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A Psique como uma Biblioteca: Confrontando os Aspectos da Sombra

Este artigo utiliza a metáfora de uma vasta biblioteca para ilustrar a psique humana segundo a Psicologia Analítica, ampliando a relação entre consciência, ego e sombra na busca por autoconhecimento. A metáfora busca facilitar a compreensão das dinâmicas entre o consciente e o inconsciente, destacando o processo de confrontação e assimilação dos aspectos sombrios.

Resumo: Vamos imaginar a psique metaforicamente como uma biblioteca vasta e inesgotável em sua natureza inconsciente. Pensemos juntos a relação do ego e a sombra, ampliando o processo de integração dos aspectos sombrios inconscientes na jornada de autoconhecimento. Para metaforizar o aparelho psíquico dentro da psicologia analítica, é fundamental termos clareza sobre alguns conceitos básicos que o compõem: ego, persona, consciência, sombra, complexos, anima/animus, inconsciente pessoal, inconsciente coletivo, self, arquétipos e instintos.

Embora este artigo não se proponha a explicar ou citar cada conceito e nem se aprofundar em cada um deles, partimos do pressuposto de que o leitor já possui certa familiaridade com esses termos. Ainda assim, muitos podem encontrar dificuldades em compreender como esses conceitos se inter-relacionam. Especialmente quando tentamos visualizar de maneira mais concreta as dinâmicas entre o consciente e o inconsciente, se faz necessário sair da concretude e ir para um mundo metafórico aonde os paradoxos e contradições coexistem. Assim sendo, as metáforas se tornam um recurso valioso para tal.

A Metáfora da Biblioteca

Antes de aprofundarmos a conexão entre os conceitos junguianos e essa biblioteca metafórica, vamos primeiramente expandir essa imagem para que possamos capturar um pouco de sua dimensão e profundidade.

Imagine o aparelho psíquico como uma gigantesca biblioteca, uma construção imensa que se estende por andares superiores e inferiores, com corredores infinitos, prateleiras e seções inesgotáveis, formando um verdadeiro labirinto de conhecimento e segredos. A vastidão dessa biblioteca é impressionante, e seu conteúdo é tão variado quanto profundo, representando a complexidade da psique humana e sua natureza inconsciente.

Nas áreas mais acessíveis, encontramos prateleiras bem iluminadas e organizadas, onde livros dispostos ao nosso fácil acesso, representam o campo da consciência. Esses são os volumes que compreendemos e interagimos diariamente: registros das nossas memórias conscientes, experiências vividas e ideias familiares que revisamos com frequência. No entanto, à medida que nos aventuramos para além desses espaços confortáveis, descobrimos volumes antigos cobertos de poeira, guardados em corredores escuros nas prateleiras esquecidas. Aqui, em meio a essas seções remotas, encontramos conteúdos que representam aspectos menos conhecidos de nós mesmos, partes da nossa história que foram deixadas de lado, livros e artigos que nunca foram publicados ao longo da nossa existência. Esse é o território do inconsciente pessoal, onde habitam os conteúdos esquecidos, negados ou nunca vistos que compõem nossa sombra.

Cada andar e seção dessa biblioteca revela algo único e surpreendente: das experiências mais íntimas aos registros das memórias coletivas, volumes que guardam toda a herança psíquica de nossa espécie.

Envolvendo toda essa vasta estrutura, como se formasse a própria fundação da biblioteca, encontra-se o inconsciente coletivo, o repositório universal onde residem os registros coletivos da humanidade, contendo os arquétipos e instintos que são parte essencial de nossa natureza. Podemos imaginar que esse repositório inclui tudo o que foi registrado pela humanidade ao longo do tempo: desde a escrita cuneiforme nas tábuas de argila dos sumérios, os papiros egípcios, até gravuras entalhadas e manuscritos esquecidos. São registros históricos da evolução que não apenas testemunham a evolução da linguagem e do pensamento humano, mas também refletem os símbolos e narrativas arquetípicas que moldam nossa psique desde tempos imemoriais.

