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A Estranha que me habita: sobre (des)amar a mulher

Buscamos com este artigo refletir sobre a compreensão do feminino e no quanto as mulheres e anima que habita os homens estão amadas, o quanto seus corpos e suas características coletivas e individuais estão (des)conhecidas pelo ser em que habitam. Vamos ainda fazer um passeio nas reflexões que buscam elucidar qual seria o possível caminho de volta, para a nossa essência feminina.

Sim, eu sou a primeira e a última.
Sou a honrada e a desdenhada.
Sou a esposa e a virgem.
Sou a mãe e a filha.
Sou os membros de minha mãe…
Sou o silêncio incompreensível
e a ideia cuja lembrança é frequente.
Sou a voz cujo som reverbera
e a palavra que se repete.
Sou a expressão vocal de meu nome.

(“The Thunder, Perfect Mind” (o trovão, mente perfeita) Nag Hammadi Library, APUD Qualls-Cobertt, 1990, p. 11)

Resumo: Buscamos refletir sobre a compreensão do feminino e no quanto as mulheres e anima que habita os homens estão amadas, o quanto seus corpos e suas características coletivas e individuais estão (des)conhecidas pelo ser em que habitam. Vamos ainda fazer um passeio nas reflexões que buscam elucidar qual seria o possível caminho de volta, para a nossa essência feminina.

Quando as civilizações antigas foram destruídas, bem como suas imagens de barro, seus interesses e seus deuses e deusas ficaram enterrados sob ruínas. Alguns ali permanecem até hoje, no mais profundo da sombra de nossas psiques. Nunca mais a prostituta sagrada, ou a mulher humana que encarnando a deusa, dançava nos templos para excitar, e desta forma estimular a comunicação entre corpo e alma apareceu. Onde ela estará agora? Talvez perdida, ou escondida, e com certeza presa, dentro de algum lugar bem obscuro, de onde todas as chaves foram perdidas.

Mas tudo aquilo que um dia se perdeu, pode novamente ser encontrado. Digo ainda que tudo o que se perdeu quer ser encontrado, da mesma forma que a alma busca a sua realização com e através de nós, naquilo que Jung chamou de processo de individuação.

Os homens antigos podiam ser arcaicos sob muitos aspectos diferentes, mas no que se refere a aceitação e ao entendimento profundo sobre o feminino ou talvez simplesmente sob um dos seus aspectos, e a presença de Eros, através da paixão do amor e até mesmo do sexo, para festejar e homenagear tal crença era comum que as civilizações antigas tivessem cerimônias sexuais sagradas nos templos dedicados as deusas do amor. Mas ficou na contemporaneidade, para nós estudantes e curiosos sobre a alma humana a dúvida sobreo que aconteceu a nossa compreensão da deusa, do feminino Divino, porque a sexualidade da mulher que outrora foi tão explorada, venerada e valorizada, nos dias de hoje é tão degradada e desdenhada? Mais ainda, por que a sexualidade feminina foi desvinculada da espiritualidade, como se fossem opostos, inimigos irreconciliáveis?

Para que possamos fazer um passeio acerca de todo este assunto vamos falar inicialmente sobre a sombra, essa, num conceito psicológico trazido por Jung, trata se de um lado obscuro, ameaçador e indesejado da nossa personalidade. Todos nós no decorrer da formação desta última, ou pelo menos da personalidade consciente, buscamos incorporar uma imagem daquilo que gostaríamos de ser.

Desse modo as qualidades que pertenceriam a essa personalidade, mas que não estão de acordo com a pessoa que queremos ser, são rejeitadas e vem a constituir a sombra. Então o termo sombra se refere a parte da personalidade que foi reprimida por causa do ideal do ego, este é formado pelos ideais ou padrões que modelam o desenvolvimento deste ego assim como da personalidade. Tudo isso é fruto da sociedade, da família, dos grupos com os quais convivemos e das regras religiosas, em outras palavras o espírito da época.

A maioria de nós se reduz para caber, mais ou menos, nestes padrões e consequentemente negamos e reprimimos o ladrão, o assassino, e a prostituta que existe dentro de nós. O código moral vai além, e nos incita a tratar a Alegria, o prazer, o descanso e até mesmo a própria beleza presos, no mais fundo do nosso inconsciente, como se fosse um sacrilégio, como se fôssemos maus por até pensar em tudo isso, se esquecendo que o ser humano é completo, e na sua completude necessita tomar contato com tudo o que há em si.

