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Transtorno de ansiedade por doença, a busca por cuidado como caminho para o amadurecimento

Transtorno de ansiedade por doença, a busca por cuidado como caminho para o amadurecimento

Transtorno de ansiedade por doença, a busca por cuidado como caminho para o amadurecimento

Começa assim: uma dor, um incômodo, uma disfuncionalidade, por menor que seja. Ela se mantém por um período, desaparece, retorna, desaparece. Pode ser também um ruído, um aperto, uma fisgada, uma pontada. “Há algo acontecendo…” diz uma voz interior. Uma sensação desconfortável percorre o corpo. O tempo passa, a sensação continua. “Talvez seja o momento de fazer uma visita ao médico…” diz uma voz interior. No médico, uma descrição detalhada de quando começou, onde pega mais, quanto tempo durou e a intensidade que oscilou. Exames, exames, exames. Um colesterol um pouco alterado, uma pré-diabetes, nada fora do esperado para alguém levemente sedentário e que gosta de uns doces.

Ufa! 

“Parece estar tudo bem…” diz uma voz interior. “Mas…” a mesma voz aponta para a continuidade do sintoma, ou talvez alguma outra sensação que tenha passado desapercebida. A sensação desconfortável percorre o corpo. Uma nova consulta médica.

O que descrevo acima é um possível roteiro de uma crise de ansiedade por doença. Poderíamos substituir a consulta médica por uma automedicação, ou ainda, a evitação de qualquer contato que possa trazer um (não) diagnóstico. Quem convive com isso ou com alguém próximo acometido por isso sabe muito bem o que é.

O transtorno de ansiedade por doença era previamente chamado de hipocondria, sendo hipo do grego hypo e condria derivada do chondros. A origem da palavra é referência ao hipocôndrio, uma cartilagem abaixo do abdome, onde se acreditava ficar as vísceras do humor, dessa forma a hipocondria também era uma denominação para melancolia. Mais tarde, pelo estigma jocoso que a palavra ganhou, passou a se chamar transtorno de ansiedade por doença.

Esse transtorno é caracterizado pela presença de uma preocupação constante com o adoecimento grave e a morte. Pessoas acometidas tendem a interpretar pequenas dores e sinais do corpo como sintoma de um mal letal, incapacitante e oculto. Por mais que pessoas próximas e exames médicos apontem que não há nada de errado, do ponto de vista orgânico ou físico, a pessoa não se livra dessa crença e preocupação, podendo visitar vários médicos de diferentes especialidades na esperança de que alguém descubra finalmente o mal terrível que se oculta em seu corpo. Não raro, duvidam dos médicos e se sentem incompreendidos e injustiçados por estes e por seus próximos.

Outro sintoma observado, curiosamente oposto, pode ser a evitação da área médica. Ou seja, há uma escolha do hipocondríaco de não saber que mal ele acredita que lhe aflige. Prefere a bênção da ignorância mesmo que muitas vezes não haja nada a descobrir de fato. Esse quadro pode levar inclusive à automedicação, que representa um risco real para a saúde. Também comum é a busca na internet por sintomas, que por sua vez, gera ansiedade e pode piorar o quadro, pois sintomas genéricos que podem significar algo grave são um prato cheio para quem é atravessado por esse transtorno. Essa prática ganhou até nome: Cybercondria.

Os dados apontam que o transtorno de ansiedade por doença muitas vezes é um acompanhante de outros transtornos ansiosos e/ou depressivos (DIB, VALENÇA e NARDI, 2006). Dessa forma, podemos pensar que uma pessoa ansiosa, em constante estágio de vigilância tende a interpretar uma dor, um sinal na pele ou qualquer outra mudança no corpo como ameaça grave. Não raro, pode levar seu portador em casos mais extremos a um ataque de pânico. 

A cultura contemporânea idealiza e idolatra um corpo perfeito, sem dores, incômodos e com todos os indicadores dentro dos padrões mais restritos. Além disso, o materialismo e o desejo egóico pelo concreto e tangível faz com que se desvalorizem os sintomas psíquicos. Essa combinação pode gerar um quadro de hipervigilância com o corpo e descuido com a mente.

Para Jung (1985) a alma humana vive unida ao corpo, numa unidade indissolúvel, por isto só artificialmente é que se pode separar a psicologia dos pressupostos básicos da biologia. Ou seja, um ferimento ou moléstia corpórea podem trazer sofrimento psíquico e o sofrimento psíquico pode se manifestar no corpo. Complexos e sentimentos são capazes de mudar a organização das células e os componentes químicos do corpo enquanto a atividade física e medicamentos são capazes de mudar o humor e controlar pensamentos intrusivos. Corpo e alma adoecem juntos.