A biblioteca da psique é, assim, uma metáfora para o nosso universo interior: enquanto algumas prateleiras nos são familiares e de fácil acesso, outras estão mergulhadas nas sombras, exigindo dos exploradores mais dedicados um esforço contínuo de descoberta e compreensão. Cada volume oculto e cada corredor desconhecido oferece uma oportunidade de autoconhecimento e compreensão mais profunda de quem realmente somos, desvendando tanto os aspectos luminosos quanto os mais obscuros da nossa alma.

A consciência e o bibliotecário

Na metáfora apresentada, algumas estantes da biblioteca são familiares e estão em áreas de fácil acesso, mas a luz que as ilumina é focada e momentânea, iluminando uma seção de cada vez. Esse espaço representa o campo da consciência — uma área que é acessível e compreensível na medida em que o ego, como um bibliotecário, direciona sua atenção a diferentes pontos. Conforme ilumina uma prateleira, outras partes permanecem fora do foco, sem deixar de existir, aguardando nova atenção. Nas palavras de Jung:

“Por isto, poderíamos comparar a consciência ao jato de luz emitido por um refletor. Só os objetos situados sob o cone de luz é que entram no campo de minha percepção. Um objeto que se acha casualmente na escuridão, não deixou de existir; apenas não é visto. Assim, o fator psíquico de que eu não tenho consciência existe em alguma parte, num estado que, com toda probabilidade, não difere essencialmente daquele em que é visto pelo eu.”

JUNG, 2013, p. 278

Nesse campo consciente, encontramos volumes que são frequentemente acessados, onde estão registradas nossas percepções imediatas, pensamentos racionais e decisões cotidianas. Esses aspectos são organizados e iluminados pelo ego, que dirige a luz sobre eles conforme necessário, mantendo os conteúdos mais acessíveis e prontos para serem utilizados.

Conforme Jung elucida:

“Entendemos por “eu” aquele fator complexo com o qual todos os conteúdos conscientes se relacionam. É este fator que constitui como que o centro do campo da consciência, e dado que este campo inclui também a personalidade empírica, o eu é o sujeito de todos os atos conscientes da pessoa.”

JUNG, 2012a, p. 13

O ego, portanto, desempenha um papel central na organização e na interação com o fluxo de informações. É ele quem seleciona e manuseia os “livros” da coleção consciente, como pensamentos, memórias e qualidades que compõem a base de nossa vida cotidiana. Em sua função, nada do campo consciente escapa ao ego, que se configura como o filtro de todo conteúdo acessível à consciência.

Ou, como Jung pontua:

“Esta relação de qualquer conteúdo psíquico com o eu funciona como critério para saber se este último é consciente, pois não há conteúdo consciente que antes não se tenha apresentado ao sujeito.”

JUNG, 2012a, p. 14

Podemos notar a natureza interdependente entre o ego e a consciência, pois ambos trabalham juntos no processo de autoconhecimento. Eles se complementam, permitindo o processo contínuo de autodescoberta, sem essa colaboração, o processo de ampliação da consciência seria impossível. Vale salientar que, ao falarmos sobre a interdependência entre o ego e a consciência, estamos nos referindo a um ego saudável, flexível e adaptável, capaz de acolher, lidar e interagir de maneira equilibrada com os conteúdos que surgem da psique. Esse ego não é rígido nem autoritário, mas, sim, um mediador consciente que se relaciona com aspectos da personalidade de forma harmônica. Ele possui a capacidade de perceber as nuances entre o consciente e o inconsciente, sem repeli-los ou negar sua existência. Poderíamos falar de um ego disfuncional, que não tem capacidade de simbolizar esses conteúdos, mas isso seria assunto para um outro artigo.

Continuando a ampliação das tarefas do “bibliotecário” que organiza e mantém em constante interação os conteúdos da estante consciente da biblioteca, assegurando que os “livros” que precisamos em nossa rotina estejam acessíveis. Contudo, a função do ego vai além da manutenção dessa área iluminada. Constantemente e inconstantemente, o ego é convidado a se aventurar nos corredores mais profundos e obscuros da biblioteca, onde volumes esquecidos e negligenciados aguardam. Essa procura pelo desconhecido representa a busca de novos conteúdos, e uma aproximação ao campo do inconsciente, onde o ego pode confrontar aspectos da própria sombra. Caso ele escolha ignorar esses volumes mais distantes e desafiadores, muitas vezes eles emergem de forma inesperada e, não raramente, perturbadora.

