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A sombra na formação do analista

Desde o nascimento da psicanálise clássica de Freud, à medida que ele arregimentou discípulos e colaboradores ao redor de sua nova ciência, sendo Jung um deles, o método de formação do psicanalista tem seguido determinado padrão, o chamado “tripé psicanalítico”, a saber: análise didática, supervisão (ou controle de casos) e capacitação técnico-científica dentro do campo epistemológico em questão. Apesar da formação de alma de um analista não exigir que esta se dê via instituição, nosso olhar neste artigo é virado para o processo institucional da formação de analista junguiano.

A psicologia analítica, apesar de ter seguido trajetória diferente da psicanálise em termos científicos, mantém como base fundante da formação do analista junguiano, em termos gerais, a mesma da psicanálise. Desde o lançamento do Clube Psicológico de Zurique em 1916 (BAIR, 2006a), analistas junguianos são formados, antes de maneira menos sistematizada, porém respeitando o famoso tripé, até se estabelecer um método mais formatado com a inauguração do Instituto C.G. Jung de Zurique em 1948.

Daí em diante, com o fomento da psicologia analítica ao redor do mundo, diversas outras escolas surgiram, inclusive no Brasil, sendo algumas delas filiadas à instituição, supostamente, reguladora da formação de análise junguiana no mundo (IAAP – International Association of Analytical Psychology), e outras delas independentes, a exemplo do IJEP aqui no Brasil e do Von Franz Centre em Zurique.

Segundo Bair (2006b), Jung se mostrou hesitante quando lhe foi proposto montar um instituto, porém, sua preocupação recaia no futuro de sua psicologia: “Ele sabia que seus seguidores ‘iriam começar uma disputa entre sua morte e o enterro’, e queria que eles começassem enquanto ‘pudesse ter alguma influência e talvez impedir alguns dos piores erros’” (BAIR, 2006b, p. 226).

Seja qual for a escola junguiana, em linhas gerais, o método, a quantidade de horas exigidas (análise pessoal, supervisão individual e em grupo, e capacitação teórica) é praticamente a mesma em todas. Sutilezas diferenciarão as escolas, porém com importâncias significativas. Von Franz Centre (Suíça), IJEP (Brasil), e o próprio Instituto fundado por Jung em Zurique, por exemplo, não exigem que o analista candidato tenha formação em medicina ou psicologia, tal como se exige em outras escolas.

Jung, conforme descreveu Bair (2006b), por alguma razão incentivava que seu círculo mais próximo de homens estudasse medicina, mas o mesmo não acontecia com as mulheres, a exemplo de Marie-Louise von Franz, Joland Jacobi, Barbara Hannah, Toni Wolff e a própria Emma Jung, que sequer curso superior tinha, e ainda assim tida por muitos como uma grande analista (BAIR, 2006b).

Sobre esta questão, parece interessante que algumas escolas ainda sustentem a exigência da formação em psicologia ou medicina, uma vez que o próprio Freud era indiferente a isso, como relata nesta carta enviada à Jung em 1910 ao responder a indagação de Jung sobre a necessidade dos analistas candidatos terem alguma graduação (não necessariamente em medicina ou psicologia): “os estatutos daqui [Viena] nos deixam livres, mesmo que não entrem em tal exclusividade. A sociedade de Zurique pode aprovar muito bem, portanto, tal determinação, sem que ela se converta em norma para as demais [associações de psicanálise espalhadas em outras cidades]. Em Viena, isto não funcionaria, pela mera questão de que teríamos de excluir ao nosso secretário de muitos anos [Otto Rank]” (FREUD; JUNG, 2012, p. 386, tradução do autor).

Se a exigência de uma determinada graduação já não era norma nos primórdios desta nova ciência, outras perguntas se apresentam aqui, e uma delas é: o que sustentaria, portanto, um ideal da formação do analista se ela não se pauta essencialmente na graduação? A resposta naturalmente recai na necessidade da análise didática, tal como nos explica Jung:

“O próprio Freud […] aceitou minha exigência de que todo terapeuta fosse obrigatoriamente analisado.

Mas qual o significado dessa exigência? Ela significa simplesmente que o médico também ‘está em análise’, tanto quanto o paciente. Ele é parte integrante do processo psíquico do tratamento, tanto quanto este último, razão por que também está exposto às influências transformadoras. Na medida em que o médico se fecha a essa influência, ele também perde sua influência sobre o paciente. E, na medida em que essa influência é apenas inconsciente, abre-se uma lacuna em seu campo de consciência, que o impedirá de ver o paciente corretamente. Em ambos os caso, o resultado do tratamento está comprometido” (JUNG, OC 16/1, §165-166).

