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A arte de se relacionar com o lado ruim das coisas

Uma matéria da revista New Yorker me chamou a atenção. O título: “Coexisting with the Coronavirus”, em tradução livre para o português “Coexistindo com o Coronavírus”. Você pode lê-la por meio do link https://bityli.com/MqdGb, se desejar.

De forma bem otimista, a perspectiva é a do COVID-19se tornar uma doença endêmica. Portanto, não parece haver no cenário futuro próximo um medicamento superpoderoso capaz de erradicá-la. E não que não estejam sendo injetados bilhões e bilhões de dólares com este objetivo.

O jeito será aumentar nossa resistência imunológica, contar com as vacinas que reduzem os riscos das formas mais danosas da doença, continuar a usar as medidas preventivas que se provaram eficazes, como máscaras, higienização de mãos e o distanciamento social.

Em outras palavras, teremos de aprender a coexistir com a doença.

Esta perspectiva me lembrou as imagens medievais de São Jorge lutando com o dragão. Note que ele não mata o dragão, mas o mantém ali na ponta de sua lança ou espada.

Além do mítico São Jorge, há várias representações de Virgem Maria na qual ela também mantém a serpente ali bem quietinha debaixo do pé. Essa serpente, para muitos, pode sugerir a vitória da mulher casta e obediente, enfim, da “Nova Eva”, sobre a tentação (a que levou à queda do paraíso tinha sido pela sede de conhecimento).

Para outros, Maria não esmaga a serpente, mas se mantém atenta sobre ela. Não deixa de ser um olhar vigilante sobre uma das mais antigas representações do feminino.

O que isto poderia nos sugerir na perspectiva da Psicologia Junguiana? Nesta abordagem que privilegia a conscientização das polaridades dentro de cada ser humano, não há a fantasia de que sejamos todos 100%, digamos, bons. Felizmente o mesmo raciocínio vale igualmente para não sermos 100% ruins.

Haveria em cada ser humano, por assim dizer, elementos de um Hitler. Mas também de uma Madre Teresa de Calcutá. O olhar vigilante, consciente e ético nos permitiria exercer o livre arbítrio para ver se a balança penderia para o nosso lado anjo ou demônio.

Somos formados de luzes e sombras. Muitas sombras. E sombras, como se sabe, é um dos conceitos junguianos fundamentais. Hopcke lembra que nem sempre usar imagens do mundo material para descrever fenômenos psíquicos funciona bem. “No caso da sombra, esta necessidade metafórica se torna uma virtude, pois podemos entender o conceito de Jung de sombra melhor se levarmos a metáfora física muito a sério” (HOPCKE, 2012, p. 95).

Para o estudioso, “o brilho da consciência do eu sempre projeta uma sombra sobre a personalidade de um indivíduo, uma sombra que tem a mesma relação com o poder e as potencialidades do eu que um negativo fotográfico tem com a foto em si” (HOPCKE, 2012, p. 95).

Bom, os mais jovens talvez não entendam mais a metáfora do negativo fotográfico, mas a da sombra continua vigorosa.

Não é fácil olharmos nossas sombras, pois elas consistem em tudo aquilo que queremos evitar, que dói assumir em nós. E que, portanto, projetamos nos outros – o que nos deixa tão ameaçados, irritados, ansiosos com algumas pessoas e situações.

É preciso coragem para coexistir com o que não aceitamos em nós. Como diz Jung, “a sombra é uma parte viva da personalidade e quer comparecer de alguma forma. Não é possível anulá-la argumentando, ou torna-la inofensiva através da racionalização” (JUNG, 2012, § 44).

Este coexistir pandêmico, neste momento, já está deixando explícito manifestações da sombra coletiva na aparição de grupos de indivíduos negacionistas, de pessoas amedrontadas com os possíveis efeitos das vacinas, entre outros que, ao não tomarem a vacina colocam em risco os demais, possibilitando mais variantes e disseminação do vírus. Neste contexto Jung nos remete para a reflexão entre o pessoal e o coletivo, o que é moral e o que é egoísmo.

O que fazer então? “Há problemas simplesmente insolúveis por nossos próprios meios. Admiti-lo tem a vantagem de tornar-nos verdadeiramente honestos e autênticos. Assim se coloca a base para uma reação compensatória do inconsciente coletivo” (JUNG, 2012, § 44).

