O presente artigo irá abordar acerca do meio da vida, também chamado de passagem do meio, sob a ótica da psicologia analítica junguiana.
“Para todos aqueles cuja a vida é uma aventura – seja aventura do amor ou do espírito – Hermes é o guia. Koinos Hermes!” (Kerényi, 1976 apud STEIN, 2007)
“Koinos Hermes!” é uma expressão grega que pode ser traduzida como “Hermes comum a todos” ou “Hermes como guia comum”. O companheiro de estrada que leva a jornada da vida.
Nesta estrada, ou nesta jornada existem momentos importantes, marcos que exigem novas atitudes, mudanças, verdadeiros saltos. E Hermes é o arquétipo ou o deus presente, protetor, companheiro e fomentador dessas experiências chaves. Instala-se uma situação liminar. Um período confuso, de suspensão. Onde o status das coisas, da vida, não consegue mais permanecer como era, mas também ainda não tem uma nova e outra forma.
Um período onde a insegurança, a desconstrução, os questionamentos das estruturas, das certezas do estava estabelecido são intensas. Um período liminar.
No limiar
A palavra liminar vem do latim limen e significa “soleira da porta”, entrada ou portal (STEIN, 2007). São experiências de “atravessamento” de um estado para outro. De um lugar conhecido para um outro espaço difuso, desconhecido, confuso, totalmente outro e novo.
“No estado que eu chamo de limiar psicológico, o senso de identidade de uma pessoa fica suspenso. Ela não tem imagens fixas sobre o conteúdo dela mesma nem dos outros. O “eu” é flagrado num campo desconhecido sobre o qual não temos controle e onde ele não se reconhece como “eu”. Apesar do senso de identidade e algumas de suas funções continuarem a existir quando estamos no liminar, a sensação dominante é de marginalidade, alienação e mudança.
Surgem aí algumas questões críticas sobre por que e para quem o “eu” existe, do que ele é capaz, de onde vem e para onde vai. Quando o “eu” está desabrigado, como acontece quando ele se encontra no limiar, estas dúvidas filosóficas surgem com urgência bastante considerável e, quase naturalmente, desembocam em áreas religiosas de pensamento e emoção, áreas que em geral estão inacessíveis.” (STEIN, 2007, p. 21)
Estes momentos de limiaridade não são exclusivos do meio da vida. Parece não haver como passar para a segunda metade da vida de forma consciente sem que esta experiência de crise seja vivida. O próprio Jung compartilha conosco seu momento de crise, no Livro Vermelho. E deixa claro que esta crise transcende as questões externas. Assim sendo, não se trata de uma crise financeira, de trabalho, mas de sentido da vida.
“Naquele tempo, por volta dos meus quarente anos de vida, havia alcançado tudo o que eu desejara. Havia conseguido fama, riqueza, saber e toda a felicidade humana. Cessou minha ambição de aumentar esses bens, a ambição retrocedeu em mim, e o pavor se apoderou de mim”.
JUNG, 2013, p. 115-116
O mundo de Hermes e o meio da vida
Estes momentos da vida são regidos por Hermes, segundo Kerényi, 1976 apud STEIN, 2007, o deus da transição, transição que se dá sempre num limiar. O mundo de Hermes é um mundo da “existência em fluxo”. Hermes é o deus das fronteiras e do tráfego entre os diversos mundos, dono e conhecedor dos caminhos sobre a terra e o mar, frequentador dos bazares e mercados onde acontecem todos os tipos de trocas e transição, representa um tipo de consciência que existe principalmente em tempos de transição. Neste período limiar o ego se sente perdido, pois, não consegue mais se identificar totalmente com uma autoimagem que havia sido construída, a qual fica no passado, bem como suas ligações e personificações.
Os papéis vividos, aceitos e personificados não dão mais conta da realidade presente. Tudo que funcionava bem, de forma adaptada começa a se desmanchar, a desmoronar. O passado não serve mais e o futuro totalmente desconhecido. O presente fica vago, incerto.
É um período caracterizado também pelo luto. Se mostra necessário velar e enterrar as certezas, as fantasias de segurança e de identidade perdidas. Se trata de uma “noite escura da alma”. Um tempo de “vagar pelo deserto”, vagar pelo mundo em busca de algo que ainda não se sabe o que é. O conhecido não serve mais e o novo ainda é totalmente desconhecido e causa medo e angústia. Identificar as dores, viver o processo de luto, fazer o enterro, deixar o passado no passado, são imprescindíveis para poder olhar em frente e seguir a jornada.
