Site icon Blog IJEP

A história de AA e seu entrelaçamento com Jung

Alguns de nós, interessados no pensamento e na história de Jung, já ouvimos falar na troca de cartas entre Jung e o cofundador dos Alcoólicos Anônimos, Bill. Este artigo se propõe a contar, sinteticamente, a história da criação de AA a fim de compreendermos o entrelaçamento entre esses dois grandes personagens e sua influência na criação do AA e seu programa de recuperação para alcoólicos, os 12 Passos.

Alguns de nós, interessados no pensamento e na história de Jung, já ouvimos falar na troca de cartas entre Jung e o cofundador dos Alcoólicos Anônimos, Bill. Este artigo se propõe a contar, sinteticamente, a história da criação de AA a fim de compreendermos o entrelaçamento entre esses dois grandes personagens e sua influência na criação do AA e seu programa de recuperação para alcoólicos, os 12 Passos.

Resumo: Alguns de nós, interessados no pensamento e na história de Jung, já ouvimos falar na troca de cartas entre Jung e o cofundador dos Alcoólicos Anônimos, Bill. Este artigo se propõe a contar, sinteticamente, a história da criação de AA a fim de compreendermos o entrelaçamento entre esses dois grandes personagens e sua influência na criação do AA e seu programa de recuperação para alcoólicos, os 12 Passos.

Era final de novembro de 1934 quando William Griffith Wilson recebeu em sua casa, em Nova Iorque, Estados Unidos, seu velho amigo de bebedeira Edwin Thatcher, mais conhecido como Ebby. Naquele dia, seu companheiro de copo recusaria a bebida sob a justificativa de ter conhecido uma religião. Ainda que Ebby viesse a morrer três décadas depois, devido ao alcoolismo, para Wilson, esse dia representaria o início do fim de uma vida entregue ao álcool. Pouco tempo depois, Wilson cofundaria os Alcoólicos Anônimos onde, paradoxalmente, perderia para sempre seu anonimato, tornando-se o notório Bill de AA.[1]

Os dias seguintes à visita de Ebby, considerado o mais incurável dos alcóolicos, levariam Wilson a buscar o Oxford Group, uma instituição de cunho evangélico responsável pela sobriedade de seu amigo. Esse evento culminaria com sua ida ao Towns Hospital para uma internação voluntária pelas mãos de seu médico e amigo[2], o Dr. William Duncan Silkworth. Em seu segundo dia de internação, Ebby o visitaria, deixando-lhe a receita para a sobriedade, “a fórmula simples e perfeita”: “perceba que você está derrotado, admita isso e esteja disposto a entregar sua vida aos cuidados de Deus.” (KURTZ, p.19, 1991, tradução nossa).

Duas décadas depois, na convenção “Alcoólicos Anônimos Chegam à Maioridade”, de 1955, Bill relataria o que aconteceu após esta visita:

No hospital, Bill viveu uma experiência espiritual, algo como uma autêntica conversão.

Após sair da internação, começou a frequentar o Oxford Group, onde iniciou um trabalho pela recuperação de alcóolicos: o que Ebby havia feito por ele, ele deveria fazer por outros. Assim continuou até que um difícil sábado, em maio de 1935, o levou à beira de uma recaída. Percebendo o perigo eminente, Bill buscou, em caráter de urgência, um alcoólico na ativa para levar sua mensagem, pois essa era a forma encontrada para manter sua sobriedade. Por meio de seus contatos no Oxford Group, conseguiu um encontro, já no domingo, com Robert Holbrook Smith, o Dr. Bob, ou simplesmente Bob. Bill e Bob partilharam suas histórias por mais de cinco horas, numa reunião que viria a ser considerada a primeira dos Alcoólicos Anônimos.

O trabalho de Bill com outros alcóolicos, junto ao Oxford Group, inicialmente não foi bem-sucedido. Os princípios morais rígidos praticados doutrinariamente no contexto do grupo, conhecidos como os 4 absolutos – honestidade absoluta, pureza absoluta, altruísmo absoluto e amor absoluto – tratados como exigências à conversão, eram por demais assustadores para a condição dos alcóolicos. Buscando auxílio para lidar com essa situação, Bill recorreu ao Dr. Silkworth, que, com sua experiência, trouxe-lhe a orientação necessária:

Os conselhos do Dr. Silkworth foram de grande importância para o êxito do encontro entre Bill e Bob e, num sentido prospectivo, para percebermos o início da estrutura do que, futuramente, viria a se tornar os 12 Passos de AA. Nessa mesma ocasião em que aconselhara Bill, o Dr. Silkworth também o encorajaria a não abandonar a estrutura do trabalho que vinha desenvolvendo para a recuperação do indivíduo alcoólico, a qual, àquela altura, fundamentava-se em três principais fontes: o próprio Oxford Group, em William James e em C.G. Jung.

