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Autoconhecimento na psicologia analítica

Autoconhecimento na psicologia analítica Psicologia Junguiana

Que parte de mim, que eu desconheço, é que me guia?

Fernando Pessoa

            O que significa o termo autoconhecimento? Segundo o dicionário Aurélio, é o “conhecimento de si mesmo”. O dicionário só não nos conta qual é a amplitude e a profundidade que este substantivo masculino alcança na vida das pessoas. O autoconhecimento tem sido na história do homem a grande questão que o leva a seguir um caminho em busca de identidade, propósito e realização. Parece estranho que, um indivíduo atuante, íntegro e socialmente produtivo, a partir de qualquer que seja a ótica, passe a assumir que não sabe quem é. Como assim? É o que vamos tentar compreender a partir da visão analítica.

          Vou iniciar assumindo que é possível compreender que a psique ocidental, nasce a partir da cultura judaico cristã, com o antigo testamento e as civilizações babilônica e persa. A Grécia, um cenário importante neste contexto, nos traz em sua história antiga, uma religião politeísta, com os deuses do Olímpio e os mitos dos heróis, determinando a vida e as regras de convívio entre os humanos e explicando a origem do mundo e seu devir. A vida ritualística era absolutamente responsável por trazer ordem e sentido para a comunidade. Com o passar dos tempos e a chegada do assim chamado crescimento social, alguns eventos importantes foram trazendo mudanças e alterando a forma de viver dos gregos. Temos aqui o comercio e as navegações que ampliou o contato da população com demais povos, a escrita alfabética, o surgimento do calendário e da moeda, a organização da vida política e o pensamento racional. Surge então uma corrente de pensadores, que se propõe a compreender a lógica da vida e do pensamento dos homens, e da origem do mundo e de todas as coisas. Com ela, há uma desmistificação das forças da natureza até então muito vinculada aos deuses, com poderes soberanos, o que vem reduzir os deuses olímpicos e os mitos à uma categoria de crença fantasiosa. O foco é traduzir uma cultura de crenças em algo maior e exterior ao humano, por meio de um método e de uma lógica próprias.

          Dos pensadores gregos, a primeira geração, ou os chamados pré-socráticos –  sec. VII a. C.,  se ocuparam de pensar sobre a origem das coisas, do cosmo e   a relação da vida com a natureza. Sócrates foi o primeiro pensador a querer compreender a alma humana. Além dele, seu discípulo Platão inaugurou uma nova forma de pensar o ser humano, ocupando-se das dúvidas existenciais que nos persegue até os dias de hoje, sobre quem somos, de onde viemos e para onde vamos.

A partir do século V começa uma nova fase da filosofia na Grécia. Esse período caracteriza-se essencialmente pela volta do homem para si mesmo. A preocupação com o mundo segue-se à preocupação com o homem. […] o homem se dá conta de que é preciso indagar quem ele é. Nisso interferiram algumas razões extrínsecas à filosofia: o predomínio de Atenas depois das guerras médicas, o triunfo da democracia etc. Aparece em primeiro plano a figura do homem que fala bem, do cidadão, e o interesse do ateniense volta-se para a realidade política, civil e, portanto, para o próprio homem.” (NETO, 1986, p. 39)

            Dentre tantos pensadores que influenciaram o pensamento de Jung e a psicologia a analítica, há correspondências interessantes relacionadas aos modelos de pensar o humano de Sócrates e Platão, que é válido destacar aqui. Sócrates, viveu em Atenas de 470 a 399 a. C. Sua filosofia restabelece o sentido de verdade no pensamento grego, contrariando os sofistas (corrente de pensamento anterior) e trazendo a pergunta como método, que leva à reflexão na busca de essência e de definição, onde se quer compreender o que as coisas são, tendo o homem como seu principal objeto.  Há dois conceitos diretamente vinculados a ele – daimon  – chamado, voz interior, oráculo, “semelhante à uma divindade que se manifestava por meio da alma humana”, (EDINGER, 2005, p. 82). Sócrates dizia que podia escutar o seu daimon interior falando com ele. O outro conceito ó a maieusis, entendido como partejamento. Ele era filho de parteira e atribuía a si esta mesma qualidade, dizendo-se parteiro de almas. Edinger (2005) faz aqui alusão, também realizada por Jung, sobre a técnica analítica ser pautada na maiêutica socrática.

