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Sobre o simbolismo da bandeira do Brasil

Sobre o simbolismo da bandeira do Brasil.

Eu me lembro ainda como se fosse ontem quando, pela primeira vez, em 1995, fui à Brasília ver a torre da TV, a Esplanada dos Ministérios, a Catedral e o Congresso Nacional. Catedral aliás que é bem interessante e que talvez teria chamado à atenção de Jung, já que para chegar ao seu altar, para poder aproximar-se da luz divina, é preciso descer, e não subir uma escada, ou seja, para elevar-se é precisa primeiro dar as costas ao sol, , afundar-se, descer em direção à escuridão.

E me lembro, especialmente, da emoção que senti ao olhar para essa Bandeira que flutuava atras, e que mesmo não sendo a do meu país me seduzia de tanta majestade e impunha respeito e esperança no futuro de uma nação, que se dizia então, ainda criança, como aprendendo a caminhar sozinha depois de anos de ditadura. Recordo-me como essa sensação me gerou conforto em relação a minha mudança de Paris para Goiânia: não era tanta loucura assim e, talvez, valesse mesmo a pena dar uma chance a este lugar.

Assim se passaram 27 anos e, no último dia 7 de setembro, assisti na televisão à cerimônia do dia da Independência. Não consegui reconhecê-la nesse pano verde e amarelo que parecia haver perdido toda sua imponência e que se recusava a voar. Quando apareceu um voo de Urubus, de carniceiros que pareciam acompanhar o hasteamento em pano de fundo, me perguntei o quanto simbólico era aquela imagem. Esse evento me incentivou a compartilhar uma pequena reflexão sobre os símbolos e sua dinâmica, como participam de nossas vidas e em especial sobre este, que é o maior símbolo da nação, sua bandeira.

Jung chama atenção de que não devemos confundir sinais com símbolos e os descrevem como a melhor expressão possível de algo relativamente desconhecido: “O símbolo, no entanto, pressupõe sempre que a expressão escolhida seja a melhor designação ou fórmula possível de um fato relativamente desconhecido, mas cuja existência é conhecida ou postulada” (símbolos da transformação, 903)

Para Jung, os símbolos, ao contrário de sinais ou logomarcas, não nascem de uma reflexão consciente, de uma atividade cognitiva e racional, mas da necessidade de expressão de um fato psíquico, inconsciente do qual desconhecemos pelo menos parcialmente a existência ou seu significado.

Todo produto psíquico que tiver sido por algum momento a melhor expressão possível de um fato até então desconhecido ou apenas relativamente conhecido pode ser considerado um símbolo se aceitarmos que a expressão pretende designar o que é apenas pressentido e não está ainda claramente consciente. (JUNG, 2018, p.906)

Em outras palavras, significa que quando somos atraídos por um símbolo, qualquer que seja sua natureza, não nos ligamos a ele porque a imagem ou palavra tem um significado racional, mas porque permite a expressão de uma emoção, de um desejo, de uma vontade que reverbera em nós sem que muitas vezes o saibamos ou percebamos sua importância.

Outro ponto muito relevante para o desenvolvimento de nossa reflexão é que, de acordo com Jung, o símbolo somente permanece vivo num coletivo humano enquanto seu significado sombrio ainda não foi plenamente revelado e incorporado pela cultura, momento a partir do qual sua importância começa a definhar até um possível esquecimento.

Enquanto um símbolo for vivo, é a melhor expressão de alguma coisa. E só é vivo enquanto cheio de significado. Mas, uma vez brotado o sentido dele, isto é, encontrada aquela expressão que fórmula melhor a coisa procurada, esperada ou pressentida do que o símbolo até então empregado, o símbolo está morto, isto é, só terá ainda significado histórico. (JUNG, 2018,  p.905).

E isso é muito interessante para quem procura compreender as dinâmicas humanas, pois ao observarmos a emergência de símbolos e sua adoção coletiva podemos perceber, na popularidade de criações artísticas, nos personagens fictícios ou reais, no crescente de aspirações religiosas e em outros movimentos e aglomerações populares em volta de um determinado discurso, o que está na sombra da sociedade, quais são as dores, as vontades e desejos ocultos num determinado momento da história. Ou seja, a emergência de um símbolo revela a sombra coletiva.

Algumas semanas antes do Dia da Independência houve uma votação no Congresso para avaliar a possibilidade de voltar para o voto impresso, e no mesmo momento em que este assunto está em pauta, quando a nação faz uso do seu extremamente frágil sistema democrático para rever o próprio conceito da participação do povo à vida administrativa, econômica e social do país, o chefe do Executivo coloca blindados para desfilar em frente aos ministérios e ao próprio palácio do Congresso Nacional. 