Psicoterapia e o meio da vida
Portanto, a metade da vida ou o meio da vida não é necessariamente uma idade cronológica, mas um estado da alma. Um momento em que a própria alma se faz presente, exige um lugar na vida e na consciência do humano. É a manifestação da alma exigindo seu lugar e isso pode ser vivido de diferentes maneiras, assim como são diversos os indivíduos, suas histórias e suas singularidades. Por seu turno, a crise, o limiar e a presença de Hermes é comum a todos, é arquetípica.
Hoje me situo como um psicoterapeuta do meio da vida. A grande maioria dos meus pacientes é constituída por homens (85%) e mulheres (15%) que estão vivendo este período chamado por Jung de a segunda metade da vida, por Stein (2007) como o meio da vida e por Hollis (1995) de a passagem do meio. E também eu estou neste momento da vida. Aos 50 anos sou atravessado por este momento e todos os seus desafios e dúvidas e questionamentos. Um momento liminar.
O meio da vida e os relacionamentos amorosos
Uma das áreas da vida que sofrem abalos significativos neste período limiar são os relacionamentos amorosos. Na realidade, o casamento é uma das instituições que mais sofrem a ação de Hermes, talvez por ser uma das instituições sociais que mais carregam as projeções do desejo segurança, estabilidade e estrutura. Casa-se ainda para ser feliz, organizar a vida, para sossegar. Ainda se olha para o casamento como um refúgio de calmaria, um oásis de estabilidade. Ou mesmo como a finalização de um período de festa e de alegria, de fluxo e de liberdade, haja vista o ritual de “despedida de solteiro”.
Percebo em minha prática clínica que a crise no casamento é um dos grandes impulsionadores para a busca da psicoterapia nesta fase da vida. Através da crise no casamento, através de uma reviravolta nesta área, Hermes conduz seus filhos a uma verdadeira jornada da alma, sendo ela, a alma, com sua fluidez e leveza a questionadora das estruturas e das personas aprisionantes e estabelecidas.
A necessidade de mais leveza e fluidez na vida, surgem como uma inquietação.
Questiona-se as estruturas. Reclama-se da sensação de sufocamento. É comum a expressão: “preciso de espaço”, “preciso ser eu mesmo”. Como a maioria dos meus pacientes são do sexo masculino e muitos deles ainda o provedor econômico da família, esta queixa vem aumentada de um cansaço desse papel cada mais cobrador e cada dia com mais dificuldade de manter-se nele sozinho.
Sentem-se aprisionados nas personas de pai-provedor, marido-provedor, cuidadores em tempo integral. Sufocados pelas estruturas de um modelo de casamento e de família que não contempla o indivíduo e sua alma. A maioria deles nem sabem que têm uma alma, apenas estão soterrados pelas cristalizações de personas que pesam enrijecem gerando sintomas emocionais e físicos.
Homens adoecidos, deprimidos, sem energia, esgotados, acima do peso, hipertensos, com diagnósticos de hérnias de disco entre outros sintomas. A alma clama por um lugar, por uma expressão que ao ser negada, manifesta-se no corpo e grita por existência.
Um outro sintoma comum são as relações extraconjugais. Estes homens encontram-se, muitas vezes, enredados em triângulos amorosos, tentado se equilibrar, buscando alívio nos braços de outra pessoa, mas sem olhar para si mesmo e para seus modelos internos. O que gera mais cisão e angústia. Ou então buscam numa vida secreta de aventuras sexuais rápidas e sem significado, um refresco para seu dia a dia pesado, aumentando ainda mais a sensação de vazio.
É verdade que muitas dessas crises no casamento levam a separações saudáveis, põem fim em relacionamentos que já estavam agonizando, desgastados e que necessitavam de coragem e atitude para se colocar um ponto final. Hermes finaliza, mas não sem antes uma grande e importante ampliação de consciência, que não é feita sem dor e tampouco de uma hora para outra. Por final, Hermes separa!
Hermes também junta e restaura!!
Uma das manifestações de Hermes é de companheiro de jornada, e faz com que o indivíduo busque, também ele essa companhia na jornada da vida. Uma experiência comum é o encontro com outras pessoas, o encontro com companheiros de jornada, que também neste momento são buscadores. Deseja-se a companhia de Hermes seja através da vontade de estar numa jornada, estar viajando, buscando no desejo de estabelecer com alguém uma comunhão, uma experiência de intimidade intensas.
