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A intimidade e seus secretos demônios

Um mergulho simbólico na etimologia da palavra intimidade nos leva até a alma e à sua necessidade de ser protegida e, ao mesmo tempo, revelada. A intimidade quer ser realizada, compartilhada, mas também quer ser preservada. Como conciliar essa antinomia? Este artigo investiga caminhos de conciliação que vão do temenos analítico a expressões artísticas, mas destaca o valor dos relatos autobiográficos, sobretudo quando transcendem o mero registro dos fatos da vida e se aprofundam corajosamente no como foram vivenciados.

Um mergulho simbólico na etimologia da palavra intimidade nos leva até a alma e à sua necessidade de ser protegida e, ao mesmo tempo, revelada. A intimidade quer ser realizada, compartilhada, mas também quer ser preservada. Como conciliar essa antinomia? Este artigo investiga caminhos de conciliação que vão do temenos analítico a expressões artísticas, mas destaca o valor dos relatos autobiográficos, sobretudo quando transcendem o mero registro dos fatos da vida e se aprofundam corajosamente no como foram vivenciados.

Resumo: Um mergulho simbólico na etimologia da palavra intimidade nos leva até a alma e à sua necessidade de ser protegida e, ao mesmo tempo, revelada. A intimidade quer ser realizada, compartilhada, mas também quer ser preservada. Como conciliar essa antinomia? Este artigo investiga caminhos de conciliação que vão do temenos analítico a expressões artísticas, mas destaca o valor dos relatos autobiográficos, sobretudo quando transcendem o mero registro dos fatos da vida e se aprofundam corajosamente no como foram vivenciados.

O que é intimidade? Sexo? Sentimentos, pensamentos, fantasias, sonhos, não só os que tenho acordado, mas também dormindo, a maneira como me relaciono com amigos mais próximos e parentes… Tudo isso também é intimidade. Tudo o que é íntimo não costuma ser público, mas pode ser, ainda mais em tempos de redes sociais. Por mais pública que se torne, porém, no íntimo, a intimidade sempre ocupará um lugar especial no cômodo da privacidade. Ela não precisa ser segredo, mas muitas vezes é e, por isso, também pode ser confissão. Aliás, normalmente, precisa ser confessada mesmo.

Quando se trata de intimidade, é preciso cuidado e discrição, quase sempre. Sua exposição sem a consideração devida pode ser uma tragédia pessoal. No íntimo, está o que há de mais assombroso e luminoso em nós. Não dá para mexer só com a luz. Quando se mexe com ela, mexe-se com a sombra também. Por isso, todo o cuidado é pouco. Quando se trata de intimidade: exposição e violação podem virar sinônimos. Não há notoriedade, fama nem reconhecimento capazes de nos imunizar contra a exposição inadequada da própria alma.

Etimologia da intimidade

Mas o que a alma tem a ver com isso? Se buscarmos as possibilidades etimológicas da palavra íntimo, tem tudo a ver. Íntimo nasce da união do prefixo latino in (dentro) e do sufixo thymus que, por sua vez, se origina do grego thýmos, palavra que poderia ter diversos significados entre os antigos helenos, incluindo alma e coração. Nesse caso, trata-se de um aspecto mais corpóreo e emocional da alma, enquanto psique (psychē) trata de algo mais etéreo e descorporificado.

Além da alma, thýmos também era o nome dado a um órgão do corpo humano, localizado um pouco abaixo da traqueia, um pouco acima e à frente do coração.

Em português, esse órgão é chamado de “timo”. A semelhança entre timo e thýmos — que talvez não seja mera coincidência dos labirintos da história da nossa língua —, teria inspirado o “mito moderno” de que, para os gregos, a alma era guardada dentro do timo. O que não encontra eco, por exemplo, em Aristóteles. Para o filósofo, a alma (thýmos) ficava no coração.

Como a precisão histórica não é mais importante, para nós, do que o significado psíquico, considero sensato levar em conta também, nesta ampliação, o mito dito “moderno”. Afinal, quem não se recorda de ver alguém, diante de um acontecimento impactante ou numinoso, levar ambas as mãos sobrepostas para a parte superior e central do peito, pertinho do timo (e do coração)?

Aliás, por falar nesse gesto, que evidentemente nos remete à ideia de susto, também há quem associe outra palavra do nosso vocabulário ao timo. Estamos falando da palavra temor, oriunda do latim timor, associada ao verbo timere (temer). A considerar essa hipótese, seria possível dizer que a palavra temor descende do medo humano de ter sua alma violada.

Essa possível relação entre o timo, a palavra intimidade e a alma fica mais divertida ainda quando buscamos saber o que faz, bioquimicamente, essa glândula. Sim, o timo é uma glândula, essencial para o sistema imunológico, sendo responsável pela produção das células T, que identificam e combatem bactérias, vírus e alterações celulares que podem resultar num câncer, por exemplo.