 Bill encontrava-se muito influenciado pela história do tratamento que Rowland Hazard realizara junto a Jung entre 1933 e 1934. Rowland foi o responsável por trazer o Ebby para o Oxford Group em 1934, onde ele próprio encontrou sua recuperação para o alcoolismo. Seu processo remonta à história de sua análise junto a Jung, mais especificamente ao final de seu processo em que, após quase um ano de tratamento, voltaria aos EUA em estado de sobriedade alcoólica, permanecendo por pouco tempo até recair na bebida.

Nesse momento regressaria à Suíça, acreditando que Jung seria sua “tábua de salvação” sendo, porém, surpreendido por suas duras e honestas palavras, que afirmavam não ver “esperanças para ele em novos tratamentos, fossem eles médicos ou psiquiátricos”. Ao ser indagado se haveria ou não alguma esperança para seu caso, Jung respondeu “que poderia haver sim e que esta seria a de tornar-se o sujeito de uma genuína experiência espiritual ou religiosa – em resumo, de uma autêntica conversão”, recomendando, em seguida, “que se colocasse em uma atmosfera religiosa e que esperasse.”

O livro As Variedades da Experiencia Religiosa, de James (1991), que Bill havia lido no hospital em sua última internação, também o havia influenciado sensivelmente. As ideias de James foram, similarmente, de grande importância para Jung que em diferentes momentos de sua obra assim o manifestou:

No livro “Tipos psicológicos”, Jung (2015, p.429) elabora seu pensamento ressaltando que “James tem o grande mérito de ter apontado, pela vez primeira e com certa profundidade, para a extraordinária importância dos temperamentos na formação do pensamento filosófico”, e complementa relatando que “James vai mais fundo, abarca a oposição psicologicamente e tenta uma solução pragmática correspondente”. Nesse momento, ele indica a limitação desta, ou de qualquer outra abordagem, que só compreenda fontes intelectuais, invocando Nietzsche[3], que usou “a fonte intuitiva, libertando-se do puro intelecto na formação de seu arcabouço filosófico.” (JUNG, 2015, p.430).

A questão dos tipos psicológicos, enquanto estruturas típicas e modalidades de função da psique, é de importância ímpar para a compreensão do ser humano em si, assim como o antagonismo dos tipos tem significativa influência nas abordagens científicas, no pensamento religioso, nas interpretações culturais, enfim, nas relações humanas em geral. Nesse sentido, ainda que Jung não tenha concordado que sua obra seja uma cosmovisão, é possível perceber como não há uma clara e definida separação entre sua abordagem – seu método, e seu objeto. Da mesma maneira que o indivíduo psicológico tem uma natureza paradoxal, “nem consciente nem inconsciente, ou melhor, ambas as coisas” (JUNG, 2014a, p.171), assim também deve ser a ciência que pretenda compreendê-lo.

Jung nos traz, portanto, que “é possível enfocar os problemas de modo filosófico e não necessariamente de modo intelectual” (JUNG, 2015, p.430), sugerindo algo como um “método intuitivo”, ao nos descrever o que, se não estivermos avisados, provavelmente não saberíamos dizer se estamos diante de uma descrição metodológica ou diante de uma explanação do funcionamento da psique:

No mesmo sentido em que o pragmatismo foi de grande colaboração para Jung enquanto princípio de abordagem científica, a perspectiva de James acerca das temáticas religiosas também lhe foi de crescida contribuição, limitando-se, naturalmente, pela questão metodológica. Na passagem a seguir, é possível perceber a afinidade das ideias de James com Jung. Por outro lado, nota-se que a abordagem de James não se abre à possibilidade de uma saída criativa para o problema posto, permanecendo estritamente fixada na estrutura intelectual de seu pragmatismo. Ainda que flerte com a possibilidade de uma saída criativa, ao final retorna ao modelo original, proposto por seu pragmatismo, ao sugerir uma abordagem alternada como solução metodológica:

