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Reflexões Junguianas sobre o Serviço e o Concurso Público no Brasil

Reflexões Junguianas sobre o Serviço e o Concurso Público no Brasil

Reflexões Junguianas sobre o Serviço e o Concurso Público no Brasil

O serviço público é visto como uma meta de vida para muitos brasileiros. No imaginário de muitos, garante àqueles que passarem em um concurso estabilidade e benesses vitalícias. A questão é que nem sempre é assim. O serviço público, ao qual o concurso é um meio de acesso, não é esse éden de estabilidade, pouco trabalho e despreocupação com o futuro; muitas vezes se torna uma prisão autoimposta que impede a autorrealização ou ao menos a dificulta, porém, ainda assim é uma alternativa muito atraente de emprego diante de um mercado de trabalho cada vez mais instável e precarizado.

O acesso a uma vaga no serviço público se dá pela participação em concursos. Desde a constituição de 1988 e a garantia de estabilidade à maioria daqueles que passarem, é uma espécie de esperança, pessoal e muitas vezes familiar, de um emprego minimamente digno e garantidamente “eterno”. Também é visto como uma das formas mais justas de seleção, uma vez que leva em conta os conhecimentos do concursando, ao contrário das arbitrariedades de um processo seletivo na iniciativa privada.

Estabilidade

Diante de cenários econômicos cada vez mais instáveis, a promessa de estabilidade, ou seja, emprego garantido, com certeza se apresenta como uma oportunidade de ouro (RIBEIRO e MANCEBO, 2009; ANJOS e MENDES, 2015; ROCHA, 2019).

Essa característica da iniciativa pública contrasta com o trabalho precarizado da iniciativa privada, uma vez que a presença do desemprego estrutural permite às empresas privadas oferecerem cada vez menos e cobrarem cada vez mais dos seus trabalhadores (ANJOS; MENDES, 2015).

Estes acabam se sujeitando às condições impostas uma vez que o cenário não permite que tenham escolhas e contribui para a disseminação de fatores que geram a insegurança, tais como as elevadas taxas de desemprego (ROCHA, 2019).

Instabilidade, a grande vilã

De acordo com Albrecht e Krawulski (2011), em um estudo realizado em Florianópolis/SC, a maior parte dos concurseiros (aqueles que se dedicam ao estudo para aprovação em concursos), têm em vista a estabilidade e a remuneração como fatores de peso na hora de decidir se dedicar aos estudos e ao serviço público. Tais achados são semelhantes aos de Rocha (2019) e fazem eco às reflexões de Ribeiro e Mancebo (2009), que observa:

O candidato ao serviço público, quando prioriza a busca de segurança e qualidade de vida, pode na realidade estar mais interessado em se esquivar do clima tenso e inseguro da iniciativa privada, do que em fazer uma carreira aliada à realização profissional no setor público.

Esse trabalhador tem consciência de que as empresas privadas impõem geralmente um ritmo intenso ao exercício das atividades laborais. Situação que normalmente ultrapassa os muros da organização, impregnando as relações pessoais, familiares e sociais. Ele constata que, na busca contínua pela empregabilidade e na luta diária para conter o fantasma do desemprego, é quase sempre a qualidade de vida que fica comprometida (Ribeiro e Mancebo, 2009).

O processo de aprovação em um concurso público foi se tornando cada vez mais difícil ao longo dos anos.

Uma vez que tivemos um aumento na educação da população, incluindo cursos superiores, o número de pessoas aptas a prestar um concurso aumentou e, como consequência, a concorrência pelas vagas. Não raro, os concurseiros passam anos das suas vidas em uma rotina de estudos dedicada a um ou mais certames e raramente são aprovados numa primeira tentativa.

A busca por aprovação em concursos públicos é uma jornada desafiadora que pode ter diversos impactos na saúde mental dos concurseiros. Enquanto alguns podem enfrentar o processo com determinação e resiliência, outros podem experimentar dificuldades emocionais e psicológicas significativas devido às pressões envolvidas.

São comuns relatos de cobranças pelo desempenho não satisfatório para aprovação. Também são cobrados direta ou indiretamente dos parentes e amigos, que quando se encontram perguntam pelo desempenho e pelas razões da não aprovação até o momento (ANJOS E MENDES, 2015).

Comparação e pressão

Além disso, a comparação entre os outros concorrentes, adiamentos de concursos, reprovação, pressão financeira e social tornam os concurseiros pessoas suscetíveis a uma gama diversificada de transtornos mentais.

Essa pressão é, conforme levantado por Rocha (2019), reforçada pelas mídias sociais, grupos de conversa de concurseiros e pela pesada propaganda dos cursinhos preparatórios – estude enquanto eles dormem – que insere os concurseiros numa corrida intensa e sem previsão de fim, e numa disputa constante entre si e consigo mesmos. Não é raro, em Brasília, onde vivo, ouvir que fulano não está participando de eventos sociais ou saindo de casa porque está estudando para concurso.