          Sócrates nunca deixou nada escrito. Seus discípulos que se incumbiram de difundir suas ideias e pensamentos. Como um de seus mais influentes seguidores, Platão também cidadão ateniense, que viveu de no ano de 428 a.C. à 348 a.C. se encarrega de levar as ideias de Sócrates adiante. Ele conhece Sócrates numa fase em que está descrente do cenário político grego. Desenvolve o método da dialética e assim como Sócrates tem alguns conceitos fundamentais para pensar o ser – Eidos, ou ideia, que conforme cita Edinger (2005) é o termo precursor do conceito de arquétipo. Segundo Platão, as ideias tratam de alegorias ou categorias gerais das coisas, e existem primariamente à parte e anteriormente ao ser. Outro conceito a anamnesis – lembrança, recordação – é o que nos faz ter a visão daquilo que nos precede. Em suma, a ideia existe antes do ser em si e a anamnesis é o que nos faz rememorar. De muito valor também para psicologia profunda é o tão difundido Mito da Caverna de Platão. Este mito nos remete à forma como se dá o mecanismo de projeção, contribuindo com as possibilidades de o homem pensar e descobrir o poder que a mente possui para a natureza das ideias. É uma metáfora sobre a necessidade e o efeito da força da tomada de consciência sobre o homem.

          As contribuições destes dois pensadores, e também de seus contemporâneos, são de inestimável valor para o processo de entendimento, sobre como, a partir da filosofia, se deu o processo de tomada de consciência do homem sobre si mesmo e também para o início da psicologia como ciência na busca do entendimento das mazelas da alma.

          É possível compreender com esta pequena viagem a tempos passados que as formas de buscar o autoconhecimento acompanham a própria história da evolução da humanidade. E a história continua seu processo, após esta rica fase de descobertas, com a organização social Romana e o desenvolvimento de novos ritos nos grupos sociais, as manifestações e normas traduzidas em leis, com o fortalecimento dos cultos religiosos formais e organizados pela instituição religiosa predominante e a soberania da razão. Todos estes movimentos têm como intuito explicar e organizar a vida do homem e interferem diretamente na forma como as pessoas passavam a se perceber, bem como a compreender o sentido da vida e de si próprio no mundo. Na verdade, todo este processo, fez com que o homem fosse, gradativamente, se afastando de suas raízes, de seus símbolos e do sentido de sua existência para dar voz e espaço ao que o coletivo social demandava. Logo, não podemos falar de autoconhecimento sem passar pelo lugar de busca e de reconexão com algo que foi ficando perdido neste espaço-tempo. Algo que não é concreto, palpável aos olhos da consciência e, por consequência, de difícil acesso, como aponta Jung:

Já não existem deuses cuja ajuda possamos invocar. As grandes religiões padecem de uma crescente anemia, porque as divindades prestimosas já fugiram dos bosques, dos rios, das montanhas e dos animais e os homens-deuses desapareceram no mais profundo do nosso inconsciente. Iludimo-nos julgando que lá no inconsciente levam vida humilhante entra as relíquias do nosso passado. Nossas vidas são agora dominadas por uma deusa, a Razão, que é a nossa ilusão maior e mais trágica. (JUNG, 1997, p. 101)

            Pelo exposto até aqui, podemos compreender o quanto o homem é uma resultante de um conjunto um experiências e visões modificadas e transformadas à luz de seu tempo. Em sua “composição”, há uma influência forte da psique coletiva e, ao mesmo tempo, que como indivíduos não somos seres descolados deste lugar coletivo, também transformamos influenciamos o meio. Impossível falar de autoconhecimento sem falar do lugar do ego e da consciência. É por meio do ego, esta instancia psíquica que se dá a interlocução com o meio. O ego como centro organizador da consciência e seu “portador” (Edinger, 1993) regula conteúdos que chegam do inconsciente para a consciência. O intuito é preservar a consciência para que esta estabeleça uma relação sadia e adequada de interação com o meio. Um ego forte e estruturante representa um equilíbrio na personalidade.