Voltando a Bill, que, naquele momento, somava em si os estudos de James, assim como a percepção do cruzamento destes com a posição de Jung – experenciado por meio de seu despertar espiritual, sua própria e “autêntica experiência de conversão”, e todo o ensino moral de sua prática junto ao próximo, desenvolvidos no Oxford Group, ou seja, um borbulhar de conhecimento e vivências que, agora, desenvolvidos no trabalho de recuperação do indivíduo alcóolico, levariam ao que viriam a ser os 12 Passos: o programa de recuperação que, mais tarde, em 1939 e já com algumas contribuições de Bob, seria lançado na primeira edição do livro de AA (ALCOÓLICOS, 2001). Os 12 Passos são “um grupo de princípios espirituais em sua natureza que, se praticados como um modo de vida, podem expulsar a obsessão pela bebida e permitir que o sofredor se torne integro, feliz e útil.” (OS DOZE, 2018, p.13).

Os 12 Passos de AA

A criação do programa de 12 Passos de AA (ANEXO A), conforme podemos perceber, esteve bastante relacionada a Jung, ainda que indiretamente. Nesse sentido, é interessante notarmos que, não por coincidência, ao empreendermos uma breve análise do programa, é possível elaborarmos uma abordagem de seus passos fundamentada na psicologia junguiana.

Os três primeiros passos do programa de recuperação em AA são, respectivamente: 1º, “admitimos que éramos impotentes perante o álcool – que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas”; 2º, “viemos a acreditar que um Poder superior a nós mesmos poderia devolver-nos à sanidade”; e 3º, “decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos”.

Em alguns círculos das irmandades de 12 Passos, esses primeiros passos são tratados informalmente da seguinte maneira: 1º, eu não posso; 2º, alguém maior que eu pode; e 3º, se eu deixar. Essa forma, ainda mais direta e acessível às vicissitudes da vida de um alcoólico, ilustra seus objetivos, que são, segundo uma perspectiva junguiana: 1º, admissão e aceitação do ego quanto ao seu tamanho e poder, reconhecendo a limitação do alcance de sua razão e vontade; 2º, aceitação e submissão do ego à ideia da existência de um Si-mesmo supremo, este sim, dotado da capacidade para uma orientação superior da vida do Ser; e 3º, rendição ao Si-mesmo.

O início do processo não é algo simples. Nesse sentido, é importante atentarmos para a natureza processual desses passos, que consistem em etapas subsequentes que requerem tempo para serem percorridas. Assim, em um ambiente adequado e protegido, o indivíduo alcoólico tem acesso a reuniões onde escuta partilhas de encorajamento. Estudando a si mesmo pela identificação e desidentificação com as histórias alheias, encontra amparo e aprendizado não só por meio da literatura de AA, mas também pelas experiências daqueles que já conquistaram o que ele deseja: uma vida liberta da adicção pelo álcool.

O tempo, condição do desenvolvimento de qualquer processo, nos remete àquela fala de Jung para Rowland, de que sua esperança seria ter uma experiência espiritual, de conversão, quando lhe recomendou “que se colocasse em uma atmosfera religiosa e que esperasse.” Analisando os dois primeiros passos, podemos perceber como há, inicialmente, um trabalho consciente, por parte do ego. Temos, sequencialmente, a admissão, a aceitação e a submissão. Admissão é ato de reconhecimento de uma verdade acerca do eu, seguido pelo ato de aceitação – a resignação perante tal verdade.

É quando o ego está preparado para aceitar que há algo maior que ele e, enfim, chegar à condição de submeter-se a este algo, essa totalidade que o abarca, o seu Si-mesmo.

Somente após esse trabalho do ego, de submissão ao Si-mesmo, é que o indivíduo alcoólico terá construído um estado de prontidão capaz de levá-lo à rendição, onde a ilusão de controle poderá, finalmente, ceder lugar a um estado de entrega. Segundo o Dr. Tiebout[4] (1953, p.4, apud BURNS, 1995, p. 41), “o ato de rendição é uma ocorrência inconsciente, não provocada pelo paciente, mesmo que ele assim o deseje”, conformando assim, um ato da não ação, é algo que transcende o poder da razão e da vontade. Trata-se, portanto, de um momento, algo que chega para o ego e não o contrário.