A análise didática seria um processo híbrido, no qual o analista em formação passa pelo mesmo processo que será aplicado futuramente aos seu clientes, ao mesmo tempo que recebe orientações pedagógicas de seu analista didata. Esse método é utilizado até hoje e considerado o eixo central de uma formação sistematizada de analista. E aqui residem alguns perigos, pois se neste ponto o consenso é meio que geral, é porque algum aspecto sombrio pode estar sendo, potencialmente, ignorado.

Talvez o trabalho mais ousado neste campo é o livro “O abuso do poder na psicoterapia” de Adolf Guggenbühl-Craig, pois ele expõe que existem aspectos sombrios nas práticas das profissões de ajuda, enfatizando o trabalho do analista. Nesta passagem ele descreve os riscos e a dimensão sombria de um analista (que pode ser um analista em formação, assim como um analista didata): “A sombra profissional do analista contém não apenas o charlatão e o falso profeta, mas também a contrapartida daquele que ilumina, ou seja, uma figura que vive imersa no inconsciente e visa sempre ao contrário do que conscientemente pretende o analista. Temos aí uma situação paradoxal, na qual o analista é mais ameaçado pelo inconsciente que o não analista” (GUGGENBÜHL-CRAIG, 2004, p. 33-34).

A fala de Guggenbühl-Craig encontra eco nos incômodos de Jung com relação à forma como Freud tratava seus discípulos, registrado nesta carta enviada por Jung à Freud em 1912: “[…] gostaria de chamar sua atenção para o fato de que a sua técnica de tratar seus alunos como pacientes constitui um equívoco. Com ela você cria filhos escravizados ou descarados bandidos (Adler-Stekel e toda a banda sem-vergonha que se espalha por Viena). Sou objetivo o suficiente para perceber seu truque. Você faz constar ao seu entorno todos os atos sintomáticos e assim você rebaixa os que lhe rodeiam ao nível de filho ou filha, que admitem envergonhados a existência de tendências errôneas. Enquanto isso, você permanece sempre ali, acima, como um pai. Devido à pura subordinação ninguém alcança puxar o profeta pela barba e descobrir o que é que você disse a um paciente que tem a tendência de analisar ao analista em vez de a si mesmo. Você pergunta a ele: ‘Quem realmente tem a neurose?’” (FREUD; JUNG, 2012, p. 545, tradução do autor).

Apesar da crítica de Jung ser direcionada à Freud, e desconsiderando um aspecto do complexo paterno de Jung nesta questão, nada nos garante que no processo institucionalizado da formação de um analista junguiano tal situação não se repita. Adicionalmente, questionamos se o fato de fazer uma formação institucionalizada, legitimada pela IAAP ou não, ofereceria alguma garantia de que o processo de análise didática, coração da formação de analista, não envolveria os aspectos de poder estudados por Guggenbühl-Craig ou os aspectos patriarcais alertados por Jung.

Ao nosso ver Guggenbühl-Craig é cirúrgico ao problematizar tal situação: “O analista junguiano, por exemplo, é alguém que viveu profundo abalo produzido pela confrontação com o irracional e o inconsciente. Entretanto, poucos insights psicológicos podem ser estatisticamente provados no sentido empírico, só podendo ser confirmados pelo testemunho honesto e sincero dos que se empenham na mesma busca. Nossa única prova é nossa própria experiência e a de outros, uma vez que a realidade psíquica não pode ser apreendida estatística ou carnalmente como ocorre nas ciências naturais […]. Mas essa extremada confiança na própria experiência pessoal ou alheia inevitavelmente dá margem a sérias dúvidas. E se nós mesmos, ou outros como nós, estivermos enganados?” (GUGGENBÜHL-CRAIG, 2004, p. 32).

Em outros termos, apesar da formação de analista seguir um método, reproduzido pela maioria das escolas de formação, não há uma garantia de que, depois cumprido com todos os requisitos exigidos pela instituição, o analista trainee passe a ser um analista graduado, considerando a perspectiva da psique e não a perspectiva literal da formação. Desta forma, seguindo o raciocínio de Guggenbühl-Craig, apesar da mensuração de horas de análise, horas de supervisão, horas de teoria e outras, seriam estas suficientes para formar um analista? Quantas horas de análise são necessárias para se produzir um processo de autoconhecimento num indivíduo? Como mensurar isso matematicamente?