Ou seja, no exato momento em que o país decide refletir se mantém o recém conquistado “Progresso”, que trouxe a democracia que deu voz à população, acompanhando tendências de evolução do mundo moderno, vem a “Ordem” ameaçar calar-lhe violentamente a boca.

É nossa hipótese que o Brasil sabia, simbolicamente falando, desde sua constituição, como seria sua história, qual seria a trama da sua evolução. Tanto o sabia que a escancarou na sua bandeira, para o mundo inteiro ver, talvez com a certeza coletivamente inconsciente de que os que vivem aqui não enxergariam. Está escrito em verde sobre amarelo, “ordem e progresso”, dentro do azul do céu da cidade maravilhosa do Rio de Janeiro.

Mas todos nós falhamos em entender. E o motivo para isso, é que nos somos humanos e somente enxergamos aquilo que estamos preparados para entender, o resto, esquecemos até amadurecer. Mas a sabedoria popular nos aponta constantemente para nosso erro, sem que percebamos. Está na boca de todos os sábios anciões e pseudo filósofos do Brasil: “vocês nunca tiveram uma guerra”. 

É se há algo que as guerras ensinam, sejam elas, a Guerra de secessão norte americana, a Revolução Francesa e outras bolcheviques ou bolivarianas e talvez hoje o mais recente conflito na Ucrânia, é que não há progresso sem desordem. Para que se possa desfrutar da paz, valorizar um estado de equilíbrio e fartura, precisa ter vivido as inseguranças e as restrições da guerra.

Da revolução francesa de 1789 nasceu uma nova ordem mundial, com o renascimento dos conceitos democráticos esquecidos desde a Grécia antiga, firmando o movimento literário e filosófico iniciado em 1715, “le siècle des lumières”, o Iluminismo, cuja principal meta era permitir ao povo ter acesso ao verdadeiro saber, a liberdade e à felicidade. O mundo começa a se transformar, vendo decair o poder das realezas, germinar novos conceitos político-sociais ainda em uso hoje como as noções de direita e esquerda ou o voto popular, e, especialmente, academias, artes e ciências florescem, livres do jugo das religiões. O humanismo começa mostrar sua cara e logo a escravidão será abolida. Mas, é essencial lembrarmo-nos que este parto de uma nova era da humanidade, este início de uma nova perspectiva de evolução, se deu num banho, num verdadeiro mar de sangue.

A busca por essas novas liberdades, igualdades e fraternidades também justificou assassinar, cortar cabeças, destruir monumentos, incendiar bairros e vilarejos. E, por mais que se possa enxergar uma até justa retribuição a séculos de submissão do povo aos abusos da nobreza e às torturas da inquisição, este episódio histórico é certamente um dos mais sombrios da história da humanidade. Ou seja, foi necessário um caos para destruir uma ordem que era por demais injustamente estabelecida. A luz somente é percebida se acesa no escuro.

Ordem e Progresso não são companheiros, mas um é a sombra do outro. E é justamente essa história de luz e de sombra que nos conta a bandeira do Brasil.

Quando cheguei, me contaram que essa bandeira – que era a uma das mais bonitas que eu já havia visto – representava o país como ele é, como cantado pelo Martinho da Vila, uma aquarela Brasileira, estampada com as cores do sol, do céu, do mar e do verde da nossa amada Amazônia.

Só que a realidade é um tanto diferente, a bandeira nasceu, quando, pelo decreto de 18 de setembro de 1822, se deu ao Brasil “um escudo de armas” para diferenciá-lo do reino de Portugal. As cores foram mantidas da bandeira anterior, o verde da Casa de Bragança, o ouro da Casa de Habsburgo e o azul do Brasão de armas, símbolo do império. Ou seja, todas as vezes que as crianças no início do expediente escolar ou todos os torcedores antes do culto aos deuses da bola redonda cantam o hino nacional, com a mão no peito, acreditando ser uma prova de amor e deferência à sua nação, estão na verdade olhando fixamente, mas sem enxergar, o símbolo de que é realmente seu país: a sobra de um império militarmente imposto às populações autóctones, forçosamente, contra a sua vontade.

A bandeira, como todo símbolo, nos mostra o que gostaríamos de ser para que possamos olhar para aquilo que realmente somos.  Olhamos fascinados para a ela e seu leme de Ordem e Progresso e nos encantamos pelas suas cores, enquanto continuamos olhando sem ver um país tão desigual e violento, sem enxergar suas dores e caos. Parece, então, que ainda não entendemos o seu símbolo e o recado que ela precisa nos dar sobre nossa intimidade coletiva. 