Stein descreve de forma brilhante este encontro promovido por Hermes, o qual transcrevo literalmente aqui:
“ Acontece com frequência a duas pessoas que se encontram no meio da estrada, ou seja, no meio de uma viagem, seja ela real ou metafórica, de elas sentirem a presença de Hermes neste espaço liminar: uma intensa atmosfera de intimidade é criada imediatamente entre elas. Primeiro, uma pessoa vais liderar, depois a outra, enquanto a conversa rola solta num turbilhão de pensamentos sugestivos e inacabados, gestos sutis, que tornam aquelas pessoas muito íntimas, e as aproxima mais rapidamente do que o habitual. Surgem sentimentos imediatos de conexão, da existência de laços comuns e de afinidade espiritual e surge um potencial vital surpreendente de dividir profundamente esta parte da jornada da vida. A psique aflora por meio de histórias, segredos, desejos, fantasias, sonhos, memórias, e tudo isso fui intensamente independente das diferenças de origem, lugar, classe social, idade, nível cultural e tipologia psicológica.
Esta comunicação pode fluir por meio de diversos canais – pela palavra, pela mão e pelo olhar. E não é uma das nossas maiores esperanças, a de encontrar um companheiro, uma alma irmã e amiga em algum lugar desta estrada? Deve ser porque todos estamos inconscientemente à procura de Hermes, e da comunhão que este arquétipo promove quando estamos juntos no trecho liminar da estrada da vida. Não é acidental a semelhança do que acontece psicologicamente neste espaço, com aquilo que chamamos transferência em psicoterapia: Hermes é o deus da transferência”
STEIN, 2007 p. 145-146
E não nos esqueçamos que Hermes também é trapaceiro, brincalhão, um trickster. Ele também confunde, é o deus da projeção.
O desejo de intimidade intensa, muitas vezes, é vítima de suas trapaças e travessuras. Razão pela qual o indivíduo é levado a projetá-lo na figura do(a) amante. Poucos conseguem superar a malícia de Hermes e perceber – sem orientação psicoterapêutica – que esta intimidade é a intimidade com a própria alma, um encontro consigo mesmo.
“Esta projeção, porém, não deve ser entendida como um relacionamento individual e consciente. Em primeiro lugar, não é nada disso. Cria uma dependência forçada, que se baseia em motivos inconscientes, mas que não são biológicos. Trata-se principalmente de conteúdos espirituais, muitas vezes em disfarce erótico, restos evidentes da mentalidade mitológica primitiva, que é formada de arquétipos e em seu conjunto constitui o que se denomina inconsciente coletivo. De acordo com isso tal relacionamento é propriamente coletivo e não individual”
JUNG, 2013 § 341, p. 212-213
Enquanto não reconhecidos ou negados os conteúdos individuais serão projetados no outro, no casamento ou na nova figura fora do casamento.
A divisão e a dissociação são alimentadas impedindo que o indivíduo seja ele mesmo. E, sem isso, é impossível um relacionamento individual espiritual. Fica-se à mercê de toda sorte de influências do coletivo e suas exigências.
A inconsciência produz falta de diferenciação ou identidade inconsciente. A consequência prática disso é que cada um pressupões estrutura psíquica semelhante (JUNG, 2013). A velha e repetitiva fantasia que o outro olha o mundo pelos mesmos olhos. Que se pode ser apenas um. Uma clara regressão ao estado infantil da psique.
Como é possível superar esta fase do meio? Como podemos passar por ela e tirar proveito da chegada de Hermes?
“Raras vezes, ou até mesmo nunca, um matrimônio se desenvolve tranquilo e sem crises, até atingir o relacionamento individual. Não é possível tornar-se consciente sem passar por sofrimentos” (JUNG, 2013 § 331, p. 205).
“Não se cura a dissociação dividindo-a, mas dilacerando” (JUNG, 2013 § 334, p. 209).
A projeção/transferência cria e/ou mantém a divisão e a dissociação no indivíduo. O ego deverá fazer sacrifícios.
Sacrificar o desejo de ser acolhido outra vez no seio materno, no paraíso, onde tudo funciona harmoniosamente sem conflitos, sem diferenciação e sem estranhamentos. O significado do verbo “dilacerar” usado por Jung relaciona-se a “despedaçar-se”. Logo, dilacerar a dissociação é saber-se não harmônico, multifacetado, diferenciado, é saber-se conflituado. É ter tudo e fazer parte de tudo – seja dos aspectos identificados como positivos, seja dos negativos. Dilacerar a dissociação é saber-se inteiro.