Todo esse código moral nos estimula a sermos amáveis, tolerantes, sexualmente castos e a rejeitar o nosso lado agressivo, vingativo e de impulsos sexuais incontroláveis. Somos estimulados desde muito pequenos a fazer tudo enquanto for possível pelo outro, em se tratando das mulheres, somos treinadas a servir, a cuidar, a nos manter puras, castas e principalmente, subservientes. (SANFORD, 1988, p. 64)

Não podemos nos esquecer ainda, que na sombra, como bem disse Jung estão muitos de nossos tesouros, pois ali está muito de nosso potencial criativo e energético. Ali, na sombra, está muito de todos impulsos e afetos que podem nos libertar de várias amarras em que fomos trancafiamos. “É como se o ser humano tivesse dentro de si todo o espectro do potencial humano” (SANFORD, 1988, p. 65)

Todos esses aspectos que inicialmente nos parecem chocantes, subversivos e destrutivos, podem ser nossos heróis salvadores, podem nos livrar de situações, trazer nossa completude, nosso sentido de vida, podem até nos dar senso de humor, já que é a sombra que traz este aspecto, pois só ela é capaz de liberar em nós a perniciosidade e o bom humor. Diria ainda mais, o aspecto sedutor e sexual represado principalmente nas mulheres , pode ser Eros, tentando libertar a todas nós do encarceramento, do cerceamento e da falta de energia, que vemos presente em toda mulher que conhecemos.

Nos parece que essa energia é abundante quando se trata do aspecto maternal que habita no feminino, mas quando falamos do potencial gerador, criador e até mesmo organizador, principalmente quando este se refere a si mesma, falta energia até para as atividades mais simples.

É preciso que as mulheres reaprendam a se amar, que elas entendam que podem ir e ressignifiquem o relacionamento com Eros, e que tragam de volta a poesia e o que está faltando em suas vidas.

Mas como poderia se dar este caminho de volta?

É frequente no setting terapêutico nos depararmos com mulheres que se sentem desamadas, ou até indignas de serem amadas, essas pessoas perderam inteiramente a capacidade de amar, uma vez que nunca aprenderam a se amar. No contexto contemporâneo vemos ainda a aquisição de bens materiais ou de poder, oferecendo esperanças falsas sobre a realização pessoal, numa tentativa de ter este sentimento de pertencimento e de amor para consigo mesma.

Vemos ainda um passeio na busca espiritual numa tentativa de diminuir a confusão, os conflitos, a culpa e o desespero, que se traduzem num desconforto, que muitas vezes aparece sob a forma das frases: “sinto um vazio interior”, ou “minha vida não tem sentido, eu simplesmente existo”, ainda “meu corpo está morto” , e, “não me importo com sexo ou nunca senti prazer sexual”.

Em seu livro a prostituta sagrada, Qualls- Corbett, associa esses sintomas a perda dos atributos da deusa, esta que oferecia aos humanos uma camada importante da vida instintiva, ela trazia alegria, beleza, energia criativa, através da união da sexualidade com a espiritualidade.

Homens e mulheres proliferam a dependência material, os abusos, os relacionamentos tóxicos, os maus tratos físicos e psicológicos, a promiscuidade sexual e de estilo de vida atordoante, como fuga destes aspectos que foram reprimidos na nossa sombra pessoal e coletiva. Isto porque todos nós compartilhamos da ideia da pureza, o próprio termo “prostituta sagrada” não faz sentido, representa para nós um paradoxo, porque não estamos acostumados a associar o sexual com o sagrado, o significado e o símbolo contido nos escapa. Não conseguimos mais conectar e compreender a imagem que representa a natureza vital e a encarnação do feminino, e sem essa imagem, homens e mulheres permanecem sem a profundidade da emoção e a integridade de vida, estes que são inerentes ao cunho de sentimento que envolve a imagem da prostituta sagrada.

Na psicologia de Jung, essas imagens são consideradas como arquetípicas, e uma vez que perdemos, isso nos fornece uma sensação horrível de insatisfação com a nossa cultura, porque sem o feminino vital, para contrabalancear o princípio patriarcal coletivo, há uma certa esterilidade na vida, tanto a criatividade como o desenvolvimento pessoal são asfixiados.

Quando o feminino Divino, a deusa na sua completude, deixa de ser reverenciada e vivida  através de nós, as estruturas sociais e psíquicas tornam-se super mecanizadas, super politizadas, o pensamento, o julgamento e a racionalidade tornam-se fatores dominantes.

As necessidades de relacionamento, afeto, carinho e respeito pela natureza permanecem esquecidos. Não há equilíbrio nem a harmonia, nem dentro nem fora de si mesmos. Com o desprezo pela imagem arquetípica relacionada ao amor apaixonado, ocorre na mente a divisão de valores, em outras palavras a unilateralidade da consciência, resultando em pessoas, mais especificamente em mulheres tristes e mutiladas, buscando desesperadamente se tornarem inteiras e se curarem.