Para não perder o “carreto etimológico”, é importante constatar que o papel das glândulas é produzir e secretar substâncias que atuam para o bom funcionamento do nosso organismo. Aqui me chama a atenção a palavra secretar, parente, claro, de segredar, ambas oriundas do latim secretus, que significa separado.

Falibilidade secretada

É interessante pensar que o verbo secretar costuma ser usado com o sentido de expelir, seja algo incômodo ou com uma nobre função, como no caso do timo. Já o verbo segredar nos remete a um segredo contado, ampliando assim os limites da intimidade entre os que o compartilham. O segredo pode ser algo de que não me orgulho, um desejo perturbador; pode ser algo que fira meus imperativos éticos, algo moralmente censurável ou apenas algo tão enorme e incompreensível que não se pode permitir que caia em ouvidos e línguas insensíveis.

Mas então por que preciso segredar e secretar todos esses “algos”? Para que os segredos não virem veneno a quem o guarda. Secretados, os segredos podem virar células T da alma, imunizando e protegendo o ego do indivíduo contra o vírus da culpa, contra a bactéria da falta de significado, contra o exílio de si mesmo e contra a segregação.

Segredar nos une no humano. Jung explica:

[…] parece que existe como que uma consciência da humanidade que pune sensivelmente todos os que, de algum modo ou alguma vez, não renunciaram à orgulhosa virtude da autoconservação e da autoafirmação e não confessaram sua falibilidade humana. Se não o fizerem, um muro intransponível segregá-los-á, impedindo-os de se sentirem vivos, de se sentirem homens no meio de outros homens […] (JUNG, 2013, §132)

A psicologia analítica parte do princípio de que em mim há muito mais do que eu e que esses outros que me habitam são tão participativos na minha vida quanto aquele que me julgo ser. Porém, a civilização contemporânea se caracteriza por uma cultura egocêntrica. Consideramo-nos donos dos nossos pensamento e sentimentos, mesmo que não os tenhamos produzido deliberada e racionalmente.

O sonho que tenho ao dormir me vem de fontes anímicas misteriosas, ainda assim, tenho dificuldade de reconhecer que ele não é meu. Já escrevi em outros artigos esta citação de Hillman (2010, p.104) — a partir do próprio Jung —, mas ela cabe muito bem novamente: “[…] existem coisas na psique que não são mais ‘minhas’ do que ‘animais na floresta […] ou pássaros voando no ar’”.

A intimidade é povoada por esses “animais na floresta”, por “esses pássaros voando no ar”, que podem nos inspirar, nos encher de energia, mas também podem nos assustar e nos perturbar. Ainda assim, mesmo que nos tragam inquietude, é melhor vê-los. Não enxergá-los pode nos levar à identificação inconsciente com essa fauna, levando-nos a atos impensados que virarão memórias sombrias no relicário de nossa intimidade. Essa fauna é diversa, mas seus “animais” têm algo em comum: por meio do poder misterioso que brilha em seus olhos, são capazes de revelar a fragilidade e a falibilidade humanas.

Intenções divinas, ações humanas

Entre os antigos gregos, havia a ideia de que as intenções (pensamentos, sentimentos, paixões, sonhos, intuições, imaginações etc.) eram dos deuses. Afinal, elas vêm sem aviso e à revelia de qualquer vontade consciente. Já as ações eram dos homens. Os responsáveis por trazer as intenções divinas ao homem eram os daimones, ou “demônios”, palavra que ficou contaminada por um preconceito cristão, mas que, em origem, diz respeito ao que se pode chamar também de entidade, gênio ou espírito.

Sendo assim, o homem grego antigo tinha como missão de vida dar, às intenções divinas, a realização na medida humana. Tentar realizá-las na medida dos deuses e demônios, sem a devida consideração pela condição humana, seria a húbris, a desmedida, a máxima arrogância que o humano poderia alcançar.

Grosso modo e trazendo para um contexto mais analítico, é possível associar os daimones aos complexos e os deuses aos arquétipos. O que identificamos como “eu” seria o modesto complexo do ego. Ao se julgar dono de todos os personagens que atuam no teatro da alma, o ego se distancia da humildade necessária à saúde psíquica do indivíduo (Cf. HILLMAN, 2010, p. 104).

Quanto mais no íntimo, mais universal

Na análise junguiana, a prima materia vem do íntimo. O irônico é que, quanto mais no íntimo se mergulha, mais universal se torna o segredo. Se as intenções são dos deuses, elas são universais e não exclusivamente minhas. É assim que me encontro na intimidade do outro e o outro, na minha. As infidelidades de Zeus, os arroubos tirânicos da enciumada Hera, o incesto de Édipo e outras imagens mitológicas falam a cada um de nós porque, antes, falam para todos nós.