Dessa forma, o concurseiro ao longo do tempo muitas vezes desiste do seu “cargo dos sonhos” e começa a se enveredar por vagas com editais em aberto ou que sejam mais fáceis de passar. Dessa forma, conforme ilustrado no texto de Ribeiro e Mancebo e em acordo dos achados de Rocha (2019):

O objetivo definido foi alcançado. Entretanto, na ânsia de se protegerem das oscilações do mercado de trabalho, não se permitiram realizar uma escolha mais cuidadosa, analisando criteriosamente se as características da organização e do cargo para o qual prestaram exame eram compatíveis com seus interesses e projetos de vida (Ribeiro e Mancebo, 2009).

Passei! E agora?

Sim, o emprego público é um oásis diante de uma precarização cada vez maior das vagas abertas à ampla concorrência do mercado e da instabilidade dos empregos no setor privado. No entanto, que outras subjetividades aparecem, passado o momento da aprovação no tão esperado concurso?

O serviço público é vendido, na maioria das vezes como objetivo final e não como etapa da vida. A remuneração e as benesses seriam um prêmio pela aprovação e não uma recompensa pelo trabalho a ser realizado. A utilização publicitária de luxo, riqueza e consumo sem dúvidas desperta desejos que não apenas estimulam a estudar – e a procurar um cursinho para isso -, mas reforçam a crença de que a aprovação é o caminho para a conquista da felicidade (ROCHA, 2019).

Eis que entra em cena a realidade: trabalhar em algo muitas vezes desligado de qualquer vocação, prazer ou interesse; aprovação em cargos em que se é mais qualificado que o necessário, subutilizando seu potencial; constantes mudanças de acordo com a mudança de gestão, as nomeações e conchavos políticos e inclusive a corrupção. 

Isso pode gerar um descontentamento com relação as atividades que realiza no órgão e contribuir para o florescimento de uma vontade de mudança. Uma busca por algo que possa suprir a falta de realizar uma atividade por afinidade e prazer (BAZZO, 1997; ANJOS e MENDES, 2015; ROCHA, 2019).

Aí chegamos em Jung.

Observando o cenário descrito anteriormente, podemos inferir que uma parte dos concursados entram em conflito interno pois, ao passarem no concurso, enfrentam a angústia de trabalhar em algo muitas vezes sem significado interior. Nesse sentido Jung dizia:

O homem deve ser levado a adaptar-se em dois sentidos diferentes, tanto à vida exterior – família, profissão, sociedade – quanto às exigências vitais de sua própria natureza. Se houve negligência em relação a qualquer uma dessas necessidades, poderá surgir a doença.

JUNG, 2014b, v. 17, §172

A doença, nesse caso, pode se manifestar pelas crises de ansiedade, depressão, pânico entre outras, tem sido cada vez mais relevante no número de afastamentos e ausências no serviço público, evidenciando um problema a ser enfrentado tanto na esfera coletiva quanto individual. Coletiva, no sentido de se pensar melhores métodos de seleção e qualidade do trabalho desenvolvido no serviço público, e individual no momento de se ponderar se a estabilidade propiciada pelo cargo vale a desadaptação ao Eu.

O sofrimento no serviço público não vem de hoje

Em 1997, Bazzo publicou uma reflexão sobre esse tema, de onde se extrai:

Quem tivesse a iniciativa de escrever a história da saúde mental no universo do funcionalismo público brasileiro, digamos, nos últimos 30 anos, chegaria a dados estarrecedores e não teria dúvidas de que a atual Organização do Trabalho dentro da “máquina pública” é, literalmente, uma máquina a serviço do desprazer, da depressão e da insanidade. E essa realidade pode ser facilmente confirmada, verificando o número de consultas médicas comparece mensais a que cada funcionário.

BAZZO, 1997

Não quero dizer que o serviço público é apenas uma armadilha aos incautos.

Há gente feliz e realizada de poder trabalhar servindo ao seu país, uma vez que, estando inserido nesse lugar é possível colocar em prática seus propósitos, uma coisa não impede a outra. É possível sim que o seu propósito de vida seja trabalhar no setor público e isso não torne a adaptação um martírio. Uma vez que, conforme dito acima, as condições de trabalho são atraentes e melhores que em muitas outras esferas do mercado.

A proposta aqui é que, ao considerar a decisão de se dedicar a um concurso público, é fundamental lembrar que Jung enfatizava a integração de elementos individuais e coletivos para alcançar a felicidade e o propósito. A busca por segurança e contribuição à sociedade pode ser alinhada com sua visão de realização.

Ele ressaltava que a busca pela felicidade estava enraizada na integração das várias facetas da personalidade e na conexão com um propósito. Ao escolher um caminho profissional, é importante considerar tanto as vantagens materiais e sociais quanto a capacidade de expressão pessoal, autonomia e satisfação interior. Novamente trazendo Jung:

É claro que como individualidade ninguém pode adaptar-se por completo a essas expectativas; daí a necessidade inegável de construir-se uma personalidade artificial. As exigências do decoro e das boas maneiras se incumbem do resto, para incitar ao uso de um tipo de máscara adequada. Atrás desta última, forma-se então o que chamamos de “vida particular”. A separação da consciência em duas figuras que às vezes diferem uma da outra de um modo quase ridículo é um fato bastante conhecido e constitui uma operação psicológica decisiva, que não deixa de ter consequências sobre o inconsciente.