O caminho de volta só vai acontecer quando a mulher, e a anima, presente nos homens, se recordarem de sua natureza, lembrando que “natureza” é tudo aquilo que é inato, real e não artificial, e é preciso que se restabeleça a ligação com Eros.

Podemos ainda citar a própria natureza, essa sendo a manifestação de Gaia, e da própria deusa, fala sobre ciclos, quando nos apresenta as estações, e seus ritmos, muitas coisas que não nos parecem em consonância , afinal nem tudo(ou quase nada) na natureza é sobre perfeição ou beleza.

Mesmo na mais feroz das tempestades, ou na própria morte, ou ainda na competição e no sexo, podemos ver as mãos da Deusa, nos exemplificando que a vida é rica e diversa e busca se realizar em todas as situações. Tanto vemos as pessoas falarem, parafraseando Jung, sobre o processo de individuação e na ampliação de consciência, mas há que entender, que nem tudo é sobre beleza, ordem, controle ou qualquer coisa preconizada pelo espírito desta época.

Temos que inclusive “acolher” nossas dores e tudo aquilo que fizemos para nos reduzir, pra caber em espaços tão pequenos. Nos ferimos e nos abusamos, só para sermos aceitas e amadas, sem saber, que um dia tudo isso volta, como fantasmas, a nos assombrar, nos cobrando de forma implacável, para que retornemos a nossa real natureza, que é de Deusa Mulher, em consonância com a Grande Deusa, esta que não tem o pudor, nem a insensatez de esconder qualquer uma de suas faces, as vezes ela aparece numa figura de luz e candura, tal como Maria e Kuan Yin, outras vezes na face de Kali, ou de Hera, enfurecida e vingativa, ou ainda nas faces de Morgana e sua sabedoria, vem ainda na face de Oxum e sua beleza, talvez de Iemanjá que por mais boa mãe que seja não perde sua sensualidade, outras vezes , na face de Hécate e seus cães do inferno ou de Nanã Buruquê e sua lama, que nos cobre a todos relembrando-nos, da fertilidade contida na terra e no submundo.

O feminino precisa resgatar a sacerdotisa, a bruxa e a prostituta, de forma a viver sua completude, a liberar seu potencial e a despotencializar suas feridas.

Primeiro de tudo há que se resgatar o amor, e para tal faremos um passeio nas deusas que representaram as imagens arquetípicas que através de seu símbolo nutrem nossas almas com paixão e fertilidade, que só um dia nos fecundará com tudo aquilo que há em nossa profundeza. A deusa do amor foi conhecida por vários nomes em épocas diferentes e locais diferentes.

Na Suméria ela era chamada Inana, na Babilônia ela era Istar, na Pérsia Anaíta, na Cananéia os hebreus e os fenícios a chamavam de Anat, no Egito era nomeada Ísis, os romanos invocavam Vênus, e os gregos a formosa Afrodite. Na mitologia africana é Oxum, e na indígena brasileira é Rudá (nesse caso um Deus-homem).

Independente do nome e do lugar, a deusa do amor era associada com a primavera, com a natureza desabrochando, com o tempo em que as sementes explodem, e com a beleza. Aliás, a beleza é o componente principal, sua nudez é glorificada, e geralmente são as únicas deusas a serem retratadas nuas, porque o encanto de seu corpo feminino é adorado, muitas vezes com perfume, outras com hinos, e geralmente associadas com o dourado e o ouro, talvez numa tentativa de demonstrar um elemento não corrosivo, como diz Carl Kerényi (2013, p. 71) “algo que não é pesado ou sombriamente terreno…, mas… algo reluzente e lúcido”.

Ela traz a mensagem sobre a consciência do relacionamento e do sentimento. Ainda exemplifica os aspectos da natureza feminina que se manifestam na matéria. A beleza física, a consciência feminina integrada no corpo, isto é, sabedoria instintiva e a capacidade de conectar emoções profundamente sentidas com relacionamentos, que se pararmos para pensar se trata do princípio de Eros, tudo isso está contido na imagem arquetípica da deusa do amor, que carrega como principal atributo a prostituta sagrada.

Essas deusas todas eram consideradas virginais, que dentro da nossa concepção moderna é paradoxal ver elas como virginais uma vez que sempre tinham paixões e amantes múltiplos. Mas acontece que no latim virgo significa solteira assim como também pode significar intacta, inteira. Muito embora o sentido que damos a esta palavra se refere a falta de experiência sexual. No entanto, a deusa neste aspecto de união do sagrado com o profano dos sentimentos traduzidos no corpo está relacionada com estar solteira e estar completa, significando que ela não pertence a homem algum, já que pertence a si mesma.