Há um conhecido bordão nos círculos das irmandades de 12 Passos que alude a esta ocasião, que diz, com algumas variações: “eu não desisti, eu me rendi”. A rendição é um processo que tem início pela conscientização do ego, mas que o transcende, conforme vimos com Tiebout, pois tem sua raiz no emocional e não no racional. Assim, a rendição tem um poder transformador, podendo, portanto, servir de abertura para uma nova forma de viver, para a realização do eu por meio do Si-mesmo.

O desenvolvimento da personalidade de qualquer indivíduo pode passar por momentos semelhantes aos descritos nos passos; sendo assim, qualquer pessoa está sujeita a processos desta ordem, algumas mais, outras menos. No entanto, para o adicto alcoólico, todo esse processo é mais desafiador, sendo a resistência que enfrentam incomparável. Como coloca Edinger (2020, p.57), “quando lidamos com qualquer problema psicológico sério, lidamos, com a questão do relacionamento entre o ego e o Si-mesmo”.

Em AA, isso fica evidente logo nos três primeiros passos, sendo possível, no terceiro, reconhecermos a chave para a ruptura do comportamento adicto em direção à sobriedade alcoólica: a rendição.

Quando ela ocorre – e, como vimos, isto não depende da vontade do ego – é um momento de inflexão de um longo padrão de inflação, ou mesmo de alienação do ego. Seja como for, trata-se de um estado conhecido por nomes como “estar nas garras do álcool”, “ser escravo da bebida”, etc.

Edinger (2020) utiliza o termo “alienação do ego” para se referir a um estado de desidentificação e não reconhecimento em relação ao Si-mesmo, que ocorre desde a primeira infância e se repete ao longo da vida. Esse processo é necessário para o crescimento do ego e a separação de sua identidade inconsciente com o Si-mesmo, sendo que “ao mesmo tempo, devemos experimentar uma reunião recorrente entre o ego e o Si-mesmo para que seja mantida a integridade de nossa personalidade total.” (EDINGER, 2020, p.29).

A alienação, para um ego estruturado em um padrão de inflação, é um estado imprescindível, de rompimento, para que se possa, então, estabelecer uma relação saudável com seu Si-mesmo, conectando o eu às experiências transpessoais e suas influências arquetípicas sem que haja, dessa vez, a identificação com seus conteúdos, ou seja, sem que volte a ocorrer a inflação, ou, ao menos, sem que se permaneça nesse estado, gerando adoecimento.

O estado de alienação é algo difícil por natureza, pois “vemo-nos expostos aos encontros com a realidade das coisas que a vida nos oferece; encontros que contradizem, de forma constante, as suposições inconscientes do ego.” (EDINGER, 2020, p.29). É um estado onde perdemos as referências e os pontos de apoio, sendo, porém, uma etapa fundamental, podendo servir de ponte para a vivência do Si-mesmo, de maneira que:

O momento que antecede à experiência espiritual de Bill (KURTZ, p.19, 1991, tradução nossa), no Towns Hospital, assemelha-se muito à descrição de Edinger do estado de alienação. Quando a “depressão se aprofundou insuportavelmente”, Bill teve “a impressão de estar no fundo do poço”, em seu deserto, onde, então, Deus teria sido manifestado pela oportunidade da situação. Após “um êxtase que não há palavras para descrever”, Bill relata: “então me ocorreu que eu era um homem livre”.

A alienação, conforme colocado por Edinger (2020, p.68), que cita outros autores, é relacionada a diversas experiências religiosas que precedem o momento da rendição. São João da Cruz a denomina como “a noite escura do espírito”, Kierkegaard como o “desespero” e Jung, como a “derrota do ego”, pois, “a vivência do si-mesmo significa uma derrota do eu.” (JUNG, 1990, p.503). Em AA, este momento é conhecido como “o fundo do poço”, conforme observado no relato de Bill. Não à toa, é condição essencial para que o indivíduo possa iniciar os passos, sendo, nesse sentido, entendido como uma espécie de Passo Zero do programa.

Os três primeiros passos compreendem o início e a base de todo o processo de recuperação em AA. Trata-se do rompimento de um padrão de comportamento adicto que, como vimos, assenta-se na relação do ego como o Si-mesmo. É um enfrentamento a nível arquetípico e, portanto, de dimensões bastante desafiadoras. Compreendido como momento chave do processo, naturalmente relaciona-se com o âmago da questão do alcoolismo.