Não se trata aqui de um posicionamento contrário à institucionalização da formação, pois se assim o fosse, não deveria eu estar escrevendo este artigo sob a égide de uma instituição que confio, acredito e partilho de valores semelhantes. E é justamente pela construção de autoconhecimento e pensamento crítico que essa instituição me proporciona que me vejo no direito de problematizar e refletir sobre os aspectos sombrios da formação.

Ao nosso ver, a formação de analista jamais deveria ser tomada pelo analista candidato como um curso de formação a exemplo de uma graduação ou pós-graduação, no qual são executadas determinadas etapas e tarefas, que se cumpridas a contento, ao fim, lhe atribuem o “grau” de analista. A instituição, por outro lado, não deveria olhar para este processo como algo rígido, tal como uma formação academicista clássica, com exigências que não dialogam com a alma, como por exemplo exigências de graduação específica ou exigências de se “carregar no peito” o selo da instituição certificadora, como se tudo isso fosse garantias da formação de um bom analista – a própria von Franz criticou o excesso de institucionalização e o ideal “antijunguiano” do C. G. Jung Institut Zurich em entrevista para a Folha de SP em 1987 (BONAVENTURE, 2021).

Precisamos encontrar um bom termo entre as exigências da alma, com as exigências do mundo externo. A formação de analista é uma jornada, talvez uma opção de vida, pois a formação é infinita. Ela acompanhará a pessoa por toda a sua vida se ela tomar a análise realmente a sério, para si, e para seus analisandos. Como diz Léon Bonaventure: […] não é no final da análise, mas durante o trabalho analítico que o analisando descobre a sua vocação, e assim, sem perceber, a análise pessoal se transforma em análise didática” (BONAVENTURE, 2021, p. 55).

Diante disso, a fala de Jung sobre a formação precisa ser resgatada, na qual as qualidades humanas são as fundamentais e não as qualidades acadêmicas (BAIR, 2006b). León Bonaventure (2021) defende que a formação de um analista deveria se dar no decorrer do processo de análise, atribuindo ao analista didata referendar que a pessoa passe a ser um analista trainee, o que é diferente de simplesmente se “matricular” num “curso de formação” objetivando passar por determinadas etapas pré-categorizadas que darão um título no final.

O processo de formação de analista, em sua essência, não deveria obedecer exclusivamente a algumas normas e padrões da sociedade contemporânea, que é voltada para os resultados, para os números, para os títulos e para os selos de “qualidade” (que nem sempre correspondem às qualidades humanas referenciadas por Jung). Não podemos nos esquecer que a análise se trata de uma arte, e como tal, carece de tempo da alma, constante refino de técnica e muita escuta interior: “É muito frequente reduzir-se a prática analítica – que para Jung consistia principalmente numa arte difícil – a uma questão de técnica. Assim, não se respeitam as forças criadoras da alma humana, que é sempre singular, em nome de uma mecânica qualquer; o terapeuta se transforma, desse modo, num mecânico mais ou menos habilidoso” (BONAVENTURE, 2021, p. 62).

Este tema será ampliado em uma palestra no VII Congresso Junguiano do IJEP de 2022, no qual traremos mais informações e mais profundidade sobre esta temática que é fundamental dentro do campo junguiano: a perenização do pensamento e da análise junguiana por meio daqueles que conjugam dos ideais sugeridos por Carl Gustav Jung com a sua psicologia.

Rafael Rodrigues de Souza – Membro analista didata em formação do IJEP

Waldemar Magaldi – Analista Didata

Rafael Rodrigues de Souza – 27/03/2022

Referências:

BONAVENTURE, León. A formação de analistas junguianos. In: BONAVENTURE, Jette; BONAVENTURE, León. Miscellanea: escritos diversos. São Paulo: Paulus, 2021.

GUGGENBUHL-CRAIG, Adolf. O abuso do poder na psicoterapia: e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério. São Paulo: Paulus, 2004.

BAIR, Deirdre. Jung: uma biografia, volume I. São Paulo: Globo, 2006a.

BAIR, Deirdre. Jung: uma biografia, volume II. São Paulo: Globo, 2006b.

JUNG, Carl Gustav. A prática da psicoterapia. OC 16/1. 16ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

FREUD, Sigmund; JUNG, Carl Gustav. Correspondencia entre Sigmund Freud y C. G. Jung. Madrid: Editorial Trotta, 2012.

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