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A doença do dragão

A doença do Dragão ou ganância é um tema arquetípico, faz parte de cada um de nós, em maior ou menor intensidade. Tudo depende dos complexos ativados, nossa estrutura psíquica, ética e moral, além das influências que sofremos, seja individual ou coletivamente. Os contos: O Hobbit, Rumpelstiltskin e o Dragão Relutante foram usados como exemplos, entretanto, a ganância é retratada em diversos contos, mitos e histórias fictícias ou baseadas em fatos. Reconhecer nossas ambições e analisá-las é um passo importante para o autoconhecimento. Como nos disse Jesus - "Onde está o seu tesouro, aí estará também o seu coração."

A doença do Dragão ou ganância é um tema arquetípico, faz parte de cada um de nós, em maior ou menor intensidade. Tudo depende dos complexos ativados, nossa estrutura psíquica, ética e moral, além das influências que sofremos, seja individual ou coletivamente. Os contos: O Hobbit, Rumpelstiltskin e o Dragão Relutante foram usados como exemplos, entretanto, a ganância é retratada em diversos contos, mitos e histórias fictícias ou baseadas em fatos. Reconhecer nossas ambições e analisá-las é um passo importante para o autoconhecimento. Como nos disse Jesus - "Onde está o seu tesouro, aí estará também o seu coração."

O conto chamado O hobbit apresenta a saga de um grupo de anões (12 ao todo), um mago e um hobbit até a Montanha Solitária para resgatar o coração da montanha, uma joia guardada por um terrível dragão. O dragão havia expulsado os anões que habitavam a montanha devido à sua grande riqueza material, atraído pelo ouro daquele povo. Claro que esse pequeno resumo da história contém apenas alguns aspectos apresentados por J.R.R Tolken, mas nos ajuda a ilustrar o que eles chamaram na saga de a “doença do dragão” – a ganância pura, que cega indivíduos, ainda que virtuosos. Todos que se aproximam demais e são sugestionados em seus corações, sucumbem à ganância que o ouro evoca.

Mas será o ouro a causa ou a consequência do complexo?

Os dragões são ambivalentes e relacionados por Chevalier e Gheerbrandt (2020, p. 408-411) ao mal, guardiões de tesouros (como a imortalidade), ao poder divino, símbolo do imperador/rei em diferentes regiões, ligado à produção da chuva e tempestades, associados ao solstício da primavera. Possuem dois aspectos: yin quando metamorfoseado em peixes ou serpentes (relacionados à água) e yang quando se identificam ao cavalo, leão, espadas, fogo e ao sol. A luta do herói e o dragão deixa transparecer o tema arquetípico do triunfo do Ego sobre as tendências regressivas. O herói precisa se fortalecer para vencer o dragão. Em outras palavras, o Ego só pode triunfar depois de ter dominado e assimilado a sombra.

A ideia de que dragões são atraídos pelo ouro e riquezas materiais são difundidas em diferentes contos, em geral, combatidos por heróis como São Jorge. Um conto de fada celta chamado O Dragão relutante (GRAHAME, p. 170-201), apresenta uma história diferente, onde o dragão deseja viver sossegado e fazer poesia, mas a sociedade na qual ele se estabeleceu tem uma imagem sobre o dragão, e chamam um herói para combatê-lo, inventam mentiras sobre donzelas em perigos, desastres, roubos, e mil artimanhas para convencer São Jorge a lutar contra ele. São Jorge conhece o dragão e com ele estabelece um acordo de luta simulada, assim ele mantém sua fama de herói e o dragão será redimido e convertido, podendo assim fazer parte da comunidade. Dessa forma, querendo ou não, o dragão precisa ser submetido à persona que o compete. Irônico, não acham?

Sobre o símbolo dos dragões já temos algo em que nos apoiar. Agora podemos falar um pouco sobre o dinheiro. Para Simmel (1900/1907), o significado do dinheiro não reside nele mesmo, mas na sua conversão em outros valores. “Nada no mundo objetivo tem uma finalidade se não houver uma vontade” (p. 7), e a vontade acompanha uma série de reflexões, sejam elas práticas ou psíquicas. “Ainda na Idade Média havia, em virtude da extensa produção para o consumo próprio, do tipo de empresa artesanal, da multiplicidade e estreiteza de suas associações e, principalmente, da igreja, havia um número bem maior de satisfações definitivas do que hoje” (p. 8). “O dinheiro é sentido como fim, reduzindo a meios muitas coisas que são fins em si mesmas”. O dinheiro está em toda parte e mede todas as coisas com uma objetividade impiedosa, determinando suas ligações.