Uma vez completados esses passos e alcançado um estado de rendição, com o ego em uma disposição consciente de seu Si-mesmo, é chegado o momento de estabelecer uma rota de desenvolvimento para a nova vida que se apresenta, ainda como possibilidade. A partir do quarto passo, o programa de recuperação busca orientar acerca de como construir essa nova condição, assim como torná-la sustentável. O quarto passo marca, então, não apenas a sequência do processo, mas também o início de uma nova fase.

Nessa etapa, o indivíduo deverá buscar construir sua vida fora do vício da bebida. Isso significa que deverá abandonar o isolamento em que vivia, que lhe serviu para que pudesse seguir utilizando o álcool. Em isolamento, foi perdido o contato com a realidade, que agora deve dar-se pela reconexão, que parte do conhecimento de si em relação ao outro, até o estabelecimento de uma dinâmica psíquica saudável do viver.

Então, o 4º Passo diz: “fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos”: uma profunda e honesta investigação moral de si mesmo, das coisas positivas e negativas, portanto, um trabalho de enfrentamento da sombra que é complementado pelo 5º Passo, que traz: “admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas.” Assim, “a finalidade do quinto passo é colocar nossos pensamentos e percepções do momento dentro da realidade” (BURNS, 1995, p.82).

A partilha permite que o movimento aconteça, pois, em isolamento isso não é possível. A outra pessoa é quem marcará o “fim” do quarto passo, servindo como ponte de retorno ao mundo material, à “realidade das coisas”, ao fim do isolamento. Todo o percurso é marcado pela admissão perante Deus como forma a manter o contato consciente com o Si-mesmo, guardando, portanto, o ego mais distante de uma recaída no antigo padrão de inflação.

Até o final, os passos seguem esses mesmos princípios de autoconhecimento, enfrentamento da sombra e busca por um estado relacional harmônico entre o ego e o Si-mesmo. Se examinados em profundidade, revelam diversas camadas de grande conhecimento na lida da vida sob a perspectiva de um alcoólico.

No 6º Passo é dito: “prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter”, seguido pelo 7º Passo onde lemos que: “humildemente, rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições”. Esses passos podem ser compreendidos, psicologicamente, como um apelo à força transformadora subjacente no arquétipo do Si-mesmo, em que os ““defeitos de caráter” podem ser vistos, analiticamente, como o resíduo não transformado de falhas iniciais de desenvolvimento que agora exigem uma força arquetípica para mantê-los sob controle ou transformá-los.” (NAIFEH, 1995, p. 144).

Temos o 8º Passo, que dá sequência ao processo: “fizemos uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e dispusemo-nos a reparar os danos a elas causados”, seguido pelo 9º Passo: “fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem”. Esses passos representam mais um movimento na direção ao não isolamento, onde fazer as pazes pode ter um efeito curativo nas relações materiais.

O 10º Passo é um apelo à constância: “continuamos fazendo o inventário pessoal e quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente”.  Como diz Naifeh (1995, p. 144), a leitura psicológica desse passo pode ser: “nunca se esqueça da sombra”, indicando, portanto, a importância de se conservar no processo, ou seja, praticando os Passos.

Assim também é o 11º Passo, que alude ao caráter de permanência nos princípios do programa: “procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação a nós, e forças para realizar essa vontade”.

Se no 10º passo mantemos a atenção à realidade da sombra, no 11º nos é indicado um meio para permanecermos em contato com o Si-mesmo, nosso guia interior, o “Poder superior a nós mesmos”, o “Deus, na forma em que O concebíamos”.

Assim, o movimento em direção ao outro, ao mundo relacional, dos 8º e 9º passos, vem desaguar aqui no 11º passo, pois, “se quero saber qual é meu contato com Deus, pergunto-me qual é meu contato com as pessoas e coisas em volta de mim.” (BURNS, 1995, p.121).

O 12º Passo é: “tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades”. Dessa maneira, o alcoólico em recuperação pode manter-se distante do isolamento, desenvolvendo-se individualmente pelo ato de servir; fortalecendo, assim, os passos por uma vida em sobriedade alcoólica. Isso significa sedimentar “só por hoje”, dia após dia, o que lhe foi concedido no início do processo, nos passos um, dois e três. Esta mesma condição, agora também lhe abre a possibilidade do movimento em direção ao seu Si-mesmo, ao processo de individuação, pois este “não exclui o mundo; pelo contrário, o engloba.” (JUNG, 2014b, p.187).