Olhamos e não enxergamos, e isso é muito relevante. Pois precisamos compreender para que seja possível nos entregar ao processo de um progresso que traga a verdadeira ordem. E nessa hora não faz mal querer olhar para os livros de História e lembrar que essa frase, tão importante e tão comum para todos nós, veio do lema do positivismo de Auguste Comte: “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim.” Mas o “Amor” como princípio de todas as coisas foi deixado de lado. Somente foram estampados na bandeira os símbolos do poder e da ganância e, como novamente Jung ensinou, onde impera o poder, não há espaço para o amor e, portanto, não haveria lugar para ele na bandeira.

Seria então por isso que o mote foi truncado? Para que nos lembremos que gostamos de gritar alto a serenata à amizade universal, mas que não conseguimos aceitar que temos, antes de tudo, sede e vontade de um poder pelo qual tomaríamos as armas? Para que recordemos que para o amor não estaríamos coletivamente preparados?

Observemos a sociedade, as ruas das nossas cidades, nossos programas de televisão, nossas estradas, matas e selvas de concretos, como tratamos as minorias e os animais para, talvez, encontrar uma resposta a esta pergunta. Olhamos para aquilo que todos nós sabemos que é a verdade nua e crua: vemos todos os dias, nas ruas e nos noticiários, a constante violência da sociedade brasileira expressa pela pobreza, sujeira e outras discriminações de minorias, mas preferimos viver o mito da nação amorosa, mais “cristã do mundo” e orgulhosa das suas paradas de acolhimento às diferenças. Está selado na bandeira, a realeza, o império e as armas, mas escolhemos viver o mito do Brasil “dessas nossas verdes matas e cachoeiras e cascatas de colorido sutil e deste lindo céu azul de anil.”, como disse Martinho da vila em sua Aquarela brasileira,

Olhamos para a persona coletiva do país, nos apegamos a ela ao ponto de cantar-lhe serenatas, imortalizá-la em poemas e filmes, de sofrer por ela e chorar em estádio, mas sem nunca enxergar a sua real essência, a verdade que vive no seu inconsciente, a dinâmica das suas emoções mais profundas. Amamos a sua cara, mas não queremos sentir suas dores, tal como Cazuza cantou na sua música “Um trem para as estrelas” escrita em parceria com Gilberto Gil: “estranho o seu Cristo Rio que olha tão longe, além, com os braços sempre abertos, mas sem proteger ninguém”.

Jung ensina que isso tudo se deve ao fenômeno da projeção. Quando existem em nós, questões afetivas com as quais não conseguimos lidar, muitas vezes por não termos força ou equilíbrio emocional para isso, e que esses assuntos ainda são muito amedrontadores ou dolorosos, nos apegamos à imagens que os representam. Olhamos para símbolos de todas essas vontades, todos esses desejos e dores que tem uma intensidade com a qual tememos ter que nos deparar em nossa intimidade. Ou seja, nos fascinamos por imagens de fora porque não conseguimos olhar para dentro de nós, como uma forma de não esquecer a sujeira emocional que nossa saudável necessidade de bem-estar jogou para debaixo do tapete do inconsciente. Olhamos para a Bandeira, hipnotizados pela sua aparente beleza e histórias mal contadas, para nos proteger da dor e da culpa que provocaria olhar para realidade do país.

E quando esses conteúdos sombrios, escondidos dentro da gente encontram sintonia com outros indivíduos, acontecem fenômenos de comportamento de massa como desordem de torcedores de futebol, ou loucura coletiva de “groupies” de artistas famosos, mas também como alienação à cultos religiosos ou fanatismo político. Há por traz de toda movimentação de massa, uma tendência, uma vontade arcaica individual que faz com que os que precisam se proteger da sua própria escuridão, tal insetos atraídos por uma falsa luz, se agrupam em volta de quem já botou para fora, para todos verem, suas dores, medos e desejos mais inapropriados. A relação aparentemente absurda de amor incondicionalmente sofrido que um grupo de adolescentes pode expressar para um artista, vem do mesmo mecanismo, atemporal e transcultural que encontramos também na relação insana da torcida com seu time do coração e nos mostra que a intensidade dessa relação afetiva é inversamente proporcional à capacidade de raciocinar a relação. Se não fosse assim, essas paixões morreriam assim que o artista encontrasse um novo par amoroso ou o time começasse a jogar mal. Mas mesmo assim, ganhando ou perdendo continuamos a amar, sem questionar o motivo deste amor, de olhos fechados. Tanto quanto olhamos para a bandeiras e juramos amor ao país do qual é o símbolo, olhamos para sua luz, sem aparentemente olhar para sua sombra, suas dores e questionar a realidade que ela esconde. Como o disse Jung, a aquisição da consciência é um evento recente na evolução da humanidade e “a parte de baixo” do cérebro, o límbico, que lida com instintos e afetos, muitas vezes ainda é mais poderosa que “a parte de cima”, o córtex cerebral que nos confere a habilidade da razão, e ainda nos impede de ter uma percepção clara do mundo como ele é.