A palavra mito, no grego antigo, quer dizer “narrativa” e, ao narrar nossa intimidade, buscamos compreensão, buscamos amparo no universal para sustentar a nossa íntima individualidade. Também nos salva e redime, nalguma medida, aquele que nos presenteia com seu sincero e corajoso relato autobiográfico. Um poema, um romance, um filme, uma peça, um quadro, todas essas expressões nos fazem sentir que, mesmo sós, estamos acompanhados.

Porém, sejam quais forem as circunstâncias, não é fácil confessar, como escreveu Jung, a própria “falibilidade humana”. Mas tampouco é prudente se escancarar sem nenhuma proteção, deixando a alma vulnerável à ferocidade da fauna daqueles que se perderam na ilusão da certeza moral e unilateral de uma pseudoconsciência.

Entre se proteger e compartilhar

A alma guarda em si a contradição de querer ser protegida e compartilhada. A depender da dimensão e intensidade desse desejo, da aspiração e vocação do indivíduo, nem sempre o temenos analítico será suficiente. Tem-se, então, a necessidade de expressar a dimensão universal do drama individual que se vive, de curar as feridas pessoais com os símbolos atemporais intrínsecos à condição humana, de secretar essa cura para o mundo por meio da arte, dos mitos.

Pessoa (1998, p. 23) versa que “O mito é o nada que é tudo/ O mesmo sol que abre os céus/ É um mito brilhante e mudo/ O corpo morto de Deus/ Vivo e desnudo […]/ Assim a lenda se escorre/ A entrar na realidade/ E a fecundá-la decorre.”

Mitopoeticamente, o homem consegue descortinar seu íntimo a si mesmo e também ao próximo, que pode se ver refletido e “descoberto” na obra. O artista pode encontrar, nos símbolos universais, o antídoto contra a húbris e pode secretar o que alma anseia compartilhar em segredo. Ao lançar mão dos símbolos para contar-se, o poeta não está falseando. Na verdade, encontra os recursos que lhe permitem se expressar da forma mais honesta e, ao mesmo tempo, se proteger. Jung escreve:

É perfeitamente válido e legítimo que o poeta se apodere novamente de figuras mitológicas para criar as expressões de sua experiência íntima.
Nada seria mais falso do que supor que se recorre, nesse caso, a um tema tradicional. Ele cria a partir da vivência originária, cuja natureza obscura necessita das figuras mitológicas. (JUNG, 2013b, §151)

Na clínica analítica, as expressões criativas ou artísticas são imprescindíveis. Por meio dela, analisando e analista trazem, ao campo reflexivo da consciência, seus secretos demônios e têm a oportunidade de se desidentificarem deles, tomando consciência. Quando se é capaz de tal desidentificação, torna-se possível secretar as células T da alma para si e para o mundo.

A alma no mito, não mais no íntimo

É interessante pensar que um dos últimos presentes de Jung à humanidade foi sua autobiografia: “Memórias, sonhos e reflexões”. Jung sempre teve resistências a biografias e autobiografias, achava que não cumpriam aquilo a que se pretendiam: captar a essência do biografado. Para ele, mais importante que os acontecimentos externos de uma vida eram os acontecimentos internos e as biografias se concentram nos fatos externos e não nas vivências internas da pessoa.

Disposto a destacar suas vivências interiores, possivelmente ciente da iminência da própria morte — já passava dos 80 anos — e impelido a partilhar o próprio mito com o mundo, Jung aceitou o desafio autobiográfico e não demorou a se entusiasmar com a jornada:

“Escrever um livro é sempre para mim uma confrontação com o destino. Existe no ato da criação alguma coisa de imprevisível que é de antemão impossível de fixar nem prever. Assim, esta autobiografia já toma um rumo diferente daquele que a princípio imaginara. É por necessidade que escrevo minhas primeiras lembranças e um só dia de abstenção já me causa mal-estar físico. Assim que recomeço ele desaparece e meu espírito retorna à lucidez.” (JUNG, 2021, p. 18)

Contudo, sabedor de sua fragilidade humana, Jung não escondeu o seu timor em ver, em vida, as reações do mundo à sua intimidade compartilhada. Dessa forma, impôs à editora uma condição: que só publicasse sua biografia depois de sua morte… A essa altura, sua alma já estaria em seu mito, não mais em seu íntimo.

Wagner H P Borges — Membro Analista em Formação pelo IJEP

Dra. E. Simone Magaldi — Membro Didata pelo IJEP

Bibliografia:

HILLMAN, James. Ficções que curam — psicoterapia e imaginação em Freud, Jung e Adler. Campinas: Verus, 2010.

JUNG, C. G. A prática da psicoterapia. 16ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

_. O espírito na arte e na ciência. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013b.

_. Memórias, Sonhos e Reflexões. 35ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2021.

PESSOA, Fernando. Mensagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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