Na redação dos passos podemos notar a palavra “Deus” em 4 deles, enquanto “Poder superior” é mencionado uma vez. No último passo, temos a palavra espiritual, utilizada para descrever o “despertar” esperado como consequência exitosa desta programação. Apesar destes números, a irmandade busca afirmar que “o programa de AA não é religioso, mas espiritual” (PEQUENA, 2014, p.238), tanto em sua aplicação prática quanto em sua projeção pública. Nas palavras de Bill, “a teologia de cada um é um assunto totalmente pessoal e cabe a cada indivíduo fazer sua busca.” (PEQUENA, 2014, p.240).

Essa diferenciação foi de muita importância na época da criação de AA para que o programa pudesse congregar religiosos e não religiosos, e também para responder ao contexto histórico-cultural local, de forte religiosidade, vinda inclusive pelo Oxford Group. Dessa maneira, AA buscava uma postura de neutralidade e autonomia, a fim de desenvolver seu trabalho com foco exclusivamente no alcoólico em busca de recuperação, procurando, portanto, não se envolver em nada que o desviasse desse propósito.

Nesse sentido, ainda que AA se autodeclare um programa espiritual e não religioso (ALCOÓLICOS, 2001), isso não o torna, por força de decreto, isso ou aquilo outro. Do ponto de vista institucional, pode até ser assim, mas não é preciso muito esforço, tampouco frequentar as reuniões da irmandade, para perceber que os 12 Passos podem até ser um programa espiritual, mas não deixam de ser a expressão de uma visão religiosa. Este aparente conflito é respondido pelo contexto da criação de AA, conforme explicitado no parágrafo anterior, assim como pela compreensão de uma perspectiva psicológica para a problemática religiosa.

Jung defende em sua obra que a religiosidade habita o mais profundo de nossa psique, fato evidenciado quando afirma que, “se conseguíssemos cortar de uma vez todas as tradições do mundo, toda a mitologia e toda a história das religiões recomeçariam com a geração seguinte.” (JUNG, 2016, p.41). Nesse mesmo sentido busca desenvolver, por meio da abordagem psicológica, o conceito de religião estabelecido pelas igrejas, explicando que:

Dessa maneira, é interessante observarmos como Jung teria dito a Rowland que sua esperança de recuperação seria “tornar-se o sujeito de uma genuína experiência espiritual ou religiosa”, não fazendo, portanto, distinção entre estes termos, pois:

É contra o perigo de um estado tal de inflação e posterior alienação, que as tradições religiosas sempre atuaram para proteger o indivíduo, mantendo-o vinculado à divindade, ou seja, ao Si-mesmo. Jung aborda isso em sua carta a Bill, incluindo os relacionamentos, em nível de comunidade, como forma de proteção à inflação e alienação. Nesse mesmo sentido, atuam o AA e seu programa de 12 Passos, servindo como compartimento de proteção ao indivíduo.

A questão é que, assim como os métodos coletivos protegem o homem dos perigos das profundezas psíquicas, também o privam do desenvolvimento que pode ocorrer pela experiência individual dessas mesmas profundezas. Por isso, a compreensão do alcoolismo e sua relação com o AA e os 12 Passos pode contribuir para a abordagem da questão em setting terapêutico junguiano, servindo, inclusive, de apoio a uma condução responsável na ampliação dos limites eventualmente estabelecidos em um programa para a recuperação da adicção.

Trata-se, em outras palavras, de contribuir com o indivíduo no sentido da construção de sua autonomia pela incorporação consciente da meta de desenvolver-se, também, no sentido de sua individualidade. Um processo que deve guardar todos os cuidados imagináveis para que a fina linha que nos separa da ilusão de poder não volte a ser cruzada. Para um adicto, psicologicamente, é assim que uma recaída tem início.

André Orioli – Membro Analista em Formação IJEP

Waldemar Magaldi- Analista Didata IJEP

Referências:

ALCOÓLICOS Anônimos:a história de como milhares de homens e mulheres se recuperaram do alcoolismo. 4° Edição. São Paulo: Junta de Serviços Gerais de Alcóolicos Anônimos do Brasil – JUNAAB, 2001.