JUNG, 2014a, §305

O sofrimento muitas vezes apresentado pelos concurseiros-concursados-servidores está em renunciar à tão sonhada e almejada estabilidade em busca da realização profissional. Quando se depara com a realidade pós-portal da aprovação, pode se frustrar com o preço dessa estabilidade.

Considerações finais

Vale lembrar que já na escolha da profissão, quando adolescentes, muitas pessoas não têm tanta escolha sobre o seu futuro trabalho. Pressões familiares, condições sociais desfavoráveis, condições financeiras, entre outros aspectos, muitas vezes tornam a escolha de uma formação profissional uma não-escolha. A felicidade muitas vezes é depositada numa suposta estabilidade profissional e financeira em detrimento da realização de uma atividade laboral que proporcione satisfação pessoal e espiritual.

Além disso, como dito por Jung, muitas vezes os filhos são empurrados a viver a vida não vivida dos pais, que sonharam com uma vida de concursado. Mas, por alguma razão, isso não foi possível ou ainda, se identificam com os mesmos e seguem o caminho do serviço público sem pensar se esse é seu verdadeiro propósito.

Torna-se urgente, pois, a investigação e análise dos impactos dessa (in)sensata corrida por um emprego seguro na saúde […] também sobre os riscos de banalização e negligenciamento de um processo tão importante, como o de escolha profissional, alertando que “a adaptação a qualquer preço é a porta de entrada do conformismo – que é a antessala do mundo sem sentido.” (SOARES, 2002, p.16–17, apud RIBEIRO e MANCEBO, 2009). Contribui Jung:

Essas identificações com o papel social são fontes abundantes de neuroses.

O homem jamais conseguirá desembaraçar-se de si mesmo, em benefício de uma personalidade artificial. A simples tentativa de fazê-lo desencadeia, em todos os casos habituais, reações inconscientes: caprichos, afetos, angústias, ideias obsessivas, fraquezas, vícios etc. O “homem forte” no contexto social é, frequentemente, uma criança na “vida particular”, no tocante a seus estados de espírito.  (JUNG, 2014a, §307)

Também sofrem aqueles que por sentirem sua autorrealização sacrificada em nome de um cargo com estabilidade, muitas vezes veem como opção apenas voltar aos bancos dos cursinhos preparatórios ou sacrificar horas da sua vida em busca de uma nova colocação no serviço público.

A instabilidade do emprego na iniciativa privada, somada às cada vez mais frequentes crises do capitalismo, empurra cada vez mais os brasileiros em direção a um emprego que garante estabilidade, algo só encontrado no emprego público.

A estabilidade não livra os concursados da angústia e do sofrimento quando estes estão em descompasso com seus propósitos e potenciais internos, assim como em qualquer trabalho, no entanto, a solidez proporcionada pela estabilidade muitas vezes se torna uma barreira na busca por autorrealização.

MsC. Mauro Angelo Soave Junior – membro analista em formação do IJEP

Dra. E. Simone Magaldi – Analista didata do IJEP

Referências

ALBRECHT, P. A. T. e KRAWULSKI. Concurseiros e a busca por um emprego estável: reflexões sobre os motivos de ingresso no serviço público. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, vol. 14, n. 2, pp. 211-226. 2011.

ANJOS, F. B.; MENDES, A. M. A Psicodinâmica do não-Trabalho. Estudo de caso com concurseiros. R. Laborativa, v. 4, n. 1, abr., p. 35-55. http://ojs.unesp.br/index. php/rlaborativa. 2015

BAZZO, E. F. Algumas considerações sobre a saúde mental dos funcionários públicos. Psicologia Ciência e Profissão, 17 (1), 41-44. 1997.

JUNG, Carl Gustav. O desenvolvimento da personalidade; tradução de Frei Valdemar do Amaral; revisão técnica de Dora Ferreira da Silva. – Petrópolis. Vozes, 2014a.

______________. O eu e o inconsciente; tradução de Dora Ferreira da Silva. – Petrópolis, Vozes, 2014b.

RIBEIRO, C. V. dos S. e MANCEBO, Deise. Concurso público, uma alternativa sensata frente às turbulências do mundo do trabalho? Trabalho & Educação – vol.18, nº 1 – jan./abr. de 2009

ROCHA, Bianca Gomes Lima da. Entre o sofrimento e o (in)cansável movimento: as tensões vivenciadas por concursados-concurseiros à luz da contemporaneidade e da gestão gerencialista. Dissertação (Mestrado) – Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Programa de Pós-graduação em Administração, Curitiba, 2019.

SILVA, R. B e BUENO, H. P. V. A saúde mental e os principais motivos de afastamento do servidor público brasileiro. Trabalho de conclusão do curso de pós-graduação lato sensu à distância em Saúde Mental pela UCDB/Portal Educação. 20xx

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