Magaldi nos explica que a onipresença do dinheiro transformou o homem, no contexto capitalista, em um ente com características quase divinas. O fascínio provocado pelo dinheiro induziu ao desejo de acumulá-lo. O lucro passou a ser o evangelho e a riqueza material a salvação (p. 286). Essa fala de Magaldi é interessante. A história do “Homem Rico”, em Mateus 19:16-22, Jesus convida um jovem a se juntar a ele: “Se você quer ser perfeito, vá, venda todos os seus bens e dê o dinheiro aos pobres. Então você terá um tesouro no céu. Depois, venha e siga-me”.

Entretanto, quando o rapaz ouviu isso, foi embora triste, porque tinha muitos bens. Se Jesus estivesse entre nós hoje e nos convidasse para uma vida mais simples, usando sandálias nos pés, duas mudas de roupa, para que pregássemos a palavra de Deus, quantos religiosos consagrados iriam com ele? Quantos não tentariam usar sua imagem para ganhar fama, fazer posts nas mídias sociais e tirar alguma vantagem, reduzindo sua filosofia em objeto a ser adquirido e capitalizado?

A ganância é uma vontade exagerada de possuir algo, principalmente bens materiais e riquezas. Precisamos discernir e diferenciar a ambição da ganância. A ambição em si não é um sentimento negativo necessariamente, mas mostra um desejo pungente por algo, seja sucesso, dinheiro, fama, conquistas etc. A ambição é um sentimento propulsor, que leva pessoas a ações e uso da criatividade. Ela em si não seria o problema, mas a sua desmedida sim.

Será que o ouro e o poder realmente nutrem o ser humano e diminuem a sensação de inferioridade e baixa autoestima?

Se assim fosse, a sede pelas duas coisas cessaria com o tempo. Mas o que vemos, em geral, é quanto mais poder e riqueza uma pessoa alcança, maior se torna sua pulsão por eles. E faz sentido, afinal, o complexo ativado precisa de energia para manter-se nessa posição. Para romper essa jornada autodestrutiva é preciso olhar para o outro lado. O contraponto de toda essa materialidade são as coisas do espírito, a generosidade, a compaixão e o desapego.

Em Mateus (6:21), Jesus diz: “Onde está o seu tesouro, aí estará também o seu coração.” Isso sugere que o que valorizamos reflete nossas prioridades. O que nossa alma está buscando? Nosso apego, necessidade de valorização, autoestima, reconhecimento, poder, exibição, vaidade, soberba, superioridade… o que o dinheiro representa para cada um de nós?

Segundo Jung (2013, §197) não há processos psíquicos que ocorram de forma isolada, assim como não existem processos vitais isolados.

Leonardo Boff (1999, p. 146-147) reforça essa ideia quando fala sobre o cuidado integral do ser humano como busca por equilíbrio entre corpo, mente e espírito. Assim, precisamos evocar o médico (corpo), o terapeuta (mente) e o sacerdote (espírito) interno e externo, quando necessário. E integração exige encontros com as partes iluminadas e sombrias de nosso ser. A inveja, a feiura, a dor, o desequilíbrio, a compulsão, o ódio e rancor, o deboche e escárnio, a ambição e ganância estão presentes em todos nós.

Para ilustrar, trago outro conto que fala sobre a ganância. Em um reino, um moleiro, que deseja parecer mais do que é, diz ao rei que sua filha é capaz de transformar palha em ouro; o rei, muito ganancioso leva a jovem e a tranca em salas cheias de palha para serem fiadas e transformadas em ouro. Em seu desespero, ela é ajudada por um duende que troca o favor pelas posses da moça. No terceiro dia, sem ter mais nada o que oferecer ao duende para transformar a palha em ouro, ele pede que ela entregue seu primeiro filho. Ela assim o faz para não ser morta pelo rei.

O rei se casa com ela após o terceiro sucesso alcançado pela filha do moleiro, achando que fez um ótimo negócio, e após um ano, o casal tem um filho. O duende retorna para cobrar a dívida da filha do moleiro, que agora é rainha. Vendo o choro da mulher, o duende se comove e dá 3 dias para que ela adivinhe seu nome. A rainha pede que procurem por todo reino os mais diferentes nomes, até que no terceiro dia, um de seus soldados escuta um duende cantarolando que iria fritar, fritar, fritar com muita empolgação, e que seu nome era Rumpelstiltskin, a rainha fala seu nome e salva a criança.

Esse conto é interessante pois mostra diferentes aspectos da ganância. O querer ser mais do que somos de verdade, como o moleiro diante do rei, entregando a própria filha ao infortúnio. Quantas vezes nos apresentamos com personas para ganhar status social, político ou familiar, mostrando faces que não são nossas. Uma atitude com ego inflado, cheio de si, em contraponto ao vazio e carência interior. Outra nuance da ganância é o desejo pela posse do material, do ouro ou daquilo que não nos pertence, como o rei ao exigir que a moça produzisse ouro usando restos de palhas, usando recursos alheios para se beneficiar em troca da própria sobrevivência. Alguns se justificam usando frases como a de Maquiavel – os fins justificam os meios – não importa como e sim alcançar a riqueza material. Quantos de nós não sacrifica tudo, inclusive a própria vida, para encher os bolsos com moedas de ouro?