Integrando/Assimilando os Aspectos da Sombra

O que é essa tal de sombra e onde ela se encontra na biblioteca?

De maneira simplificada, a sombra é composta por todos os conteúdos que foram negados, reprimidos ou não totalmente integrados à consciência. Esses conteúdos podem incluir tanto percepções subliminares, aquelas que não tiveram força suficiente para emergir à consciência, quanto aspectos mais profundos e obscuros da psique. Eles formam o inconsciente pessoal, uma camada do inconsciente que, embora distante da plena consciência, permanece relativamente acessível, podendo ser aproximada por um movimento consciente de exploração. A sombra, de acordo com a perspectiva junguiana, é composta pelos traços e características que a personalidade consciente rejeita, pois a consciência a vê como desfavorável ou incompatível com a autoimagem idealizada que cultivamos. Esses traços podem ser tanto aspectos negativos quanto positivos que ainda não desenvolvidos ou reconhecidos.

Jung descreve a Sombra da seguinte forma: “Sombra é para mim a parte ‘negativa’ da personalidade, isto é, a soma das propriedades ocultas e desfavoráveis, das funções mal desenvolvidas e dos conteúdos do inconsciente pessoal” (Jung, 2008, p. 58). Assim, a sombra reúne aspectos que a consciência preferiria não ver, incluindo características pessoais menos desenvolvidas, ou mesmo aqueles traços que, por diversos motivos, foram reprimidos. No entanto, seria um erro reduzir a sombra a uma parte exclusivamente negativa da psique. Pelo contrário, muitos dos aspectos positivos, ainda não plenamente desenvolvidos ou integrados, encontram-se nela. A sombra pode, portanto, abrigar potências criativas, qualidades ou habilidades que, por uma razão ou outra, foram negligenciadas, reprimidas ou nunca chegaram a emergir na consciência. É como uma seção esquecida de uma vasta biblioteca, onde repousam livros valiosos, ainda não lidos, que guardam um potencial imenso de sabedoria e inspiração.

Neste sentido, é importante reforçar que a sombra não é uma força maligna ou destrutiva. Como explica Jung:

“De um modo geral, a sombra é simplesmente vulgar, primitiva, inadequada e incômoda, e não de uma malignidade absoluta. Ela contém qualidades infantis e primitivas que, de algum modo, poderiam vivificar e embelezar a existência humana; mas o homem se choca contra as regras tradicionais.”

Jung, 2012b, p. 99

Ou seja, embora a sombra contenha elementos desafiadores, também abriga aspectos que podem ser criativos e vivificantes, com o potencial de enriquecer a vida, quando integrados de forma consciente. A integração de aspectos da sombra permite ao indivíduo uma maior autenticidade e vitalidade em sua personalidade, tornando-a mais completa e em harmonia com todos os seus aspectos.

Metaforicamente, na biblioteca da psique, a sombra é representada por aquelas prateleiras escondidas e empoeiradas, que guardam volumes que o bibliotecário preferiu ignorar ou não explorar. Esses livros, ao invés de estarem organizados e visíveis, ficam em áreas pouco acessíveis, frequentemente bloqueadas pela própria escolha do ego de evitar determinados conteúdos.

Alguns desses volumes estão desgastados, com histórias e capítulos que podem confrontar diretamente a imagem consciente que o bibliotecário (o ego) tem de si mesmo. Contudo, entre esses livros, existem também verdadeiros tesouros: qualidades e habilidades não desenvolvidas que, embora esquecidas ou negligenciadas, possuem um potencial imenso para enriquecer e ampliar a compreensão dessa “biblioteca interior”.

Esse material ainda não explorado guarda as partes ausentes necessárias para que a tensão entre os opostos se estabeleça. Ao sustentar essa tensão, pode-se abrir espaço para o surgimento de uma terceira via, um caminho novo que poderá transcender os conflitos internos ou externos.

