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Sísifo x Deuses

“Encanta-me essa ideia de que apenas desistindo de sermos o centro do mundo e de nossa própria vida somos capazes de experimentar a verdadeira doçura de Deus e da vida”. (Pondé, 2018)

Para além da compreensão do mito de Sísifo como questão da repetição infinita que leva e evidencia o trabalho sem sentido e discute a questão do sentido da vida ou da falta dele, este artigo quer convidar o leitor a prestar atenção em uma outra possibilidade. Como já se sabe, o mito nunca se esgota e de forma alguma possui apenas um sentido, mas como diamante possui várias facetas e todos elas constituem a intensidade e o valor do seu brilho.

Ao ler o Mito de Sísifo me chama atenção a relação dele com os deuses, relação essa que também se apresenta em nós. Algumas questões se fazem presentes: devem os homens obedecer cegamente aos deuses? Não é próprio da natureza humana, e totalmente vital a vida humana o surgimento e a ampliação da consciência? É possível isso sem o confronto com os deuses? Enfim, é possível que homens e deuses estejam totalmente em paz, sem conflito algum?

O que nos diz essa versão do mito…

Sísifo, filho de Éeolo e Enaerte, fundou a cidade de Corinto, denominada por ele, a princípio, de Éfira. Suas astúcia e habilidade eram notáveis; por essa razão, relacionaram-no por vezes (indiferentes à cronologia das sagas) a Autólico, o mestre dos ladrões. Historiadores posteriores afirmaram eu Autólico roubara o rebanho dele e que Sísifo o recuperou em seguida. Ele havia feito um entalhe nos cascos, podendo assim desmascarar Autólico, e como vingança seduziu  filha dele, Anticleia. Assim, correu ocasionalmente o boato de que ele e não o marido dela, Laerte, era o pai de Odisseu, gerado por ela mais tarde.

Ao fundar Éfira, Sísifo instituiu os jogos ístmicos em honra de Melicertes, cujo corpo encontrara e sepultara ali, e fez do outeiro vizinho da Acrópole de Corinto uma cidadela e uma torre de observação. Certo dia, ele casualmente viu Zeus raptando Egina, a ninfa do rio e filha do deus-rio Ásopo e Metope; Zeus levou-a para a ilha Enona e ali a desonrou. Ásopo iniciou a perseguição e pediu informações a Sísifo; este prometeu dizer tuod que sabia caso recebesse em troca uma fonte de água fresca na Acrópole de Corinto, pedido este prontamente atendido por Ásopo ( a fonte Pirene).Zeus ficou furioso co a revelação de Sísifo e quis castigá-lo; enviou então Tânato ( a morte), a fim de levá-lo para a casa de Hades. Sísifo, o astuto, ludibriou Tânato de uma maneira qualquer, amarrou-o e atitrou-o em um calabouço, razão pela qual os mortais não mais morrem. O deuses, inseguros com este fenômeno contrário à natureza, enviaram Ares para libertar Tânato, que saiu pela segunda vez à procura de Sísifo. Contando com isso, Sísifo dera a sua esposa, a plêiade Mérope, instruções exatas: ela deixou o corpo dele insepulto e não ofereceu ao defunto nenhum dos sacrifícios habituais. Desse modo, Sísifo enganou Hades: pois o deus ficou zangado com a negligência de Mérope que deixou Sísifo retornar ao mundo dos vivos para castigar Mérope e providenciar o sepultamento do cadáver. Voltando a Corinto, contudo, Sísifo não fez nada disso; ao contrário, desfrutou de sua vida te a velhice avançada, rindo dos deuses do Inferno. Talvez por causa de seu ateísmo, como também por ter traído Zeus, a sua sombra – supõe-se – foi atormentado após a morte, Tártaro: ele tinha de rolar incessantemente uma grande pedra até o alto de um morro e, ao se aproximar do cume, ela rolava novamente para baixo.

Depois de um longo domínio, Sísifo foi sepultado no Istmo de Corinto. Deixou quatro filhos: Glauco (pai de Belerofonte), Ornito (pai de Foco), Tesandro e Halmo.

 (Dicionário de antigas figuras e mitos: Grant/Hazel , transcrito por Kast,2017)

Passar a eternidade rolando uma grande pedra, muitas vezes maior que si mesmo, até o alto de uma montanha, para vê-la descer morro abaixo quando se está quase conseguindo. Ver todos os seus esforços desperdiçados, em vão, e no outro dia começar tudo outra vez, é um grande castigo! E grandes castigos não são dados a qualquer tipo de homem, pelo contrário, só poderia ser imposto a um ser humano que se destacasse. Descendente de uma linhagem importante evidenciada minuciosamente pela descrição do mito a cima. Esse era Sísifo, um homem astuto, esperto, inteligente, ousado e corajoso o bastante para confrontar,  desafiar e até enganar os deuses. Não era nem só bom e nem apenas mal era um grande homem com grandes qualidades e fraquezas. A descrição desta versão do Mito de Sísifo, apresenta esta faceta de Sísifo, um grande homem capaz de grandes proezas e igualmente de grandes pecados.

Verena Kast, 2017 analisando as razões do castigo imposto a Sísifo lembra que os deuses foram como que obrigados a se posicionar diante das atitudes do mesmo. Foi necessário um ajuste de contas de modo a deixarem claro que eles, os deuses, eram mais fortes. Seria então tudo isso uma luta pelo poder entre homens e os deuses? Símbolo de como o ser humano dá uma forma rica à sua vida ao confrontar-se com os deuses – sendo afinal castigado por isso?