Já o duende, personagem ambíguo, que se apieda e ao mesmo tempo se aproveita da vulnerabilidade vivenciada pela jovem. Seu desejo real era tomar a criança que a moça pudesse ter no futuro (e tudo o que isso possa simbolizar), se apropriando de algo que não lhe pertence e que não deveria ser seu. Por sorte, a jovem, em sua busca, encontra a solução para o enigma do duende, senão, teria perdido seu filho, parte dela mesma, como a esperança, o amor, a criatividade e a capacidade de renovação. Seja em que roupagem a ganância desponte em nossas vidas, ela é um aspecto sombrio com ligações profundas aos complexos.

A constelação de um complexo ocorre de forma automática, não temos controle e nem podemos deter por vontade própria.

É o complexo que nos toma quando estão cheios de vigor e energia psíquica, perturbando a consciência. Quando ele está ativo, ele nos coloca em um estado de não liberdade, de pensamentos obsessivos e ações compulsivas. Os complexos aparecem de forma personificada, quando são reprimidos por uma consciência inibidora (JUNG, 2013, p. 196-203). A etiologia dos complexos pode ser um trauma, um choque emocional, um conflito moral que arrancou fora um pedaço da psique. São aspectos parciais da psique dissociados. A inconsciência do complexo pode inclusive assimilar o eu gerando uma identificação com o complexo (JUNG, 2013, p. 210-211).

A ganância como um comportamento desmedido só poderia estar sob posse de um ou mais complexos, sejam eles dotados de tonalidade individual ou coletiva. A ganância é como uma fome sem saciedade. Enquanto não reconhecemos nossa ganância e em quais aspectos de nossa vida ela se manifesta, ela permanece nas sombras influenciando nossa vida. Como na história do Hobbit, o dragão precisa ser morto, o coração da montanha devolvido, a justiça e a ética das relações restabelecidas para que tudo se estabilize no reino dos anões, humanos e elfos. E o duende Rumple nos ensina, precisamos dar o nome certo para conseguir êxito. Dar nome às coisas e assumi-las como nossa responsabilidade, especialmente naquilo que nos compete, aprendendo e integrando a sombra e reduzindo a energia fornecida ao complexo.

Magaldi (2014, p. 293-294) menciona que “é na tomada de conhecimento sobre o mundo, e principalmente sobre si mesmo, que está a possibilidade de cura tanto do indivíduo quanto da coletividade”. É por meio do conhecimento que podemos aplacar a ganância e o trinômio: interesse, sedução e corrupção. Através de mais educação e conhecimentos, tanto para questões filosóficas quanto sobre si mesmo(a), podemos rever os rumos que o mundo vem tomando. O(A) ganancioso(a) tem um grande potencial para as coisas do espírito. Portanto, é preciso tomar cuidado para não resvalar no polo oposto e estacionar nele de forma compensatória.

Sem a integração do belo, bom e verdadeiro, com conscientização de nossas sombras fica complicado rever nossa relação com o dinheiro e o sagrado, e seguir pelo caminho da individuação.

“De nada vale a manutenção tecnológica da vida, ou acúmulo de dinheiro, sem a relação com o sagrado, porque sem ele continuaremos no barro, apesar da aparente saúde. Sem a união da conquista do prazer com ética e ciência, continuaremos dominados e lutando contra as nossas neuroses”. (MAGALDI, p. 292, 2012)

Me. Michella Paula Cechinel Reis – Membro analista em formação pelo IJEP – Brasília

Dra. E. Simone Magaldi – Membro Analista didata

Referências:

BIBLIA DE ESTUDO ALMEIDA. Barueri, SP: Sociedade bíblica do Brasil, 2006.

BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. 10 ed. Petropolis, RJ: Vozes, 1999.

CHEVALIER, J.; GEERBRANDT, A. Dicionário dos símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores e números. 34 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2020. 

GRAHAME, K. O dragão relutante. In: Os melhores contos de fadas celtas. São Caetano do Sul, SP: Wish, 2020.

JUNG, C.G. A natureza da psique: a dinâmica do inconsciente. 10 ed. Petrópolis, RJ: Vozes,  2013.

SIMMEL, G. A filosofia do dinheiro (1900/1907). In: material didático para a disciplina Sociologia IV – Prof. Leopoldo Waizbort. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/109250/mod_resource/content/1/Filosofia%20do%20dinheiro.pdf. Acessado em 29 de setembro de 2024.

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