De acordo com O’Sullivan, 2016: 

O corpo tem inúmeras formas de expressar emoção. O enrubescimento ocorre quando os vasos sanguíneos da cabeça e do pescoço se dilatam e se tornam repletos de sangue. Trata-se de uma mudança física instantânea que é vista na superfície, mas que reflete um sentimento de constrangimento ou de felicidade não expresso. Quando acontece, é impossível controla-lo. Esse ponto é importante. Os rubores denunciam um sentimento e, mesmo quando aumentam o constrangimento de alguém, não é possível contê-los.

O materialismo faz com que tudo que não seja tangível seja ignorado, dessa forma os transtornos e sintomas mentais muitas vezes são minimizados e até ridicularizados. O sofrimento psíquico não encontra, muitas vezes, acolhida e persiste até o momento em que se manifesta como somatização ou algum sintoma mais grave. No transtorno de ansiedade por doença pode ser esse o caso. Como não há maneira de se mostrar ou quando isso é feito, é ignorado, uma doença física é mais plausível, dessa forma, a pessoa afetada está em busca de descobrir o que há de errado com ela. Qualquer coisa é melhor do que a humilhação de um distúrbio psicológico. A sociedade é muito crítica com relação a doenças psicológicas, e os pacientes sabem disso (O’Sullivan, 2016).

Vale um parênteses aqui de que ainda estamos em uma pandemia e obviamente devemos ficar atentos aos sintomas que se manifestam e não ignorar a busca por ajuda médica. E vale dizer que a pandemia aumentou os níveis de sofrimento psíquico e da ansiedade por doença, sendo que agora, o mal da vez poderia ser a própria Covid-19, que tem sintomas muito parecidos com outras doenças menos perigosas. A pandemia foi um gatilho, pois diante de uma doença nova, contagiosa, “invisível” e muitas vezes silenciosa, a ansiedade por doença era até esperada. Aliás, essas são palavras-gatilho: invisível, silenciosa e poderia ser evitada.

Voltando ao tema, o transtorno da ansiedade por doença se caracteriza então por uma hipervigilância do corpo, que se transforma no medo de estar padecendo de algo grave sem que se saiba. A origem desse transtorno não é clara, mas as hipóteses são de que pode ser um traço genético, colateralidade de outros transtornos mentais como a depressão e a ansiedade e uma estratégia infantil de busca a atenção dos mais próximos, afinal, uma doença é algo que mobiliza aqueles que nos amam em cuidado. Há uma doença, um sofrimento, mas não há nada de errado. 

É importante diferenciar o transtorno de ansiedade por doença da Síndrome de Munchausen, em que o paciente simula ou causa em si próprio ou em outros (por procuração) doenças para que tenha a atenção. No caso da ansiedade por doença, não há esse passo a mais, ficando apenas nessa especulação.

Novamente citando O’Sullivan (2016):

A maioria de nós tem consciência de que o estresse aumenta a pressão arterial e nos torna mais vulneráveis a úlceras estomacais. No entanto, quantos sabem da frequência com que nossas emoções podem produzir deficiência grave onde não existe nenhum tipo de doença física? Os transtornos psicossomáticos são sintomas físicos que mascaram o sofrimento emocional. A própria natureza da apresentação física dos sintomas esconde o sofrimento na sua raiz; logo, é natural que os afetados pensem automaticamente em uma doença clínica para explicar seu sofrimento.

Faço esse paralelo entre a hipocondria e a somatização, mas são questões diferentes. O hipocondríaco não apresenta danos, lesões ou algo orgânico que justifique suas suspeitas, apenas sente que seu corpo está sob uma forte ameaça, necessitando de atenção e cuidado constante, sente que há algo de errado, mas não sabe o que é.

O hipocondríaco olha seu corpo sob uma lente da perfeição, ou seja, qualquer desconforto, por menor que seja, pode ser uma falha mortal. O hipocondríaco está sob a influência de um complexo. Um complexo ativo nos coloca por algum tempo num estado de não-liberdade, de pensamentos obsessivos e ações compulsivas […]os complexos não são totalmente de natureza mórbida, mas manifestações vitais próprias da psique, seja esta diferenciada ou primitiva (JUNG, 2002).

O complexo no hipocondríaco não permite que ele veja seu sofrimento mental. Podem ser vários: depressão, ansiedade, pânico entre outros. O corpo então convida ao cuidado consigo mesmo, chamando essa mãe para gestar um ego mais adulto. Na consciência o hipocondríaco aparece como alguém preocupado com a saúde, prevenido e sempre alerta.