Essa é uma dimensão interessante e instigante do mito: a velha rivalidade, o imprescindível confronto entre os homens e seus deuses. Em vários momentos da mitologia encontramos essa cena. Além de Sísifo, muitos outros humanos desafiaram os deuses. Eva no paraíso desafia Deus e come o fruto proibido. Jesus Cristo no auge de seu sofrimento confronta Deus e o acusa de tê-lo abandonado.  Vários santos católicos ou mesmo mestres religiosos retratam de seu confronto com seus deuses.

 A desobediência aos desígnios dos deuses está na base de todo o desenvolvimento humano. Na obra a Alma Imoral, o rabino Nilton Bonder, lembra a importância do confronto e da desobediência a Deus como forma de desenvolvimento do homem e do próprio Deus. Isso está intrínseco na relação de ambos. Esse embate gera vida, crescimento e evolução. Tradição que não contempla a traição corre o risco de se converter em prisão.

Nas fases do desenvolvimento do indivíduo esse conflito aparece de forma mais contundente na adolescência. Fase muitas vezes caracterizada pela rebeldia, pelo confronto e pela desobediência. O adolescente precisa separar-se dos pais idealizados, seus deuses internos, para que possa existir e ter uma individualidade. Sem esse embate não é capaz de buscar um sentido para sua existência ficando sempre preso ao outro e a sua vida e suas experiências. Não desenvolvendo habilidade de ele mesmo viver suas próprias experiências de vida.

Porém, confrontar-se com os deuses, desafiar nossos pais idealizados e desobedecê-los muitas vezes, não significa necessariamente destruí-los, não reconhecer sua importância e seu lugar na hierarquia da vida. Destruir os deuses e/ou os pais idealizados é inflação de ego é desejar ocupar o seu lugar, é o maior pecado de um mortal, é a ruína do ego e seu processo de individuação.

Pondé, 2018 ao fazer uma vigem pela história da espiritualidade, relação do homem com Deus, afirma que essa relação se dá sempre de forma conflituosa, através de embates, mas também de êxtase. Ter uma relação com seus deuses exige o tempo todo confrontar-se consigo mesmo, com o ego heroico que muitas vezes está inflado e apenas voltado para si não conseguindo olhar sua volta. O êxtase só é possível quando se reconhece o verdadeiro tamanho e lugar do ego e dos deuses. Todos têm seu lugar e relevância.

Sendo assim o grande pecado de Sísifo, que era um grande homem, não foi desafiar, confrontar e mesmo desobedecer aos deuses, pois isso gera vida e sentido para a vida do homem, mas a inflação do ego, a incapacidade de desistir, de recuar e reconhecer no final das contas que os deuses e os homens são diferentes. Sísifo não conseguiu permanecer na sua condição humana de mortal. Ele se encantou com sua astúcia, inteligência, coragem e esperteza e perdeu a mão.

Quando o ego acredita ser o centro de tudo, o humano se perde e só resta a ele o castigo, a falta de sentido, a repetição infinita, a inexistência do sagrado.  

Jung (O.C. Vol. V, 2013) considera o sacrifício uma necessidade, um preço a ser pago para nos tornarmos adultos. Em algum momento na vida somos convocados ao sacrifício; precisamos fazer a renúncia em direção a um sentido maior para a vida. É através do sacrifício realizado pelo ego que a libido transforma-se, promovendo a ampliação da consciência e, por consequência o surgimento de necessidades cada vez mais complexas e elaboradas. Fazer o sacrifício é adquirir consciência.Etimologicamente, sacrifício significa, no latim, ( sacrum) sagrado, divino; e (opficío) fazer, ofício, ou seja, trabalho sagrado. Renúncia voluntária em prol de algo com um sentido maior. Para Jung (O.C., Vol. V, 2013, §644) “[…] sacrifício só acontece numa total devoção à vida […].”

Sísifo não se submeteu ao sacrifício. Teve coragem de desfiar aos deuses, mas não teve coragem para “desistir”. Esse foi seu grande pecado, nunca desistir e assim não aceitar sua condição de mortal. Não teve a coragem de descer nos seus infernos pessoais, na sua miséria humana e lá encontrar seus verdadeiros tesouros. Não se reconciliou com sua humanidade. Não foi capaz de como Paulo, no êxtase da sua condição humana exclamar com toda verdade: “Quando sou fraco, então é que sou forte!”

Adriano Luiz Pardo.

Psicólogo. Especialista em Psicoterapia Junguinana pelo IJEP e Analista em formação.

Campo Grande – MS

Contato: 67 99980-1079

adrianopardo@uol.com.br

Referências

BONDER, Nilton A Alma Imoral: traição e tradição através dos tempos, Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

JUNG, Carl G. Símbolos da transformação: análise dos prelúdios de uma esquizofrenia, Vol. V, 9ª edição, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

KAST, Verena Sísifo: vida, morte e renascimento através do arquétipo da repetição infinita, 2ª edição, São Paulo : Cultrix, 2017.

PONDÉ, Luiz F. Espiritualidade para corajosos: a busca de sentido no mundo de hoje, São Paulo: Planeta do Brasil, 2018.

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