O Ser Humano sem sombra

Aqui estamos chamando de Ser Humano sem sombra aquilo que Jung, chamou de o “homem sem sombra“, que de forma simplificada é aquele individuo que ignora ou rejeita os aspectos indesejados de sua personalidade, criando uma imagem unilateral de si mesmo como inofensivo ou imaculado. Essa desconexão com os aspectos da sombra é perigosa, pois os conteúdos reprimidos, como impulsos primitivos, desejos inconscientes ou traços indesejados, não desaparecem. Pelo contrário, eles ganham força no inconsciente, manifestando-se de formas destrutivas e inesperadas.

Na contemporaneidade, o ideal de perfeição intensifica a repressão dos aspectos sombrios da psique. A busca incessante por uma imagem impecável, alimentada pelas redes sociais e por padrões de sucesso e estética muitas vezes inalcançáveis, empurram esses aspectos para as “prateleiras empoeiradas” da psique. Esse movimento de negação cria uma desconexão profunda com a totalidade do ser. Em vez de integrar os aspectos sombrios e se aproximar de um eu mais autêntico, muitos acabam presos em um ciclo de repressão e projeção, tornando-se incapazes de lidar com as inevitáveis contradições da vida, pois só o lado luminoso aqui é permitido, assim não atuam como bibliotecários dedicados e diligentes que se aventuram pela extensão inesgotável da biblioteca em busca de seu mito pessoal.

O reconhecimento da existência da sombra é um processo essencial para o autoconhecimento e para lidar com as profundezas da natureza humana que não deveria ser subestimado e nem negligenciado.

Jung nos alerta sobre essa realidade:

O reconhecimento da sombra é motivo de humildade e até de temor diante da insondável natureza humana. E é até bom assumirmos essa atitude prudente, pois o homem sem sombra julga-se inofensivo, e isto justamente por ignorar a sua sombra. Mas quem conhece sua sombra sabe que não é inofensivo, porque é através dela que a psique arcaica e todo o mundo arquetípico entram em contato direto com a consciência, impregnando-a de influências arcaicas.

Jung, 2012c, p. 125

Aqui fica o desafio, refletir sobre a ilusão da “inofensividade” que frequentemente associamos a nós mesmos, especialmente quando negamos nossos aspectos sombrios. Na luta diária de nos apresentarmos como moralmente irrepreensíveis ou conectados diretamente com ideais de perfeição, corremos o grande risco de reprimir partes essenciais de nossa psique, que não desaparecem, mas operam à margem de nossa consciência de maneira incontrolável.

Ignorar a sombra não a torna menos influente. Pelo contrário, como salientado por Jung, é justamente essa falta de reconhecimento que permite à psique arcaica atuar de maneira descontrolada, sendo tomado de assalto por ela ou projetando-a de forma obsessiva ou fanática. Esse contato inevitável entre a consciência e os conteúdos mais primitivos da psique é o que torna perigoso o estado de ignorância sobre a sombra.

Por outro lado, quem começa a reconhecer alguns dos aspectos de sua sombra e admite sua complexidade interna, mesmo que isso exija lampejos de humildade e coragem genuína, pode passar a reconhecer que não é inofensivo. Esse entendimento, longe de ser apenas um fardo, mas também um bálsamo, abre caminho para a integração dos opostos. Essa integração não implica perfeição, mas sim a aceitação de que luz e escuridão coexistem dentro de nós, permitindo que a tensão criativa entre esses elementos produza autoconhecimento e crescimento através de uma terceira via. Essa reflexão dialoga profundamente com as palavras de Jung:

“Portanto, não se chega à claridade pela representação da luz, mas tornando consciente aquilo que é obscuro. Mas isto é desagradável e portanto impopular.”

 JUNG, 2018a, p. 280

A claridade verdadeira, como Jung nos lembra, não surge da idealização da luz ou da afirmação do lado luminoso sobre o lado sombrio, mas da consciência plena, tornando visíveis e dialogando com nossos aspectos obscuros, isso é tarefa desagradável e por isso afugenta a maioria.

Se o indivíduo não confrontar os aspectos da sombra, inevitavelmente serão essas partes que o confrontarão.