Vale lembrar que a “hipocondria” em níveis saudáveis é até bem-vinda. Ela nos orienta para que prestemos atenção em nosso corpo, em nós mesmos caso haja algo errado e, aí sim, buscar uma ajuda médica. Esse movimento de autocuidado, quando extremado, leva ao sofrimento pelo transtorno de ansiedade por doença. Um medo de enfiar o pé na lama do mundo, de ralar o joelho, ou ainda, ver isso como um grande risco à vida. É na intensidade do distúrbio emocional que consiste o valor, isto é, a energia que o paciente deveria ter a seu dispor, para sanar o seu estado de adaptação reduzida. Nada conseguimos, reprimindo este estado de depressão ou depreciando-o racionalmente (JUNG, 2002).

Quem está na sombra do hipocondríaco? Alguém que não se preocupa com a saúde, um descuidado capaz de deixar passar uma doença grave, uma pessoa que não se responsabiliza pelo seu corpo, um para-suicida. Uma pessoa que precisa de muito cuidado, mas não consegue pedir isso de maneira assertiva, ou ainda, não se sente capaz de cuidar de si, precisa da atenção de alguém, uma mãe arquetípica projetada nos profissionais de saúde, mas que precisa ser encontrado dentro de si. Ninguém sabe melhor do que o psicoterapeuta que a mitologização dos pais se prolonga muito tempo através da idade adulta, e só é abandonada após uma grande resistência (JUNG, 2000).

A criança divina que se choca com sua mortalidade, o sofrer existencial se torna algo de errado. “Tem algo de errado pelo fato de eu estar sentindo isso…” E então vem para esse ego a ameaça da morte, aciona-se assim esse complexo, que eu chamaria inicialmente de materno, despertando a busca pelo cuidado, porém olhando somente para o físico, levando o hipocondríaco a buscar os médicos enquanto poderia se beneficiar apenas de uma busca ao psiquiatra ou à terapia. A libido regride ao estado infantil e busca uma mãe externa. Talvez inconscientemente a sensação de desamparo, que causa angústia e sofrimento mentais, se manifestem na hipervigilância e não no sintoma e esse ego sai em busca de alguém que diga que tudo vai ficar bem.

Mal sabe o hipocondríaco que precisa encontrar isso em si mesmo, quando a libido se move e ele percebe que a mãe que busca nos médicos na verdade é a mãe simbólica, que permitirá que, com essa dor, renasça uma nova pessoa. O transtorno de ansiedade por doença pode ser um chamado à transformação simbólica, um chamado ao encontro dessa mãe e dessa mortalidade, da queda do herói à condição de guerreiro. Precisa também buscar em si o pai, que o ensina a enfrentar o mundo, suportar a dor e ver o sofrimento, psíquico e físico, como partes da vida e do viver, e não simplesmente como ameaça.

Na hipocondria o ego vê a dor de viver como uma ameaça à própria vida. Há uma unilateralidade a respeito da vida como evitação da morte. Viver então passa a ser um evitar, prevenir e cuidar. Não há entrega à morte e dessa forma deixa-se de viver. Novamente, temos sim que nos atentar aos sinais, sintomas e chamados do nosso corpo, no entanto, quando estamos o tempo todo vigilantes, vendo a doença como uma falha, estaremos sempre negando os convites da vida real em busca da perfeição. Viver dói.

Mauro Angelo Soave Junior – Membro analista em formação

E. Simone Magaldi – Analista didata

Referências bibliográficas

JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo – Petrópolis, RJ : Vozes, 2000.

JUNG, C.G. A Natureza da Psique /- Petrópolis, RJ : Vozes, 1985.

O’SULLIVAN, Suzanne. Isso é coisa da sua cabeça: histórias verdadeiras sobre doenças imaginárias. 1. Ed. – Rio de Janeiro : Best Seller, 2016.

WIKIPEDIA: Hipocondria, disponível em:  https://pt.wikipedia.org/wiki/Hipocondria#:~:text=A%20hipocondria%2C%20do%20grego%20hypo,padece%20de%20uma%20doen%C3%A7a%20grave, acesso em novembro de 2022.

Transtorno de Ansiedade por Doença por Joel E. Dimsdale , MD, University of California, San Diego Manual MSD, Versão Saúde para Família, disponível em https://www.msdmanuals.com/pt-br/casa/dist%C3%Barbios-de-as%C3%Bade-mental/transtornos-de-sintomas-som%C3%A1ticos-e-transtornos-relacionados/transtorno-de-ansiedade-por-doen%C3%A7a?query=Transtorno%20de%20ansiedade%20de%20doen%C3%A7a , acesso em novembro de 2022.

DIB, M., VALENÇA, A. M, NARDI, A. E. Transtorno de pânico e hipocondria. Relato de caso. J. bras. Psiquiatr. 55 (1). 2006.  Disponível em https://doi.org/10.1590/S0047-20852006000100013 , acesso em novembro de 2022.

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