Não devemos entender que para ser completa a mulher precisa estar solteira, mas sim que ela deve pertencer a si mesma, nesse contexto contemporâneo de mulheres partidas, perdidas e fragmentadas, o único caminho que conseguimos visualizar para que ela retorne a si mesma, para que ela pertença e ame a si mesma é que ela resgate a imagem da deusa, ir aos poucos percorrendo o caminho de observar e reconhecer em si mesma os atributos que lhe pertencem, em outras palavras que reaprenda a se admirar, isso só nos parece possível a partir do conhecimento difícil e muitas vezes doloroso de se conhecer e, ainda se reconhecer neste corpo. Afinal terá que fazer a (re)ligação da psique com o soma.

Porque este ainda é um outro sintoma que observamos na contemporaneidade, o corpo se tornou o receptáculo da sombra, tudo o que ele nos traz está associado a coisas ruins, ele nos traz dor, adoecimento, cansaço, fome e até mesmo a necessidade de sexo e carinho é vista dessa forma, tudo isso terá que ser visto e revisto, olhado com verdade, com amor, com carinho e ressignificado.

Há que se perceber que tudo isso que falamos anteriormente pode ser vivido de outras formas, bem como podemos e devemos perceber que o corpo também é o receptáculo do numinoso, da espiritualidade e do poder fecundo e infinito, que é potência para amar a si e ao outro.

Um bom exemplo de ressignificação de tudo que tratamos aqui está contido na mitologia africana, que fornece matriz para muitas religiões afro-brasileiras, essas calam fundo dentro de nós, pois se trata do substrato que fornece o material para a “alma brasileira”, nessa rica mitologia temos a figura da Pombagira ou Pombogira, que é retratada como uma deusa-mulher alegre, de riso fácil, bonita, vaidosa, vigorosa, sensual, amplamente relacionada a prostituição. Mas esta figura carrega em si como mensagem principal a paixão e o desejo pela vida e um apreço imenso com o autoamor, autovalorização e automaternagem, como componentes essenciais a vida, principalmente das mulheres. Elas vêm no contrafluxo da cultura brasileira, ainda tomada pelo patriarcado e pelo machismo, vem dizer coisas como “viva suas vontades”, “se respeite” ou “vamos defender as mulheres”.

Tem um caráter estimulador e idealizador, principalmente por se tratar de uma potência no campo fecundo e criativo do feminino, que transita no caos, trazendo pro mundo qualquer coisa, é de certa forma um “vir a ser” eterno, se considerarmos seu potencial criativo e fecundo infinitos.

No Livro Ordem e Caos (MAGALDI, 2010, p. 30 a 39), a autora nos fala sobre o caos e a necessidade do seu encontro com Eros, a fim de que o indivíduo consiga fazer a intersecção da potência com a realização, onde o devir, ou “vir a ser” pode ocorrer, esse tempo-espaço onde os opostos se encontrem.

O meu desejo é que este texto e as provocações aqui contidas te levem a reflexão, como está posicionado o feminino dentro de você e quais as suas características que você ama, aliás, será que se ama?

E a Deusa e o próprio sexo, onde estão, como estão e como têm se manifestado na sua vida?

Se lembre que o feminino e seu aspecto amoroso e criativo são a manifestação de Deus sobre o Caos, trazendo a vida, e a própria realidade. A realidade que habitamos e todas as que nos habitam! Boas reflexões!

Profª. Ma. Natalhe Vieni- Analista em Formação no Ijep

Profª. Dra.E.Simone D.Magaldi- Analista Didata e Fundadora do Ijep

Referências:

BOLEN, J.S. As Deusas e a Mulher. 1ª ed. São Paulo: Paulus,1990.

CAROTENUTO, A. Eros e Pathos. 1ª ed. São Paulo: Paulus,1994.

JUNG, C.G. Mysterium coniunctionis. 6ª ed. Petrópolis,RJ: Vozes,2012. 

_______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11ed. Petrópolis, RJ: Vozes,2016.

_______. A natureza da psique. 10ª ed.  Petrópolis, RJ: Vozes,2013.

MAGALDI, Ercilia Simone Dálvio.  Ordem e Caos. 1ª ed. São Paulo: Eleva Cultural,2010.

SANFORD, J.A. Mal: o lado sombrio da realidade. 1ª ed. São Paulo: Paulus,1988.

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