Quando alguém evita lidar com seus conteúdos sombrios, como “varrer a sujeira para debaixo do tapete”, esses aspectos acabam acumulando energia ao longo do tempo. Tal como livros esquecidos na biblioteca, esses conteúdos reprimidos tornam-se volumes carregados de energia, acumulando poeira e se transformando em uma presença desordenada, aguardando uma brecha para se manifestar. Eventualmente, esse material reprimido emerge das profundezas do inconsciente, causando um verdadeiro tumulto na prateleira mais organizada e utilizada da “biblioteca”. Assim como agentes externos – umidade, insetos e microrganismos que se alimentam de papel e deterioram os livros – podem comprometer toda uma coleção bem cuidada, os conteúdos sombrios reprimidos podem infiltrar-se e impactar diretamente as partes mais estruturadas da psique, desestabilizando o equilíbrio anteriormente mantido. Nesse momento, o “bibliotecário” é forçado a encarar a desordem que antes preferiu ignorar ou para a qual ainda não estava preparado.

Ao encontrar um aspecto sombrio, é comum surgir a tendência de evitar o confronto verdadeiro, reprimir novamente aquilo que inicialmente veio à tona. Esse impulso de fuga pode bloquear o processo autêntico de assimilação.

Na conscientização da sombra é preciso ter muito cuidado para que o inconsciente não pregue outra peça impedindo uma autêntica confrontação com a sombra. Pode ser que um paciente veja rapidamente o escuro dentro de si, mas no mesmo instante diga para si mesmo que isto não é importante, que é tudo bagatela…

Jung, 2013b, p. 215

Nessas situações, é essencial manter a vigilância e a honestidade consigo mesmo, para não cairmos na armadilha de minimizar ou descartar esses aspectos sombrios, perdendo a oportunidade de assimilação que se apresenta.

Ao invés de ignorar os conteúdos sombrios, o bibliotecário pode, com esforço e investimento significativo de energia, aproximar-se dessas prateleiras escondidas e empoeiradas, onde estão os volumes desconhecidos. Esse movimento de investigação e organização desses conteúdos pode promover um pontapé inicial na compreensão dos próprios pontos cegos, ampliando a consciência.

No entanto, a sombra representa um desafio moral que afeta a totalidade da personalidade, pois reconhecer essas partes ocultas de si mesmo, é algo desafiador por natureza, podendo desencadear grande resistência.

 A sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem dispender energias morais. Mas nesta tomada de consciência da sombra trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade, tais como existem na realidade. Este ato é a base indispensável para qualquer tipo de autoconhecimento e, por isso, em geral, ele se defronta com considerável resistência.

Jung, 2012a, p. 19

Não se deve imaginar que essa a aproximação com esses conteúdos seja simples ou que possa ser instrumentalizada e resolvida de forma rápida, como muitas vezes sugere a sociedade atual. Trata-se de uma tarefa hercúlea: confrontar os aspectos da própria sombra com o intuito de integrá-los. Esse processo não é linear nem segue um padrão universal; ele é singular para cada indivíduo. A jornada em direção à ampliação da consciência e ao enfrentamento da sombra é profundamente marcada pela particularidade de cada sujeito, respeitando o ritmo e a profundidade de cada um em sua experiência pessoal. Jung disse, “a individualidade das pessoas é tão diversa que a integração do inconsciente é sempre diferente em cada caso, não ocorrendo de modo previsível” (Jung, 2013a, p.434).

Assim, não há receita pronta ou “modelo de 5 passos” para lidar com a sombra. O autoconhecimento exige honestidade, paciência e dedicação, pois a integração de aspectos sombrios demanda esforço constante e cuidadoso.

Pensando nesse processo de integração de aspectos da sombra, inicialmente é preciso reconhecer e tornar consciente a existência do aspecto sombrio que se deseja dialogar, o que, sem dúvida, é a parte mais simples. Em seguida, surge o desafio de como expressar esses aspectos de forma consciente e equilibrada. Nas palavras de Marie-Louise von Franz:

“Uma parte do problema é enxergar e admitir a existência da sombra, constatar que alguma coisa aconteceu, que algo irrompeu; mas o grande problema ético surge quando se decide expressar a sombra conscientemente. Isso requer grande cuidado e reflexão para que não produza uma reação perturbadora.”