BURNS, John E. O caminho dos doze Passos: tratamento de dependência de álcool e outras drogas. 2° Edição. São Paulo: Edições Loyola, 1995.

EDINGER, Edward F. Ego e arquétipo: uma síntese fascinante dos conceitos psicológicos fundamentais de Jung. 2° Edição. São Paulo: Cultrix, 2020.

JAMES, William. Variedades da Experiência Religiosa: Um Estudo Sobre a Natureza Humana. São Paulo: Editora Cultrix, 1991.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião (OC 11/1). Petrópolis: Vozes, 1978.

______ Mysterium Coniunctionis: Rex e Regina; Adão e Eva; A conjunção (OC 14/2). Petrópolis: Vozes, 1990.

______ O eu e o inconsciente (OC 7/2). Petrópolis: Vozes, 2014a.

______ A natureza da psique (OC 8/2). Petrópolis: Vozes, 2014b.

______ Tipos psicológicos (OC 6). Petrópolis: Vozes, 2015.

______ Símbolos da transformação (OC 5). Petrópolis: Vozes, 2016.

KURTZ Ernest. Not-God: A History of Alcoholics Anonymous. Center City: Hazelden, 1991.

NAIFEH, Sam. Archetypal foundations of addiction and recovery. Journal of Analytical Psychology, 1995, 40, p.133-159.

OS DOZE Passos e as Doze Tradições. São Paulo: Junta de Serviços Gerais de Alcóolicos Anônimos do Brasil – JUNAAB, 2018.

PEQUENA Viagem ao Mundo de AA através dos Artigos do Box 4-5-9 desde maio de 1956. São Paulo: Junta de Serviços Gerais de Alcóolicos Anônimos do Brasil – JUNAAB, 2014. Disponível em: <https://passeamensagem.files.wordpress.com/2015/06/pequena-viagem-pelo-mundo-de-a-a-2-4.pdf>. Acesso em 18 de mar. De 2024.

ANEXO A – Os 12 Passos de AA.

Disponível em: <https://www.aa.org.br/informacao-publica/principios-de-a-a/os-doze-Passos>. Acesso em: 16 de ago. de 2023.

      Admitimos que éramos impotentes perante o álcool – que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas.

      Viemos a acreditar que um Poder superior a nós mesmos poderia devolver-nos à sanidade.

      Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos.

      Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos.

5º      Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas.

      Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter.

      Humildemente, rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições.

      Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e dispusemo-nos a reparar os danos a elas causados.

      Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem.

10º    Continuamos fazendo o inventário pessoal e quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente.

11º    Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação a nós, e forças para realizar essa vontade.

12º    Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades.


[1] O contexto histórico apresentado no presente capítulo está referenciado em: ALCOÓLICOS, 2011; KURTZ, 1991 e PEQUENA, 2014.

[2] Bill havia sido internado outras 4 vezes entre 1933 e 1934 sob os cuidados do Dr. Silkworth que sempre “incluía sua participação nos esforços de seus pacientes, e a deles, nos seus […]”. (KURTZ, p.15, 1991).

Renomado médico, especializado no tratamento de alcoolismo, Dr. Silkworth foi diretor do Hospital Charles Barnes Towns em Nova York e também um grande incentivador de AA, tendo contribuído com seu depoimento, escrito, de que o alcoolismo compreende uma doença do corpo e da mente, que abrange algo equivalente a uma alergia física, assim como um estado de obsessão e de compulsão pelo álcool. Futuramente, publicaria essa perspectiva nas prestigiadas revistas The Lancet e The Medical Journal. (ALCÓOLICOS, p.23-30, 2001).

[3] Antes de chegar a Nietzsche, porém, Jung (2015, p.430), declara: “como precursores do intuicionismo de Nietzsche considero Schopenhauer e Hegel” complementando que, “nesses dois precursores, a intuição estava – se me for permitida a expressão – submetida ao intelecto, em Nietzsche, porém, ela estava acima dele.”

[4] Dr. Harry M. Tiebout foi professor da Escola de Medicina da Universidade de Cornell; presidente da Associação Psiquiátrica Americana, onde apresentou diversos estudos acerca do alcoolismo; tratou Bill para depressão entre 1945 e1955; e foi, também, grande colaborador junto ao AA.

Exit mobile version