O caminho não é outro senão o da experiência.
Jung deixa claro que não se pode lidar com tais fenômenos sem que seja passando por eles, vivenciando-os e adverte clara e duramente:
“ Deve-se ter cuidado de não interromper esse desenvolvimento necessário por meio de violências morais, pois criar uma atitude espiritual por meio da divisão e supressão dos impulsos será uma falsificação. Nada inspira mais nojo do que uma espiritualidade secretamente sexualizada; ela é tão impura como a sensualidade superestimada. O caminho da transição é longo, e a maioria das pessoas fica retida a meio caminho”
JUNG, 2013 § 336, p.209
Somente atravessando este deserto e suportando a noite escura da alma, deste período limiar, é que é possível viver um relacionamento como uma escolha, o que se inicia com a segunda metade da vida:
“O meio da vida é um tempo de desenvolvimento máximo, quando a pessoa ainda está trabalhando e operando com toda a sua força e todo o seu querer. Mas nesse momento tem início o entardecer, e começa, a segunda metade da vida. A paixão muda de aspecto e passa a ser dever, o querer transforma-se inexoravelmente em obrigação; as voltas da caminhado, que antes estavam cheias de surpresas e descobertas, agora nada mais são do que rotina. O vinho acabou de fermentar e começa a clarear.
Desenvolvem-se tendências conservadoras, se tudo está em ordem. Em vez de se olhar para frente, muitas vezes, sem querer, se olha agora para o passado; principia-se prestar contas sobre a maneira pela qual a vida se desenvolveu até o momento procura-se encontrar suas motivações verdadeiras e surgem descobertas. O indivíduo consegue conhecer sua peculiaridade por meio da consideração crítica de si próprio e de seu destino. Mas esses conhecimentos não lhe são dados de graça. Chega-se a tais conhecimentos apenas por abalos violentos.” (JUNG, 2013 § 331a, p. 205-206)
Como é possível retomar o casamento, uma instituição com tantas estruturas, depois de ter vivenciado a fluidez da alma, sua liberdade, sua impermanência?
Como levar Hermes, ou melhor como aprender a conviver com Hermes e suas movimentações dentro do casamento, uma das instituições sociais mais carregadas de projeção de segurança, harmonia e paz? Conciliando ousadia e segurança dentro do casamento?
Sendo o casamento visto como uma das instituições mais estáveis num modo de vida tradicional, ele excluiria por esta razão, a vivência de uma limiaridade e exaltaria a segurança, a tradição, o que acaba pesando sobre os relacionamentos, enrijecendo-os e acabando com eles em muitos casos. Neste sentido é necessário colocar Hermes para dentro do casamento:
“A chave do enigma está em ficarmos atentos à presença de Hermes durante o casamento, e esta responsabilidade recai total e completamente na atitude psicológica de cada um dos parceiros do casal e não no sistema social ou em alguma natureza especial da relação de ambos” (STEIN, 2007, p. 159).
A atitude psicológica, o autoconhecimento e ampliação de consciência são elementos imprescindíveis para a construção e manutenção saudável de uma relação amorosa, podendo ser o casamento um verdadeiro relacionamento psíquico como entendia Jung.
Hermes deve ser integrado
Hermes deve ser integrado. Sua presença contínua gera uma nova atitude integrada à consciência, onde a condição liminar permanente da alma agora faz parte deste relacionamento. Com isso o desafio é identificar maneiras de continuar em contato com a experiência liminar não importando o quanto isso vá contra a essência de suas estruturas (STEIN, 2007). Consequentemente, ter Hermes presente no casamento e na vida é estar sempre pronto para retomar a jornada, pois ela nunca cessa, talvez a vida seja a própria jornada, estar a caminho sempre. Ser sempre um iniciático.
“A estrada está perto de nós, mesmo quando estamos em casa, com o coração seguro e de que retornar a jornada é sempre uma possiblidade” (STEIN, 2007 p. 155).
Koinos Hermes!!!
Adriano Luiz Pardo – Analista em Formação IJEP
Ajax Perez Salvador – Analista Didata IJEP
Referências:
HOLLIS, James A passagem do meio: da miséria ao significado na meia-idade. São Paulo: Paulus, 1995.
JUNG, Carl G. O desenvolvimento da personalidade. 14ª edição – Petrópolis. Vozes, 2013.
JUNG, Carl G. O Livro Vermelho: edição sem ilustrações. 3ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
STEIN, Murray No meio da vida: uma perspectiva junguiana. São Paulo: Paulus, 2007.
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