          O ponto é que vivemos hoje a era da supervalorização do externo, do coletivo, do sucesso, do ganho e das conquistas materiais. Estes são atributos do mundo do ego, que como elemento que precisa se adequar e adaptar, conversa com seu meio externo tomando para si o entendimento de uma supremacia.  Falamos hoje de autoconhecimento em meio ao universo de egos inflados. Sobre a inflação, Jung fala:     

…tais estados como “semelhantes a Deus”. Mas como ambos, a seu modo, ultrapassam as proporções humanas, possuem algo de “sobre-humano”, podendo ser expressos figuradamente como “semelhantes a Deus”, falar de inflação psíquica. Tal definição me parece correta, pois o estado a que nos referimos envolve uma “expansão da personalidade” além dos limites individuais ou, em outras palavras, uma presunção. Em tal estado, a pessoa ocupa um espaço que normalmente não pode preencher. Isto só seria possível se ela se apoderasse de conteúdos e qualidades autônomos e que por isso mesmo ultrapassam seus limites. O que nos ultrapassa pertence a outro, a todos ou a ninguém. (JUNG, 2016, §227)

            É isso que vivemos hoje. O ego tentando chegar a limiares que não alcança. O mundo externo grita alto e atinge em cheio esta imagem de superioridade egóica, nos afastando cada vez mais da profundidade e da amplitude da alma. Como exemplo, dentre tantas fontes de autoconhecimento, há um apelo muito grande por matérias, dicas e livros de autoajuda. O conteúdo deste tipo de recurso conta coisas que nos parece muito obvias. Esclarece as inquietações humanas de forma direta e absolutamente segura. Entregam, por vezes, fórmulas descritas para que se alcance a felicidade, o sucesso e a riqueza, como se isto tudo estivesse a um passo, a um estalar de dedos – incompetência sua, se não consegue.

          Mas então, porque não acontece nada, quando alguém conclui uma leitura de algum material desta natureza? Porque estes materiais nos contam sobre o coletivo, sobre dicas e orientações gerais e pautadas em uma visão por vezes limitada e polarizada. Serve para todo mundo e neste sentido, e exatamente por isso, não serve para ninguém! Visão polarizada e inflada. Somos seres únicos, múltiplos, enquanto almas que carregam histórias diversas, vivências e experiências singulares. Como seres sociais estamos inseridos no coletivo, mas como pessoas únicas, nossas almas precisam encontrar o seu sentido em meio esse coletivo que clama muito alto. Estes processos de autoajuda ficam em um lugar entre o conhecimento do senso comum que atua no padrão coletivo e superficial e as necessidades individuais que são de natureza diversa, profunda e inconsciente. Por vezes necessitamos de respostas e de direcionamentos muito específicos e profundos para as angústias inerentes à nossa própria biografia. Este tipo de publicação faz tanto sucesso, por alcançar as necessidades e os apelos de uma condição coletiva pouco atendida, à qual também estamos socialmente inseridos. São dicas sobre como lidar com questões de relacionamento, trabalho, filhos, finanças, futuro, etc etc etc. “Faça assim que dará certo; pense assim, sempre no positivo; não deixe pensamentos negativos tomarem seu dia; seja de determinada maneira porque só assim você atrairá coisas boas”. É quase que um milagre. Mas o divino, de verdade precisa de um outro lugar de fala na alma. Nos afastamos cada vez mais do divino em nós. Perdemos a capacidade de simbolizar e, por isso, o canto da sereia do mundo externo nos “acolhe” e daí parece tão atrativo e tão interessante. Segundo Jung