Von Franz, 2020

Encontrar uma forma de interagir e dialogar com os próprios conteúdos sombrios, os livros proibidos ou censurados, é um caminho profundamente pessoal. Para alguns, essa expressão pode surgir na escrita (pensamento), na música ou nas artes visuais (sentimento), em atividades físicas ou sensoriais como esportes e dança (sensação), ou até em explorações mais introspectivas e simbólicas, como práticas meditativas (intuição). É importante destacar que esses exemplos são meramente ilustrativos e não representam uma fórmula para a integração de aspectos da sombra, pois esse material se manifesta de forma única em cada pessoa e não se permitindo pré-estabelecer maneiras pragmáticas ou diretas por meio de uma atividade “x, y ou z”.

Cada um precisa descobrir, por si mesmo, um modo autêntico de lidar com esses aspectos internos. O essencial é sermos sinceros com esses traços que, quando admitidos, podem provocar desconforto, mas são uma parte legítima de quem somos. Ao reconhecer e acolher esses aspectos que habitam nosso interior, e ao dar-lhes um espaço sagrado em nossa vida, a energia autônoma e compulsória do aspecto sombrio tende a se suavizar, transformando-se e passando a operar de maneira mais consciente e integrada. Von Franz alerta: “É um ato de grande coragem enfrentar e aceitar uma qualidade que não nos é agradável, que se escolheu esconder por muitos anos.” (Von Franz, 2020)

Voltando para metáfora da biblioteca, o “bibliotecário” que se propõe a iluminar e organizar volumes há muito tempo esquecidos no inconsciente enfrenta uma tarefa monumental. Esses livros, representando aspectos ocultos de nossa psique, trazem à tona conteúdos que preferimos evitar: o que há de mesquinho, vil, arrogante ou orgulhoso em nós. Confrontá-los é um ato de coragem, pois exige olhar para os reflexos mais sombrios de nossa natureza humana, um processo que raramente é bonito ou inspirador.

Como Jung afirma:

“Se o reconhecimento da sombra for tão perfeito quanto possível, então surgirá um conflito e uma desorientação, um sim e um não de igual intensidade, que já não podem ser separados por meio de uma decisão racional.”

 Jung, 2014, p.310

Esse conflito evidencia a dualidade intrínseca da psique. Ao trazer à luz os aspectos sombrios, surge uma tensão interna, onde forças opostas — o desejo de negar e o esforço para integrar — se enfrentam em igual intensidade. Essa desorientação não pode ser resolvida por uma decisão lógica ou imediata, mas apenas sustentada e vivenciada, permitindo que uma nova compreensão emerja.

Nessa jornada, o maior desafio é reconhecer que os aspectos que julgamos nos outros frequentemente espelham o que ainda não aceitamos em nós mesmos. A projeção torna-se um mecanismo fácil para lidar com o desconforto da sombra, desviando nossa atenção para fora e evitando o trabalho interno. No entanto, é justamente nesse desconforto, nessa “tensão entre o sim e o não,” que reside a possibilidade de transformação. O bibliotecário que persiste nessa tarefa, por mais árdua que seja, dá o primeiro passo em direção a um eu mais autêntico e integrado, capaz de acolher tanto a luz quanto a escuridão que coexistem em sua essência.

Guilherme Duque – Membro Analista em Formação IJEP

Waldemar Magaldi- Analista Didata IJEP

Referências:

JUNG, C. G. A vida simbólica. Vol 18/2. Petrópolis: Vozes, 2013a.

JUNG,C. G. Ab – reação, análise dos sonhos e transferência. Vol 16/2. Petrópolis: Vozes, 2012c.

JUNG, C. G. Aion – Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. Vol. 9/2. Petrópolis: Vozes, 2012a.

JUNG, C. G. Estudos alquímicos. vol. 13.  Editora Vozes , 2018.

JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Vol. 14/2. Petrópolis: Vozes, 2014.

JUNG, C. G. Psicologia do inconsciente. Vol 7/1. Editora Vozes , 2008.

JUNG, C.G. Civilização e transição. Vol. 10/3 Petrópolis: Vozes, 2013b.

JUNG, C.G. Psicologia e religião. Vol. 11/1. Petrópolis: Vozes, 2012b.

VON FRANZ, Marie-Louise. A sombra e o mal nos contos de fadas. São Paulo: Paulus, 2020.

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