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A Criança invisível – Santa Dulce e os Coringas contemporâneos

Hoje, 13 de outubro/2019, é um dia especial! Devido a comemoração festiva do Círio de Nossa Senhora de Nazaré e da canonização da Santa Dulce dos Pobres, logo após o dia da Padroeira do Brasil e dia das crianças. Neste contexto, acabei de assistir os filmes Coringa e, tardiamente, Rocketman, biografia do cantor Elton John. A soma desses afetos que vivenciei desencadeou fortes emoções e reflexões, que tomo a liberdade de compartilhar para quem se interessar.

A palavra que mais me atravessou foi: INVISIBILIDADE. Há muitos anos escrevo textos e comento nas aulas que esse é o drama do homem contemporâneo, com sua miserabilidade egoísta, devido ao contínuo estado de alarme, ou por já estar excluído ou pelo medo da exclusão social e do abandono, sem perceber que o abandono e a exclusão começam em nosso íntimo, ao deixarmos de ver nossa criança interior e, consequentemente, nossa alma, porque nos desconectamos dos aspectos saudáveis do complexo materno, onde o cuidado, o acolhimento, a atenção, a nutrição – física e espiritual – e amor são praticados e aprendidos.

Do ponto de vista da psicologia analítica de Carl Gustav Jung, a conexão com a criança interior é que irá possibilitar o surgimento da potencialidade do velho sábio, permitindo que toda potencialidade criativa e ética estejam associadas, possibilitando o estado de alegria do viver, mesmo quando surgem obstáculos. Bem diferente do que nossa atual sociedade capitalista estimula, que é a identificação com o Puer Aeternos, o Peter Pan, da terra do nunca, lugar em que o cantor Michael Jackson, uma outra criança abandonada, se refugiou para tentar lidar, literal e patologicamente, com suas criança ferida, reproduzindo mais feridas nas crianças que ele recebia. A relação com a criança interna não tem nada a ver com a identificação com ela. Essa relação exige distanciamento emocional, para compreendermos que tudo que fizeram ou deixaram de fazer faz parte do nosso caminho evolutivo, e o que mais importa é o que faremos com isso.

“Em todo adulto espreita uma criança – uma criança eterna, algo que está sempre vindo a ser, que nunca está completo e que solicita cuidado, atenção e educação incessantes. Essa é a parte da personalidade humana que quer desenvolver-se e tornar-se completa” (Jung, O Desenvolvimento da Personalidade, p. 175)

A criança saudável é séria com sua diversão. Lembrando que diversão tem a ver com diversidade e a patologia da criança é que leva para a adversidade, o caminho da divisão diabólica, ao invés da integração simbólica. Desta forma, divertir equivale a integrar o diverso, com entrega, compromisso e ritmo. Bem diferente do que acontece com o Puer, onde as relações são efêmeras, líquidas e vazias, apesar de espetaculares. Na dimensão opositiva do Puer está o Senix, o velho ranzinza e sectário, que não tem paciência para nada. Esse é o futuro que nos espera, caso continuemos nesta dinâmica, um amontoado de velhos excluídos e doentes, por deixarem de consumir o supérfluo, passam a consumir os serviços de saúde, aguardando o chamado da morte sem nunca terem vivido. Isso me fez lembrar do livro: A morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstói.

Quando deixamos de lado os aspectos saudáveis do arquétipo da criança, a meu ver, também estamos com dificuldades em lidar com os benefícios positivos do complexo materno. Essa situação reflete na falta de cuidado, na exacerbação do medo e na busca desenfreada e iludida de poder. Mas, o que mais impacta negativamente é o distanciamento do processo de individuação, caminho teleológico para a realização humana, em busca de sentido e significado existencial, por meio do servir, como Jung comenta a respeito deste arquétipo:

“é uma personificação de forças vitais, que vão além do alcance limitado da nossa consciência, dos nossos caminhos e possibilidades, desconhecidos pela consciência e sua unilateralidade, e uma inteireza que abrange as profundidades da natureza. Ela representa o mais forte e inelutável impulso do ser, isto é, o impulso de realizar-se a si mesmo” (Jung, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, página 171, p. 289).

Em Rocketman, quando o cantor Elton Hércules John, com muita visibilidade, apesar de muito doente, numa clínica para dependências, abusos e compulsões, consegue dar o abraço na sua criança interior, Reginald Kenneth Dwight, sempre invisível, tudo se transformou, não muito diferente da trajetória de Fred Mercury, que somente após cair no fundo do poço, adquirir autoconhecimento e amor-próprio, que conseguiu superar os vícios patológicos, apesar que, neste caso, a AIDS não permitiu longevidade. Bem diferente do que aconteceu com Arthur Fleck , com seu complexo materno negativo e total invisibilidade social, após tantos abusos, inclusive do Estado que deixou de tratar e medicar seus transtornos  psíquicos, ultrapassou o limite, na forma do personagem Coringa, que passou a existir, ou seja, ter visibilidade, apesar de patológica, como estava acontecendo com Elton John.

Neste contexto que as comemorações e festividades para as variações da imagem arquetípica da Grande Mãe se justificam. Graças a essa conexão que conseguimos, mesmo que de forma inconsciente, recordar nossa criança interior. O problema é que, com tantos estímulos artificiais, efêmeros e descartáveis, rapidamente voltamos para nossa dimensão egoísta, invisíveis e cegos para não vermos os sofrimentos alheios, assim também fugimos dos nossos, investindo e desperdiçando toda a vida apenas para as questões materiais da sobrevivência, da competição, do acúmulo, do prazer efêmero. Infelizmente, cada vez mais, sem amor e compaixão, como foi o legado da vida da agora Santa Dulce dos Pobres, que lutou para dar cuidado, inclusão e visibilidade para as crianças mal-amadas, sofridas e abandonadas, nossos coringas contemporâneos, nosso futuro será nefasto!

13 de outubro de 2019

Paz e Bem, graças ao reconhecimento e aceitação consciente da Guerra e do Mal que habitam em nós!

WALDEMAR MAGALDI FILHO. Psicólogo, especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática, Arteterapia e Homeopatia. Mestre e doutor em Ciências da Religião. Autor do livro: “Dinheiro, Saúde e Sagrado”, Ed. Eleva Cultural, coordenador dos cursos de especialização em Psicologia Junguiana, Psicossomática, Arteterapia e Expressões Criativas do IJEP – Instituto junguiano de Ensino e Pesquisa, oferecidos em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.

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