O homem mede seu autoconhecimento através daquilo que o meio social sabe normalmente a seu respeito e não a partir do fato psíquico real que, na maior parte das vezes, lhe é desconhecido. Nesse sentido, a psique se comporta como um corpo em relação a sua estrutura fisiológica e anatômica, desconhecida pelo leigo. Embora o leigo viva nela e com ela, via de regra ele a desconhece. (JUNG, 1991 § 491)

            A personalidade consciente do indivíduo é o que apenas se consegue alcançar sobre si mesmo. Isso empobrece as relações, nos afasta ou nem sequer nos deixa saber qual é nosso propósito e nosso lugar no mundo. Somo engolidos por uma avalanche de desejos externos e impróprios a nós mesmos que assumimos com pessoais e veja só: brigamos por eles! É um “conhecimento muito restrito na maior parte das vezes, dependente de fatores sociais” (JUNG, 1991 § 492). 

          Hoje vivemos só no mundo de fora, somos concretos, objetivos e literais com uma capacidade de simbolização empobrecida o que dificulta alcançar a riqueza e a profundidade do mundo de dentro. Temos medo, queremos controlar este desconhecido mundo. Estamos presos em um universo que promete uma tecnologia capaz de resolver as mais complexas questões da vida, que desenvolve robôs capazes de capaz de imitar as emoções humanas. Continua aqui o paradoxo criador e criatura. Homens e máquinas, emoções clonadas e a perda e o afastamento diário da nossa capacidade humana de sermos apenas humanos e empáticos com nossos semelhantes. Afinal quem são estes? E quem somos nós?

          Deixo aqui um poema de Fernando Pessoa, para acalantar a alma!

Para onde vai a minha vida, e quem a leva?

Por que faço eu sempre o que não queria?

Que destino contínuo se passa em mim na treva?

Que parte de mim, que eu desconheço, é que me guia?

O meu destino tem um sentido e tem um jeito,

A minha vida segue uma rota e uma escala

Mas o consciente de mim é o esboço imperfeito

Daquilo que faço e sou: não me iguala

Não me compreendo nem no que, compreendendo, faço.

Não atinjo o fim ao que faço pensando num fim.

É diferente do que é o prazer ou a dor que abraço.

Passo, mas comigo não passa um eu que há em mim.

Quem sou, senhor, na tua treva e no teu fumo?

Além da minha alma, que outra alma há na minha?

Por que me destes o sentimento de um rumo,

Se o rumo que busco não busco, se em mim nada caminha

Senão com um uso não meu dos meus passos, senão

Com um destino escondido de mim nos meus atos?

Para que sou consciente se a consciência é uma ilusão?

Que sou entre quê e os fatos?

Fechai-me os olhos, toldai-me a vista da alma!

Ó ilusões! Se eu nada sei de mim e da vida,

Ao menos eu goze esse nada, sem fé, mas com calma,

Ao menos durma viver, como uma praia esquecida…”

Gilmara Marques Fadim Alves – Membro analista em formação pelo IJEP

Maria Cristina Mariante Guarnieri – Analista didata

Referências bibliográficas

EDINGER, Edward F. A Psique na Antiguidade. Livro Um. 1ª ed., São Paulo, SP. Ed. Cultrix, 2005.

________. A Criação da Consciência. 1ª ed., São Paulo, SP. Ed. Cultrix, 1993.

JUNG, C. G. O Eu e o Inconsciente. 9ª ed., Petrópolis, RJ. Ed. Vozes, 2006, Vol. VII/2.

________. O Homem e seus Símbolos. 15ª reimpressão., Rio de Janeiro, RJ. Ed. Nova Fronteira, 1997.

________. Presente e Futuro. 3ª ed., Petrópolis, RJ. Ed. Vozes, 1991, Vol. X/1.

NETO, Henrique N. Filosofia Básica. 3ª ed., São Paulo, SP. Atual Editora, 1986.

PESSOA, Fernando. https://www.pensador.com/frase/NTQzMzkx/

Gilmara Alves – 30/11/2021

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