forma. A maneira de andar da mãe, os ombros curvos do pai, e assim vai. Devemos buscar nosso processo de individuação tanto física como psicologicamente, superando esse corpo familiar. Da mesma forma, o quanto da nossa sexualidade e de nossa relação com o corpo não sofre influência familiar, através de um encouraçamento físico ou pelos complexos. 

Com todo esse panorama, como não haver impactos nas relações? E como um ego afinado ao complexo de puer não sofreria com toda essa dissociação? Para esconder seus sentimentos, seu desejo de amar e ser amado, o puer busca irrefreadamente, e muitas vezes de forma inconsequente, afeto, mesmo que não haja vínculo nas relações. Como no mito de Narciso, o apego a uma imagem foi o foco das atenções, não havendo amor-próprio ou relações com o outro, essa característica hedonista precisou morrer para que o novo se fizesse, e pudesse se reconhecer e começar a se relacionar. 

O processo de individuação desenvolvido por Jung trata da integração entre o consciente e o inconsciente, ou seja, a superação do binômio ego-sombra. Quando trazemos a consciência nossos aspectos sombrios, nos aproximamos dos conteúdos inconscientes que nos habitam. Permitindo avanços do nível de autoconsciência. Para o indivíduo puer, se aproximar de seu contrário, ou seja, a criança divina, o senex, também precisa buscar o lado mais maduro e sensato do velho sábio, isso pode ajudá-lo a encontrar um caminho do meio. E dessa forma, possa se reconectar com o mundo e consigo mesmo, podendo estabelecer relações amorosas e uma corporalidade mais plenas. E assim como a princesa do conto deixar-se tocar e se libertar da roupa metálica. 

 Imagem de Nolah Reis Sifuentes

 Michella Paula Cechinel Reis Membro Analista em formação do IJEP

E. Simone D. Magaldi membro didata do IJEP

Referências: 

CONGER, J.P. Jung e Reich: o corpo como sombra. São Paulo: Summus, 1993. 

HILLMAN, J. 1926 – O livro do puer: ensaios sobre o arquétipo do Puer aeternus. São Paulo: Paulus, 1998. 

JUNG, C.G. A natureza da psique: a dinâmica do inconsciente. Tradução de Mateus Ramalho Rocha. 10 ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2013, §619. 

_____. O segredo da flor de ouro: um livro de vida chinês. 15 ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2013-a. 

_____. Símbolos da transformação. 9 ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2013-b. 

_____. Tipos psicológicos. 7 ed. Petrópolis: Vozes, §979, pág. 529, 2013-c. 

YONG, JO. Em busca da feição real: um conto de fadas de Ko Moon-Young. 1 ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021. 

MATURANA, H.R.; VERDEN-ZOLLER, G. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano do patriarcado à democracia. Tradução Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo: Palas Athena, 2004. 

Michella Paula Cechinel Reis

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