Afinal, trazemos em nós o nosso passado, isto é, o homem primitivo e inferior com seus apetites e emoções, e só com um enorme esforço podemos libertar-nos desse peso. Nos casos de neurose, deparamos sempre com uma sombra consideravelmente densa. E para curar-se tal caso, devemos encontrar um caminho através do qual a personalidade consciente e a sombra possam conviver (JUNG, 2012b, §132).

[…] a sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem dispender energias morais. Mas nesta tomada de consciência da sombra trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade, tais como existem na realidade (JUNG, 2012c, §14).

Como diz Jung, a partir da aceitação – ou seja, de manter os olhos bem atentos na cobra que coexiste conosco debaixo dos nossos pés — podemos dar olhos e ouvidos ao que não percebíamos antes. E a solução pode chegar por meio de uma nova ideia, de um sonho ou de uma sincronicidade, entre outros.

“Se tivermos tal atitude, forças auxiliadoras adormecidas na nossa natureza mais profunda poderão despertar e vir em nosso auxílio”  (JUNG, 2012, § 44).

Em outras palavras, a terapia lança luzes sobre nossas sombras, mas não as esmaga. Elas continuam lá, integradas em alguma medida à personalidade devido ao processo de conscientização. Mas continuamos mantendo a serpente perto de nós.

Talvez seja por isso que rimos tanto com as comédias. No apagar das luzes, todos nós poderíamos fincar o garfo no último pedaço de doce sobre a mesa. E na volta da energia elétrica ainda nos enganarmos pensando que fizemos um bem para a tia que sofre de diabetes.

Como diz o psicólogo junguiano Waldemar Magaldi, num tocante depoimento pessoal:

Recentemente vivenciei as consequências de projeções sombrias que, na perspectiva de quem projetou, acabou me fazendo sair da identificação projetiva de um Narciso para a de um Zeus. O interessante, apesar de sofrido, é que toda essa manifestação foi e é inconsciente, e nós só conseguimos reconhecê-la depois que o conflito perdeu a potência, porque enquanto nós estamos sendo dominados pelos complexos nos tornamos simples marionetes dele.

Mas, de qualquer modo, agora reconheço que no que diz respeito à minha relação com a pessoa que protagonizou essa história sombria, eu estava realmente agindo como um Narciso. Um indivíduo inerte e apático, encantado consigo mesmo, sem ter consciência disso, e que deixa os outros como ecos, desesperados e muitas vezes apaixonados pelo Narciso arrebatado com a sua própria imagem, sem saber que o reflexo espelhado no lago é ele mesmo (MAGALDI, 2018).

Acho que todos temos nossas histórias sombrias. Dolorosamente sombrias. E que a relação é fundamental para o processo de autoconhecimento. Inclusive a autorregulação acontece na relação com o outro.

Às vezes, porém, é preciso ter humildade para nos permitir agir de forma humana conosco mesmos, estabelecendo limites do que é suportável para nós num dado tempo e espaço. Isso, a meu ver, vale inclusive para os atendimentos. Somos humanos e temos de ter a generosidade de admitir que há casos que por variadas questões não damos conta de atender. Mais digno é encaminhar para outro/a colega. Até Jung fazia isto.

Num mundo que pede visibilidade e alta performance o tempo todo, é preciso coragem para se permitir ser vulnerável em algum momento. Nem que seja consigo mesmo. Nem que seja na segurança do têmeno, o recinto sagrado do setting do consultório da terapia.

Neste momento, me parece ser esta questão da coexistência que a pandemia está a mostrar. Afinal, este vírus que virou o mundo de cabeça para baixo nos últimos dois anos vai continuar existindo conosco, gostemos ou não.

Monica Martinez – Analista em formação pelo IJEP

Analista Didata: Waldemar Magaldi

Para saber mais:

HOPCKE, R. H. Guia para a obra completa de C. G. Jung. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo (OC 9/1). 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012a.

JUNG, C. G. O símbolo da transformação na missa (OC 11/3). 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012b.

JUNG, C. G. Aion: estudo sobre o simbolismo do si-mesmo (OC 9/2). 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012c.

MAGALDI, W. Uma história sombria. Disponível em: <http://www.waldemarmagaldi.com/uma-historia-sombria/>. Acesso em: 24 jul. 2021.

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