Quando um indivíduo sente a necessidade de resolver dores ou dificuldades internas, um dos caminhos possíveis é o da análise, onde ele se obrigará a olhar para dentro, para poder entender o que está projetando no outro, o que faz com que se apegue a algo de forma irracional. Um dos princípios da análise é, após enxergar os mecanismos psíquicos e os fundamentos de atitudes que trazem sofrimento, procurar desconstruir crenças e destruir padrões negativos forjados por sua história pessoal, para poder reconstruir uma base de vida mais sólida, mais de acordo com uma nova perspectiva existencial e visão do mundo organizadas em volta da sua verdadeira essência.


Todo trabalho de investigação começa pela observação, seja o empirismo em ciência ou a anamnese em terapia. É preciso primeiro olhar como estão as coisas para poder entendê-las, olhar para a casa para poder arrumá-la, pois não há como colocar ordem onde não se enxerga a desordem. É justamente assim que acontece a psicoterapia no prisma junguiano: para que se possa evoluir e crescer é necessário tirar o poder da ilusória ordem do Ego e da consciência e dar voz à aparente desordem vital que se esconde no inconsciente. O mesmo precisa acontecer no âmbito coletivo se quisermos ter uma chance de crescimento saudável como nação.  É necessário que o país entre em análise para reconstruir sua identidade ainda demasiadamente influenciada pelos seus traumas de infância, e o primeiro passo é observar.

Por isso os artistas são tão importantes para uma nação, porque, às vezes, sem o perceber, ilustram a sombra e nos oferecem um caminho. Cantou o ex-vocalista do Barão vermelho:

“São 7 horas da manhã
Vejo Cristo da janela
O sol já apagou sua luz
E o povo lá embaixo espera
Nas filas dos pontos de ônibus
Procurando aonde ir
São todos seus cicerones
Correm pra não desistir

Dos seus salários de fome
É a esperança que eles tem
Neste filme como extras
Todos querem se dar bem

Num trem pras estrelas
Depois dos navios negreiros
Outras correntezas”

Esses trens onde todos querem se dar bem, os ónibus lotados do Rio de Janeiro que levam os mais simples para suas jornadas de trabalho em busca à conquista senão de seus sonhos, pelo menos uma melhoria do cotidiano, nada mais são que a evolução dos navios negreiros que trouxeram seus ancestrais.

É preciso olhar para o passado, ressignificar as marcas que a história cravou em nosso inconsciente cultural, para poder ver como encontrar com o presente se queremos ter uma chance de futuro. E é preciso coragem para querer enxergar no Brasil sua desordem e falta de progresso, abraçar a sombra coletiva, tanto quanto procuramos encontrar nossa escuridão individual na terapia, para poder pintar em todas as suas ruas e paredes uma aquarela brasileira com pigmentos de esperança.

Se eu citei Martinho da Vila e Cazuza, quem sabe a cultura popular nos demonstre a sua força: o carnaval e Ary Barroso expõe a todos que tem ouvidos para escutar, a solução para o Brasil se encontra nos livros de história.

“Abre a cortina do passado

Tira a mãe preta do cerrado

Bota o Rei Congo no congado

Canta de novo o trovador

A merencória à luz da Lua

Toda canção do seu amor

Quero ver essa dona caminhando

Pelos salões arrastando

O seu vestido rendado”

Mas tenho certeza de que já estamos no caminho porque, se a bandeira esconde com suas cores uma sofrida realidade, também estão cravados lá o azul do céu do rio de janeiro e suas estrelas, guias de uma navegação rumo ao futuro e, delas, não tiramos os olhos.

Analista em formação: Sebastien Baudry

Analista didata responsável: Maria Cristina Guarnieri.

Referências:

JUNG, C.G. Símbolos da transformação. Vozes: São Paulo, 2018.

Cazuza / Glberto Gil, Um trem para as estrelas.

Matinho da Vila: Aquarela Brasileira

Ary Barroso: Aquarela do Brasil.

Coleção das leis do Brasil de 1822.Decreto de 18 de setembro de 1822

Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1887. p.56

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